Capítulo 38
— Agatha? Desperta, mulher! — Escuto risadas ao fundo, mas minhas pálpebras estão cansadas demais para serem abertas — Depois eu que sou a pedra...
— Hum... — Um resmungo preguiçoso sai dos meus lábios.
— Não adianta resmungar, é para acordar! Daqui a pouco você estará esmagando o missionário Vicente! — A última parte me faz despertar imediatamente.
Ergo o rosto com rapidez. Para minha infelicidade, e do Vicente, dou uma cabeçada no coitado.
— Ai... — Ele resmunga esfregando a região, enquanto desperta.
— Os dorminhocos finalmente acordaram! — Samantha comenta, em tom de zombaria, do banco da frente.
— Perdão, Vicente! — Toco seu maxilar, que se contrai imediatamente. Afasto minha mão, um pouco envergonhada — Doí?
— Um pouco. O que aconteceu?
Nossa, que pergunta complicada, meu filho! Posso não responder?
— Er...
— Olha, gente! — Salva pela morena! Lara grita chamando a atenção de todos. Se tinha outra pessoa dormindo, com certeza acabou de ser acordada — Parece que o tempo está virando.
O motorista fala algo que não consigo compreender muito bem. Apenas entendo uma palavra, e não gosto nem um pouco: Tormenta, que significa tempestade.
— O que tem a tempestade? — Pergunto para ninguém em específico.
— Ele disse que está vindo uma tempestade daquelas. — Vicente responde ao meu lado, ainda esfregando o bendito rosto.
Coitado!
— Afinal, por que nos acordou? — Pergunto à jovem ao meu lado, que ainda observava o céu cinza e carregado do lado de fora da janela.
— Porque, segundo o missionário Théo, já estamos chegando na igreja. — Responde calmamente — Desculpa! — Sibila, apenas para que eu veja.
Franzo a testa em sinal de que não estava compreendendo seu pedido de desculpa. Ela simplesmente aponta para o homem ao meu lado com a cabeça, e eu entendo tudo.
Reviro os olhos e olho para frente.
— Chegamos? — Alguém, que não consigo identificar, pergunta.
— Toda viagem tem que ter algum burro do Shrek. "A gente já chegou?" — O Comentário do doutor arranca rizada coletiva.
— Afinal, chegamos ou não? — Agora consegui identificar a dona da voz rabugenta.
— Ainda não, Júlia. — Respondo segurando o riso.
Vinte minutos depois, chegamos ao local.
— São exatamente 06:14 da manhã e, por incrível que pareça, eu estou completamente desperta! — Lara diz ao pular, literalmente, para fora da van.
— Bom para você, morena! — Pego minha bagagem e aguardo as próximas instruções.
Vicente e Théo foram atrás do pastor presidente da igreja que acolheria uma parte dos refugiados. Em pouco tempo, eles retornam acompanhados de um senhorzinho, dono de uma cabeleira branca como a neve. Atrás dos três vinha um homem mais jovem, que tinha idade para ser seu neto.
— Bom dia, missionários! Sejam bem-vindos à Cartagena. — Saúda o senhor — Este aqui é o meu neto, o Henrique — BINGO! — Ele mostrará suas respectivas instalações e a área de trabalho, para quando os feridos chegarem.
Em menos de uma hora, estávamos acomodados, alimentados e agora conhecendo nossa área de trabalho.
— Uau, isso aqui parece um verdadeiro hospital! — Comento, chocada com o que via.
— São equipamentos de ponta! Olha só para este cardioversor — Vicente comenta acariciando o equipamento.
— Meus avós eram médicos. — Nossos olhos caem em Henrique, que nos observa da porta — E esse desejo passou de geração em geração. Meus pais e tios são médicos, assim como eu e alguns primos. — Coloca as mãos no bolso da calça de sarja bege.
— Está me dizendo que estamos diante de uma família de médicos? — Questiono, já sabendo a resposta.
— Sim.
— E por que nos querem aqui? — Aisha pergunta.
— Porque da última vez quase perdemos algumas pessoas por não termos profissionais suficiente para nos auxiliar. — Henrique dá alguns passos em nossa direção até encostar em uma das macas — Além do mais, o que verão aqui é uma pequena introdução do que os aguarda na Líbia. Falo por experiência própria.
— Exatamente! — Samantha toma a palavra — A maioria das pessoas que chegarão, não estarão bem! Não digo apenas fisicamente, mas emocionalmente e psicologicamente falando. O que eles viram, ouviram e passaram nas mãos de pessoas que foram usadas por satanás, não foi nada fácil.
