Regrets
"E você vai descobrir que sentimentos também desbotam, quanto mais se vive."
– O Príncipe Mecânico
Era mais um dia sem aquela dor que consumia-me lentamente naquele enorme apartamento, pelo menos ainda tenho o último dia de férias para aproveitar. A casa da minha avó raramente estava vazia, parentes sempre vinham passar uns dias, às vezes até semanas mas por sorte não tinha ninguém lá.
A casa tinha um cheiro reconfortante de madeira e livros que quase sempre estavam empilhados numa velha estante. Tudo aqui era familiar, era acolhedor, sentia-me renovado novamente, pelo menos, por enquanto. Ter saído de Manhattan acalmou meus nervos, eu estava deprimido por isso resolvi dar uma volta por Amsterdã, era linda nessa época, flores pareciam brotar até mesmo do asfalto.
Essas últimas semanas tinham sido confusas e intensas, os acontecimentos ainda estavam frescos em minha memória. Prefiro esse exílio temporário da fama e da minha namorada falsa. Por que diabos inventei esse namoro? Quer dizer, por que aceitei a ideia de Rick?!Era melhor ser gay do que viver preso num relacionamento de mentira e repleto de chantagem. Scarlett não era quem eu pensava que fosse, uma menina meiga, romântica que iria me apaixonar sem ter intenção. Porém, ela deixou sua máscara cair e eu esperei muito por isso.
Senti a brisa fresca em meu cabelo, estava na varanda pensando sobre coisas aleatórias até que o cheiro de torta de frutas vermelhas invadiu minhas narinas como um convite sorrateiro para sair da dieta.
Fechei a porta e fui até a cozinha, vovó estava pondo a torta em cima da mesa e parecia cantar alguma música em francês — seu idioma favorito — sorriu ao me ver entrar e puxar uma cadeira para sentar.
— Querido, você não está pensando em abandonar a vovó, está? — ela sorria de forma complacente, estávamos sozinho na casa, tudo aqui era perfeito mas já era hora de voltar.
— Tenho meus deveres, vovó. Não posso fugir disso, mesmo que a sua torta esteja me seduzindo. — sorrio enquanto ela pega um pedaço.
Não havia percebido que a fome tinha dominado-me, até comer pelo menos três fatias. Conversamos sobre a infância e rimos lembrando de quando eu cuidava da estufa com o vovô na época de férias.
Meus pais nunca adaptaram-se à Amsterdã, só passavam uma breve temporada nas férias, mamãe odiava flores. Depois de alguns abraços apertados e pedaços de tortas em uma tigela, organizei as minhas coisas e fui para o aeroporto mais próximo. Já estava na hora de voltar para o meu doce lar.
****
O vôo foi tranquilo, como de costume dormi o trajeto inteiro enquanto algumas pessoas pareciam notar minha real identidade mas não acreditavam que eu poderia viajar sozinho sem a companhia de seguranças ou num jato particular. Que sorte a minha, ninguém me acordou para tirar foto.
Rick não disse nada quando simplesmente arrumei as minhas coisas e saí do meu apartamento. Expliquei a situação para Rick que acabou compreendendo.
Odiamos Scarlett mas ainda vou suportá-la por um tempo.
A MTV enfim recebeu meus relatórios sobre a experiência mas não pareciam convencidos, acharam tedioso e pediram para que eu voltasse e fizesse coisas que eles classificavam como "imprudência adolescente" e isso iria dar um upgrade no futuro programa televisivo. Isso significa que eu ainda voltaria para a pequena cidade, iria ver Gwen na escola e brincar novamente de ser anônimo. Fico pensando às vezes em largar tudo, falar a verdade sobre os sentimentos que ando cultivando e esperar que a sementinha do amor cresça no coração dela. Isso soou meio idiota, mas a paixão faz isso com as pessoas...
Tivemos um problema durante o vôo quando chegamos em um aeroporto próximo e tivemos que desembarcar. Acabei desistindo da espera e paguei um jatinho, tinha pressa e queria chegar o quanto antes em casa. Quem sabe dormir e desfrutar da minha cama... Minha cama... Imagina se ela falasse? A última vez que havia dormido em meu quarto foi com Gwen, o baile, os trajes formais.
