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uma mulher com uma mulher

PARIS – 1928

Sidonie era a única pessoa no qual eu sabia que podia contar sempre.

E eu a amava mais do que tudo.

Minha irmã mais velha descansava próxima a janela, com um olhar distante, lábios comprimidos e aconchegada em um manto vermelho que não era de nossa casa. Ao lado de fora a chuva caia. Já estava fraca depois de horas despejando-se nas ruas empoeiradas de Paris.

Moravamos em Roquette acima do Sena ao leste da cidade. Era uma construção grande, de quatro andares e vários quartos, mas desde que chegamos aqui eu não deixava de me sentir sozinha e ser inundada por saudade de Montmartre ao menos por um dia. Sentia falta de acordar com o canto dos artistas, de escutar o bonjour do padeiro, as risadas das dançarinas que voltavam para casa atravessando nossa rua. Sentia falta de me sentir feliz.

Sidonie também. Ela sempre olhava para Montmartre. Por mais que não conseguisse ver muito além de nosso quarteirão por nossa janela seus olhos buscavam o moinho do Moulin Rouge.

Seus olhos buscavam Bettine.

E eu sabia que além de todos aqueles prédios Bettine a buscava também. Desde que Sidonie havia retornado do Hospital Psiquiátrico as duas não haviam se visto. Minha irmã nunca havia me dito, mas eu sabia que ela mau dormia com a esperança de que sua amada aparecesse embaixo de sua janela gritando juras de amor para que toda Roquette soubesse do amor delas. Porém era perceptível que quanto mais o tempo passava a esperança espairecia de seus olhos e cada vez mais a melancolia tomava mais uma vez conta de seu corpo. Eu temia que tudo acontecesse de novo.

Era uma pena. Sidonie era bonita. Com seus cabelos escuros cortados em um curto chanel, olhos castanhos, pele clara e lábios vermelhos era possível fazer com que qualquer rapaz de Saint-Germain caísse aos seus pés. Vários já haviam caído. Em nossa estante havia uma prateleira apenas para as flores que ela recebia. Na cozinha, um armário guardava seus chocolates. E em seu quarto, uma gaveta guardava todas as cartas de amor destinadas à ela — exceto as de Bettine, essas estavam guardadas em uma caixinha em cima do guarda roupas, e claro, em seu coração.

Ela se remexeu, desconfortável, e cravou os olhos brilhantes em mim de maneira quase maliciosa. Eu atirei-me para trás no sofá, apenas esperando a frase geniosamente apavorante que ela iria dizer.

— Quero sair. Sair para dançar! — Sidonie exclamou.

— Para dançar? Papai vai finalmente nos matar. Ele disse com clareza para que ficássemos em casa hoje.

Ela deu ombros.

— Não lembro de me importar com as ordens de nosso pai.

Sim, Sidonie não se importava. Eu não disse nada, mas todos nós sabíamos o que havia acontecido da última vez que ela havia desobedecido nosso pai. Ninguém precisava lembrar, ao menos não em voz alta, porque secretamente as lembranças mais vividas que eu tinha eram do dia em que a tiraram de meus braços, arrastando-a para aquele hospital. Eu vi o desespero em seus olhos, mas também o alivio, no fundo minha irmã sabia que desfrutaria o mínimo de liberdade possível longe de nosso pai. Mesmo que para isso tenha pagado um preço tão alto.

Papai não se importava com as filhas e nossa mãe estava morta. Mamãe havia morrido em uma tarde ensolarada de 1918. Eu tinha apenas sete anos quando vi seu corpo alvo, tão brilhante que poderia estar vivo, repousando sobre sua cama. Sidonie agarrava-se aos lençóis, chorando e implorando á Deus para que não a levassem, mas Deus pouco podia fazer. Suas bochechas estavam coradas, mas era rouge, já que vida alguma habitava em seu corpo. Meu pai não demonstrava nenhuma reação. Sua esposa estava morta, mas nenhuma lágrima ousou descer por suas bochechas.

Ele era um homem importante. Tinha fábricas em Paris, Lille e Bordeaux. Dizia estar sempre ocupado, mas virava as noites nos bares bebendo com mulheres que nós nem podíamos conversar. Nunca havia se importado verdadeiramente com nossa existência. Pelo menos até minha irmã conhecer Bettine.

Bettine não era rica, não vinha de uma família de nome e muito menos tinha a elegância de uma madame da Champs-Élysées, mas seus olhos brilhavam com genuína alegria. Ela não importava com o corte da moda, deixava seus cabelos loiros ondulados chegarem na altura de seus seios e dançava com toda sua alma. Lembro-me claramente de sua imagem no palco do Amis de la Vie, erguendo a barra de seu vestido e movendo os pés de uma maneira que eu nem ao menos me ousava a tentar. O que eu mais admirava nela era a forma que ela emanava alegria.

