Somewhere Far Away
"Os homens embarcam nos trens, mas já não sabem mais o que procuram."
– O Pequeno Príncipe
Quando éramos crianças, costumávamos achar que o mundo era exageradamente grande e que todos os adultos formavam uma grande civilização de gigantes.
Dava até para contar quantos machucados nós tínhamos, mas depois que crescemos, tudo parece efêmero e insignificante. Uma vez adultos, as pequenas feridas não se comparam com a imensidão das cicatrizes que fazem parte de nosso amadurecimento. Nossos sonhos não brilham mais com tanta intensidade, os biscoitos não têm mais o sabor de infância, de repente o dia ensolarado transforma-se em chuva.
Atualmente, sobrevivo da minha paixão pela música que possibilitou viagens para mais de 50 países, provar temperos novos, ouvir diferentes melodias e idiomas. Serei eternamente grato pela Força Maior que nunca permitiu que eu desistisse. Porém, é difícil enxergar o lado bom das coisas vendo do ângulo que estou agora. Acredito no poder do pensamento, sonhos são capazes de torna-se realidade e podemos viver bem com isso, felizes e agradecidos.
Pelo menos até o seu sonho torna-se seu pior pesadelo...
1 ano antes...
Era mais uma noite comum e rotineira de autógrafos, as lentes das câmeras captavam bem mais que a minha face, eles registravam minha alma saturada e exposta demais as mídias.
Um sorriso neutro aparece em meus lábios, um sorriso que esconde as minhas verdades, minhas angústias e sonhos frustrados.
Não estou reclamando das coisas que conquistei mas não existe um botão de pause, ou quem sabe de "restart", se tivesse as coisas poderiam ser diferentes, eu não teria pulado tantas fases. Entretanto, a vida é um jogo que nem sempre existe um recomeço, temos apenas que seguir em frente, sobrevivendo a cada obstáculo, comemorando cada vitória e evoluindo a cada fase, antes que o jogo chegue ao final.
Sorrio novamente, mexo o cabelo e tento afastar as névoas e a tempestade que estão tentando estilhaçar minha mente perturbada. Mais uma foto. Mais um flash. Tudo novamente. Depois de uma hora naquele shopping finalmente consigo me afastar das pessoas e enfim adentrar na limousine com o restante da minha equipe. Meus fluídos estomacais ameaçam rasgar minha garganta com seu gosto amargo e pútrido, um redemoinho de coisas que devorei ao dia. Sinto as mãos de Rick — meu empresário — tocar as minhas costas.
— Está tudo bem, Mike? Você parece meio verde — o olhar profundo e preocupado atravessou o meu como uma flecha cortando o ar — Logo estaremos no hotel, tenho uma notícia para te dar.
Antes que ele pudesse responder as minhas perguntas senti outra mão em meu ombro e pude notar que era Carly, minha maquiadora pessoal que sempre fazia o retoque da minha maquiagem para esse tipo de evento porém, desta vez era para retirar aquele misto de cores do meu rosto.
Continuamos o trajeto em silêncio enquanto as luzes de New York me alegravam com seu brilho fraco, lembrando-me que mesmo nos dias de tormenta devemos brilhar, pois é o nosso brilho que irá aquecer os corações das pessoas que têm nosso sorriso como fonte infinita de inspirações.
No caso, essa luz ilumina onde só haviam trevas, o que eu posso comparar com algumas de minhas músicas,
Imagino uma pessoa triste nesse momento, vendo a chuva cair silenciosa e pôr uma de minhas músicas para alegrar, talvez dançar agarradinho ou apenas cantar uma de minhas poucas músicas lentas cantando no chuveiro enquanto os pais pedem para não gastarem tanta água.
Sorrio um pouco, deve ser engraçado ter pais presentes, que brigam mas torcem pelo seu bem, que são uma mão acolhedora... Acho que hoje definitivamente não é meu dia, comecei a observar as luzes e agora estou falando em parentesco.
Fecho os olhos rapidamente e durmo com a cabeça levemente encostada na janela do carro.