— Eles têm razão. — Aisha completa — Minha mãe foi morta de forma cruel e brutal, e... — Ela suspira profundamente — E eu estive presente durante algumas atrocidades, sendo vítima de poucas. Graças a bondade e misericórdia de Deus, fui resgatada por um grupo de missionários — Ela olha para o nada por um tempo antes de concluir — não é um momento fácil. Eles precisam de nós, não apenas como profissionais da área da saúde, mas como intercessores e como amigos.
Eu mal conhecia a Aisha, mas o pouco tempo que temos passado juntas, pude perceber que ela é uma mulher forte e batalhadora. Uma verdadeira sobrevivente e vencedora em Cristo Jesus. Essa história que ela acabara de contar, apenas aumentou minha admiração.
— E hoje você está aqui, Aisha, para ajudar outros que necessitam de socorro, como um dia você necessitou! — Samantha, de uma forma tão doce e carinhosa, segura a mão da líbia e a fita com amor. Todos que estavam ligados, percebiam que a Sam estava sendo apenas um instrumento usado pelo próprio Deus — Naquele período você não conseguiu entender o motivo de tudo aquilo estar acontecendo em sua vida, querida. Mas há um tempo e um propósito para todas as coisas debaixo do Céu. Nada é em vão, e eu creio que hoje você consegue enxergar um dos propósitos para uma situação tão desagradável. Porque o Deus criador, o Pai de amor, transforma uma situação ruim, em algo bom! Porque da morte, Ele gera vida. Louvado seja Deus pela sua vida, Aisha! — Samantha envolve a jovem em um abraço verdadeiro e cheio de amor.
***
Estava de joelhos, em um dos bancos do templo, quando escuto a movimentação do lado de fora. Rapidamente me ponho de pé e corro para a área externa. Avisto algumas ambulâncias chegando.
— Eles chegaram!
Aisha se aproxima correndo e me entrega um pacote, que continha touca, máscara e luvas. Como já vestíamos nossos scrubs, entramos na ala hospitalar, onde já haviam alguns pacientes deitados nas macas. Aparentemente nenhum em estado grave.
Minha equipe até então era formada por Samantha e Aisha. Escuto uma mulher gritando, e ao olhar em sua direção, percebo que é a minha paciente.
— Sam! — Aproximo-me da maca onde a enfermeira estava — O que está acontecendo aqui?
— Ela está reclamando de fortes cólicas abdominais e dores constantes na cabeça. — Enquanto Samantha me colocava a par da situação, eu começo a despir a paciente. E como eu suspeitava, ela está grávida.
— Está doendo! — A paciente reclama com a voz sôfrega.
— Feche as cortinas por favor, Aisha. — Toco sua testa e pescoço. Percebendo que a mesma estava ardendo em febre — Sam, prepare o paracetamol, parece que ela está com febre. — Pego o termômetro e tenho minhas suspeitas confirmadas — Isso não é nada bom! Nada bom!
— Meu bebê! Por favor, meu bebê!
— Aisha, precisamos do aparelho de ultrassom. — Encaro a mulher com preocupação, mas mantenho a postura profissional — Agora!
Ela sai depressa em busca do equipamento que irá avaliar a vitalidade do bebê. Samantha termina de injetar o paracetamol intravenoso, enquanto eu toco o abdome frio da paciente.
— Qual é o seu nome? — Pergunto, em meu árabe intermediário, na tentativa de acalmá-la e conhece-la um pouco mais.
— Nádia. — Responde com a voz fraca.
— Nádia, meu nome é Agatha. Faremos o possível para mantê-los bem.
— Meu bebê, doutora. Eu não consigo senti-lo. — Respiro fundo e no exato momento, Aisha chega com aparelho.
— Você sabe com quantos meses está? — Questiono, mesmo já imaginando a resposta.
— Não.
— Tudo bem! — A tensão toma conta da pequena ala "hospitalar".
Passo o gel no aparelho e em seguida no abdome da paciente. Graças aos equipamentos de ponta, comprados pela família do Henrique, a imagem do pequeno bebe aparece na tela. Assim que Nádia vê o seu bebê, ao que parece, pela primeira vez, um sorriso enorme nasce em seu rosto e seus olhos brilham denunciando sua verdadeira alegria.
Entretanto, a alegria não durou por muito tempo, pois como suspeitávamos, o bebê que Nádia carregava em seu ventre estava sem vida.
Desligo o aparelho e peço para uma das meninas limparem a pele da paciente.
Internamente, inicio uma oração rápida e desesperada.
Pai... Meu Pai, como dizer a uma mãe que o seu filho está morto? Por favor, me dê sabedoria. Console esse coração e sustente essa mulher que já passou por maus bocados! Eu te clamo, meu Deus, em nome de Jesus!
— Nádia. — Inicio com cautela — Infelizmente a notícia que temos para te dar, não é boa...