Não consigo parar de pensar nela e odeio-me por isso. Balancei a cabeça em negação e coloquei uma música aleatória no meu iPhone, finalmente, conseguiria dormir em paz, pelo menos até chegar em Manhattan.
Quando finalmente cheguei o piloto pareceu reconhecer quem estava levando, ficou boquiaberto quando dei-lhe um cheque e um tapinha de agradecimento em seu ombro. Josh já estava me esperando, Rick sabia a estimativa de horário do vôo.
Sorri para ele e entrei no carro sem dizer nada, apenas apoiei a minha cabeça na janela e fechei os olhos.
O céu não tinha estrelas, estava calmo e limpo, como um mar negro, passei os dias num lugar tão bom para relaxar e voltei para a cidade grande e angustiante, será que já posso me aposentar e passar o resto da minha vida numa casa de campo?
****
Cheguei em meu apartamento e para a minha surpresa, meus pais estavam na sala bebendo vinho e conversando com Rick e Scarlett. O que ela está fazendo aqui? Será que passei por algum ponto de droga e respirei uma fumaça alucinógena?!
— Aí está ele! Até que enfim, não aguentava mais esperar. — Scarlett sorria em minha direção enquanto balançava a taça de vinho na outra. Estava com um vestido lavanda e o cabelo loiro preso num coque alto.
— Eu... Perdi alguma coisa? — deixei as malas no chão e observei com atenção e incredulidade.
— Viemos passar uns dias aqui se você não se importar, Michael. Sua irmã logo estará chegando. — mamãe respondeu, como Scarlett os encontrou?!
— É que eu não esperava vê-los, quer dizer, nunca vieram até o meu apartamento. — meu pai e Rick estavam empolgados com algum assunto, acabei sendo ignorado por eles.
— Só queríamos fazer surpresa, sua namorada nos ligou. — mamãe sorriu para Scarlett. — Ela é linda.
Quase tinha esquecido que a minha "namorada" estava aqui, quer dizer, como esquecer?!
— Ah, é mesmo? Que prestativa. — respondi tentando amenizar meu deboche.
Scarlett pôs a taça nos lábios fazendo menção de beber antes de sorrir travessa, em outras circunstâncias eu acharia aquilo sexy mas agora ela dava-me ânsia.
— Achei que você estivesse com saudades, então liguei para os seus pais, espero que tenha gostado. — a loira mordeu o lábio inferior.
Parece que ela havia esquecido tudo que aconteceu há alguns dias. Claro, adorei a pressão inicial de conhecer meus pais.
— Estou cansado, preciso de um banho quente e a minha cama. Rick. Tenham uma boa noite, estou exausto do vôo, amanhã nos falamos. — anunciei minha breve partida.
Peguei novamente minhas malas e subi despreocupado as escadas sentindo que alguém me seguia. Cheguei no meu quarto e joguei as malas no chão, comecei a abrir lentamente os botões da camiseta quando escutei passos e voltei meu olhar até a porta. Scarlett estava parada lá.
— Por que você chamou os meus pais aqui? — repensei na ideia de tirar a camiseta e fechei dois botões.
— Não tem nada que eu desconheça nesse corpinho, Mike. — ela sorriu de um jeito quase diabólico, como se eu fosse um inseto caindo em sua teia de aranha.
— Vai fingir que nada aconteceu entre nós? Por acaso você é louca? — dei um passo para trás e sentei-me na cama.
— Já esclareci os boatos, alterei umas conversas com uma amiga fingindo ser um trote pelas redes sociais. Sorte que você foi rápido em tomar uma decisão, se chegasse em jornais famosos, seria difícil limpar seu nome. — ela arqueou uma sobrancelha.
— Você quase acabou com a minha carreira, o que você quer de mim? — suspirei e passei aos mãos no cabelo, tentando evitar a súbita raiva.
— Nada, Mike! Não estou pedindo nada, apenas que finja ser meu namorado por um tempo. — O barulho de seus sapatos ecoavam enquanto ela andava no meu quarto.
— Você sabe que não vai me conquistar assim. Sentimentos não podem ser aprisionados e forçados a florescer embaixo do concreto da raiva, angústia e luxúria. Eles florescem em jardins, sob o sol da confiança, se regado pela amizade, só assim para dar frutos. — respondi pensativo e melancólico.