****
Finalmente o astro e sua equipe chegaram ao hotel, não estavam tão longe de casa mas ganharam uma uma estadia e resolvem aproveitar.
— Achei que "happy hour" incluiria cerveja, não homens no meu quarto. — Mike sorriu malicioso e observou Rick.
— Tenho uma novidade que você vai adorar. A MTV te convidou para um Reality Show. Vai ser do jeito que você gosta, dar um tempo na fama, fingir ser anônimo numa cidade pequena, essas coisas, sabe? Me ligaram e perguntaram se você tinha interesse.
O astro ficou meio boquiaberto por alguns segundos enquanto sentia seu cabelo úmido grudar na nuca.
— Isso é sério? Não brinca! Claro que eu quero. Por que não? — Essa nova oportunidade seria bom para os negócios e para a sua crise existencial.
— Partimos amanhã para a Carolina do Sul, você pode escolher as características e um pseudônimo. Será apenas uma semana de teste, logo estaremos de volta para a "cidade grande" e o programa será realizado.
— Irei pensar em tudo e amanhã te dou uma resposta. — Respondeu rapidamente antes que Rick tentasse alguma intervenção.
— Ah, antes que eu esqueça. É bom não recepcionar homens no seu quarto trajando apenas uma toalha branca, senão, vão dar significado ao "G" do seu nome artístico.
Os dois gargalharam e seu empresário saiu de seu quarto enquanto Mike foi trocar de roupa e comer uns aperitivos.
Mal conseguiu conter o entusiasmo, selecionou online algumas roupas e acessórios que poderia usar em anonimato. Ele teria uma nova chance de reinventar-se, mesmo que seja temporariamente.
Depois de algumas horas gastas, selecionou vários perfis e decidiu virar um nerd com roupas xadrezes e quadriculadas, só queria passar despercebido e observar as pessoas de sua idade, as únicas preocupações sendo a roupa do baile de formatura ou o jogo decisivo da liga de futebol.
Depois de montar um catálogo das roupas mandou o conteúdo por e-mail para uma de suas estilistas.
Na manhã seguinte colocara uma roupa simples, saíram às pressas do hotel e G tentava tomar o café da manhã que acabou sendo reduzido em frutas silvestres e um suco de laranja industrializado.
No carro Rick deu algumas instruções de como manter o anonimato.
Mike desligou-se do mundo enquanto fechava os olhos e Rick falava sem parar. Constantemente fazia um aceno de cabeça e Rick percebeu o desinteresse mantendo o trajeto melhor quando ele ocorreu em silêncio.
Fomos num jatinho particular e quando finalmente chegamos à Charleston observei o lugar, era tão fresco o ar, tão puro. Enchi meus pulmões com aquele ar gostoso e fechei os olhos, por sorte era madrugada e até onde todo mundo saiba eu estava no Caribe com uma suposta namorada. Impaciente Rick me pediu para entrar no carro, revirando os olhos o obedeci enquanto abaixei o vidro da minha janela.
— Acho que vou me dar bem aqui.
Olhei para Rick que parecia perdido em pensamentos enquanto coçava a barba rala no queixo.
— É mesmo? Duvido você sobreviver uma semana sem Starbucks.
Rimos enquanto fechei os olhos e encostei a cabeça no banco gradativamente adormecendo.
Algum tempo depois chegamos a um hotel 3 estrelas, tive uma crise de riso quando Rick solicitou uma suíte master com cascata e massagista. Esse Rick... Talvez ele tenha chegado mais perto do que eu posso chamar de pai.
Meus pais não ficavam preocupados, talvez ter 21 anos seja uma idade de emancipação afetiva, eles só me ligam quando querem dinheiro ou algo do tipo.
Nunca parei para pensar no quanto eu sou solitário, mesmo rodeado por várias pessoas. Esses pensamentos ocorriam às vezes, eu era um homem independente agora, tinha uma vida e um futuro promissor, o que mais eu iria querer?!
Depois de separar meus itens pessoais, sentei na cama enquanto Rick repassava novamente o que eu ignorei no carro.
— É sério Michael! Tente não andar tão formal, você tem uma classe e uma etiqueta notável até no jeito que fala.