***
O vento gélido chicoteia o meu rosto, mas eu não me importo. A única coisa que desejo é esquecer por um momento da dolorosa cena presenciada há algumas horas.
Ainda não era mãe, mas pude compreender um pouco mais deste profundo sentimento, ao presenciar inúmeros partos ao longo da minha curta carreira. A alegria transbordante nos olhares de cada mãe ao pegar o seu bebezinho pela primeira vez nos braços. Na primeira amamentação. No primeiro banho... É algo incrivelmente divino, tanto que na única vez em que o Senhor compara o seu amor, Ele o compara com o de mãe. Como está escrito em Isaías 49.15.
Entretanto, nenhuma mãe está preparada para receber a notícia do óbito de um filho. Filho este, que nem mesmo teve a oportunidade de saber o sexo.
Nádia chorou. Chorou até não ter mais forças e cair em um sono profundo.
Era nítida a exaustão, física e mental, daquela mulher. Não apenas dela, mas de todos os refugiados resgatados. Ainda não tenho certeza, mas não preciso ser um gênio para imaginar que o bebê, que ainda está no ventre da pobre mulher, é fruto de um estupro.
Pelo que eu soube, a maioria das mulheres que chegaram da Líbia, eram escravas sexuais em seus cativeiros.
Pressiono com força os meus olhos. A dor de cabeça continua fazendo o seu trabalho com sucesso, afim de me incomodar.
— Toma. — Vicente me entrega um copo e uma aspirina — Talvez melhore.
— Tenho certeza que não irá melhorar, mas obrigada! — Pego o remédio, e com a ajuda do líquido, o engulo.
Apoio o copo na mureta da varanda, e torno a fechar os olhos. O único barulho que ouço é o do vento uivando violentamente.
— Samantha me contou o que aconteceu mais cedo com a sua paciente. — Ele inicia com cautela — Quer conversar sobre isso?
— Acho que não. — Respondo com incerteza. Mas meu suspiro cansado denuncia meu coração carregado de dor e indignação — Ela é mais uma vítima dessa... Dessa perversidade! — Encaro-o — Provavelmente ela engravidou de um desses homens... repugnantes. Eu sei, eu sei, eles estão sendo usados pelo inimigo, mas continuam sendo repugnantes! — Balanço a cabeça negativamente — Agora, a pobre da Nádia está sofrendo a morte de seu bebê, que mesmo não sendo fruto do amor entre duas pessoas, passou a ser amado desde o momento em que foi descoberto.
Ele nada diz, apenas escuta minhas lamentações.
—Vicente, estamos em pleno século vinte e um! E neste exato momento há pessoas sendo escravizadas, vendidas e leiloadas como objetos sem valor! Mulheres abusadas sexualmente, como se fossem brinquedos para diversão de homens nojentos e sem escrúpulos. Deus, eu não consigo me conformar com essas coisas.
Neste momento eu desabo a chorar, e imediatamente recebo consolo daquele que sabe fazer isso muito bem.
— Estou me sentindo uma inútil! — Minha voz sai abafada em seu peito — Não pude fazer nada para ajudá-la.
— Não diga isso, Agatha! — Suas mãos afagavam minhas costas — Você não conseguiu ajuda-la com o bebê, pois ele já estava morto. Essa mulher passou por poucas e boas até chegar aqui. E nada do que você fizesse poderia mudar isso, porque tem coisas que apenas Deus pode fazer. — Ele toma meu rosto em suas mãos e me encara com seriedade, sem deixar a compaixão de lado — Agora, você poderá ajuda-la a enfrentar o luto. Tenho certeza que ela precisará de um ombro amigo. Não fique preocupada com o que aconteceu ou com o que poderia ter acontecido. Deixe Deus te usar neste momento!
Assinto, concordando com o que acabara de dizer.
— Eu irei. Obrigada, novamente.
Ele desfaz o contato entre nós e olha para o céu.
— Acho melhore entrarmos, a tempestade deve chegar a qualquer momento. — Vicente me encara e lá estava ele, o sorriso lateral que eu realmente gostava — Tenho certeza que você não vai querer presenciar isso.
— Não mesmo! — Digo. Em seguida, deixo ele para traz e corro depressa para dentro da igreja.
— Ei, isso não vale! — Diz, ainda rindo.
Uma coisa é certa, se tem uma pessoa nessa terra que sabe me colocar de pé novamente, esse alguém se chama Vicente Ferraço. E eu louvo a Deus pela vida desse homem.
>>>><<<<
Oii, pessoal!! Como estão? Espero realmente que estejam bem!
Só o meu coraçãozinho doeu com esse capítulo??
Não esqueçam de clicar na estrelinha ⭐️
Att.
NAP 😘
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