— Você é tão cafona! Tem certeza que é astro do rock? Parece um gótico depressivo que vive falando de amor. Não existe amor em Manhattan, apenas dinheiro, luxúria e interesses. — Scarlett gargalhou e tentou abafar o riso pondo a mão na boca, enquanto minha paciência se esgotava.
Estava prestes a responder quando ela simplesmente saiu do meu quarto e bateu a porta com força deixando-me calado no meu solitário quarto.
Caminhei até o banheiro quando o toque repentino do meu celular chamou minha atenção. Fui até o criado mudo na esperança de ser a Gwen mas a tela mostrava um " número desconhecido".
— Alô?
Fiquei ansioso com a possibilidade de ser ela, mesmo que Gwen não soubesse meu número.
— Michael, Mike... Será que posso te chamar assim? Tem coisas que eu gostaria de contar-te mas acredito que não seja hora para revelar seu passado, tudo que você conhece irá mudar, tudo que acredita, seu mundo irá desabar e eu espero que seja forte.
Antes que eu pudesse perguntar alguma coisa, a voz que parecia ter sido modificada desligou o celular deixando-me confuso.
✰✰✰
Gwen conseguiu um trabalho temporário como babá dos netos do Dr. Wilson, ele era um homem bom e amado na cidade, um dos melhores pediatras que cuidou dela quando necessitou de amparo e cuidados médicos. A escola havia sido tediosa, Mike não aparecia há dias e ela cogitou que talvez tivesse ocorrido alguma expulsão por causa da briga com Tyler mas sua dúvida cessou quando viu o valentão na escola hoje cedo.
Tinha esquecido que seu tempo com Mike traria uma fama temporária, todas as garotas olhavam com desdém, como se não acreditasse que Mike teria escolhido uma garota bizarra para aproveitar de sua companhia. Cada momento com ele tinha sido incrível, como se um sonho tivesse sido realizado, não tirava-o da cabeça.
O McDonald's, os dois se beijando no piano, o baile e todos os acontecimentos sucessores. Foi incrível, um sonho que pôde vivenciar por alguns dias. A realidade foi dura com a garota, uma mãe alcoólatra e depressiva juntamente com a morte precoce do pai. Estava fadada ao fracasso e mesmo assim pode saborear um pouco de felicidade, mesmo que por pouco tempo.
Ele a tratou como ninguém mais iria tratar na vida, como se ela fosse uma pessoa que todos queriam por perto. Tyler sempre foi um babaca, lembrou-se da frustante primeira vez dos dois, foi constrangedor e horrível, sem carinho, sem afeto, apenas sexo. Com Mike tinha sido diferente, os toques dele eram firmes e precisos, não conseguia nem imaginar o quanto ele havia praticado aquilo com dezenas ou talvez centenas de mulheres.
Quando chegou sua mãe já estava dormindo, não tinha jantar pronto então ela comprou uma pizza de mussarela e devorou rapidamente. Foi para o quarto e desfrutou do sossego, pelo menos até o momento em que sua mãe acordasse chamando seu pai e começasse a quebrar o resto dos móveis, odiava ver essa situação mas no fundo sabia que todos tínhamos que lidar com nossas dores internas da forma que aprendemos.
As férias já estavam próximas, ela sequer havia pensado em viajar mas não podia fazer isso já que às vezes não tinha grana nem para comprar comida, reconheceu que o dinheiro que havia recebido — ajuda de custos, como Rick chamou — iria dar um up em sua vida, por enquanto, havia gostado da cidade grande, de Mike... Ela não podia negar, estava envolvida demais, como um pescador tolo contemplando o canto de uma sereia, nesse caso, um tritão com um par de lindos olhos verdes. Repentinamente decidiu que iria ver Mike, pelo menos mais uma vez, antes de esquecer totalmente o que previamente tiveram, nem que fosse de longe, sem nenhum contato.
Sua mãe já tinha iniciado seu ritual de gritos e lágrimas diárias, chorou baixinho até o barulho cessar e secretamente prometeu que sua mãe seria feliz novamente, custe o que custar.
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