Observei-o enquanto estalava a língua, meu tédio era notável.
— Ser estranho e calado, ficar longe de roupas que mostrem minhas tatuagens, ser corcunda, mal educado, esqueci algo?
Olhava para ele com atenção enquanto a Carly — minha cabeleireira e amiga — dava uns toques finais em minha aparência.
— Só estou fazendo isso para o seu bem, Mike. Não vou ficar aqui o tempo todo aqui, tenho que finalizar outros projetos para sua carreira.
— Eu entendo, Rick. — um pouco de gel escorreu pela minha testa. — Tudo bem, querida. Eu finalizo. — Carly sorri com timidez. — Vou passar despercebido, Rick.
Depois de dar os toques finais visto uma calça cáqui e boto uma camiseta de botões xadrez e um tênis social finalizando com um óculos de grau que quase me impede de enxergar, tirando o fato de que é falso.
Olhei-me no espelho e peguei o material escolar, comecei a rir do personagem. Estava do jeito que eu imaginava, ninguém iria adivinhar a minha verdadeira identidade.
Rick olhava com uma certa apreensão enquanto procurava algum detalhe que entregasse meu disfarce. Depois ele deu ombros e começou a rir das minhas roupas.
Chamamos um táxi e Rick dava algumas voltas no quarto cogitando ser ou não uma boa ideia, acabei indo mesmo assim.
Paguei o táxi e desci do carro portando na mão uma maçã para o meu professor ou professora. Fazia anos que eu não frequentava a escola, a maioria das aulas eram na casa dos meus pais com os meus professores particulares.
Por fim, acabei entrando na escola e caminhei lentamente, subi os degraus e alguns adolescentes passavam por mim, era tudo tão gostoso, até o cheiro matinal de shampoo e creme para espinhas.
Suspirei fundo quando cheguei ao último degrau e observei o local por dentro. Era simples, organizado e bem cuidado para uma cidade pequena. Fui até a sala da diretora e para a minha não surpresa ela já sabia quem eu era, quase surtou e me pediu fotos.
Rick com certeza passou por aqui e mandou ela ficar de olho em mim.
Ela falou das normas, provas, coisas que seriam desnecessárias, já que eu não costumava sair da linha.
Suspirei meio derrotado quando ela insistiu em me levar até a classe. Caminhei ouvindo ela falar dos professores e dos alunos, eu já estava ficando entediado e irritado com o eco de sua réplica de Loubotin pelo piso do corredor.
Entrei na sala meio tímido senti alguns olhares curiosos em minha direção, alguns comentários e risadas enquanto a diretora falava baixo com a professora que até onde eu sabia se chamava Rebecca.
Acabei deixando elas num papo super interessante e busquei por alguma carteira vazia, algumas tinham apenas bolsas de alguns estudantes que nem se importaram com a minha presença.
Isso é estranho, faz anos que não me sinto assim, então, sorri e continuei procurando até observar um lugar disponível atrás de uma garota loira que dormia despreocupada em sua carteira. Sentei em silêncio e notei o olhar de uma garota de aparelho e óculos.
— Como você se chama?
Ela me perguntou sem tanto interesse quanto sua pergunta indiscreta deixava transparecer
— Mic.. Marcel!
Eu respondi meio apressado talvez até um pouco alto já que todos os alunos voltaram o olhar em minha direção, até fazer a garota na minha frente acordar.
— Perdi o intervalo?
Ela perguntou com a cara meio amassada por causa dos livros despejados que ela tinha feito de travesseiro. Todos riram, mas não tenho certeza se foi com ela ou dela.
A aula foi tranquila, me controlei para não responder as perguntas já que tinha concluído o ensino médio e já sabia de tudo que a professora tinha colocado no quadro.
Uma garota de aparelho respondia todas as perguntas enquanto a loira dorminhoca apenas folheava as páginas do livro sem muito interesse.
Fiquei com tanta vergonha que acabei esquecendo de dar a maçã para a professora e comi discretamente quando a aula se resumiu em slides chatos e conversas paralelas.
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