A conhecemos em uma terça-feira. Sidonie me agarrava pelos pulsos, guiando-me pela Champs-Élysées, enquanto na outra mão eu carregava nossas bolsas cheias de compras. Nós éramos jovens sem mãe, então Sidonie — que era pouco mais de três anos mais velha do eu — era responsável por mim e por nossa vida. Papai a dava dinheiro e sem responsabilidade alguma íamos para a avenida gastar tudo aquilo com roupas, chapeis, joias e echarpes. Foi em uma dessas lojas que conhecemos Bettine.

Era claro que Bettine não tinha dinheiro algum. Ela e amiga divertiam-se com os vendedores fingindo que iam comprar algo, mas no final desvencilhavam-se e perguntavam sobre outro produto. Elas riam, Bettine trazia as bolsas para perto de si, observando-se no espelho e foi nisso que minha irmã ficou encantada. Então quando colocou um chapéu na sua cabeça, Sidonie soube que ele fora feito para ela. Ela aproximou-se de Bettine e sorriu. Fui correndo atrás.

— É um chanel. — Foi a única coisa que minha irmã disse.

Bettine assustou-se. Retirou o chapéu no mesmo instante e olhou para minha irmã com extrema rispidez. Ela era uma garota da boêmia francesa, não era sempre que uma moça elegante, como era primogênita dos Saint Clair, dirigia-se a ela. Ela a fitou desconfiada.

— Eu sei. — respondeu com os olhos azuis fixos nos da minha irmã.

— Você tem dinheiro para compra-lo?

Toquei levemente a mão de Sidonie tentando tira-la dali. Eu não entendi o porquê de seu interesse tão repentino em uma moça qualquer que havíamos encontrado no acaso, mas o temia. Era ofensivo perguntar para uma desconhecida se ela havia dinheiro para comprar algo, mesmo que fosse perceptível que a resposta era não.

— Não, — Bettine colocou o chapéu novamente no balcão — não tenho, mademoiselle. É todo seu.

Sidonie o pegou. Observou por alguns segundos antes de devolver para as mãos da misteriosa moça loira.

— Ah, mas que pena. — Minha irmã lamentou — Nunca vi um chapéu ficar tão bonito em alguém quanto esse ficou em você.

E Bettine sorriu. Olhou para a amiga, depois para o chapéu e por fim para minha irmã, agradecendo o elogio com um singelo movimento na cabeça. O dono da loja, que há anos o conhecíamos como um velho amigo de nosso pai, aproximou-se cumprimentando a mim e a Sidonie.

— Mademoiselles Saint Clair. Que maravilha vê-las aqui! Desejam algo? Alguma coisa as apeteceu?

Sidonie virou-se para mim durante um breve momento.

— Carla, deseja algo?

— Hum, acho que não. Já gastei todo meu dinheiro por hoje.

— Bem... — Sidonie tomou o chapéu das mãos de Bettine. — Então irei levar apenas esse chapéu. — Ela abriu sua bolsinha e entregou as moedas. — Obrigada.

O homem agradeceu e despedindo-se de nós foi até a outra parte da loja onde duas madames olhavam as bolsas. Bettine estava confusa. Não se retirou da loja, esperou até que Sidonie voltasse a dirigir palavra a ela, o que o fez logo em seguida. Minha irmã aproximou-se dela e com as próprias mãos encaixou o chapéu em sua cabeça.

— Oh, não, não! — Bettine tentou tira-lo, mas Sidonie estava certa de sua decisão — Não posso aceitar, mademoiselle. Eu me ofenderia. Nem ao menos a conheço.

— Bem... — minha irmã sorriu — Sou Sidonie Saint Clair, moro em Montmartre com minha irmã, sou uma grande amante de arte, poesia e de beleza. Agora você me conhece, sendo assim, eu me ofenderia se você impedisse que o mundo apreciasse a sua. Por favor, aceite, é um presente.

Bettine curvou-se.

— Sou Bettine Roxette. Agradecida, agradecida! Não sei como agradecer... Olhe isso, Amalie, que lindo.

— Não há necessidade. Sua felicidade já basta como agradecimento.

— Aceitam um café? Um chá? Qualquer coisa. — Indagou. — Moram em Montmartre, sim? Conheço um café muito bom, bem próximo ao Moulin, vocês poderiam nos acompanhar.

Estremeci com aquela frase. Nós éramos de Montmartre, mas raramente andávamos por lá, a não ser para visitar a Sacré-Coer nos domingos de manhã. Nosso bairro era boêmio, cheio de música, dança e diversão, mas nossa vida era confinada em nosso prédio em uma ruazinha calma e residencial. A amiga de Bettine pareceu perceber minha aflição, pois logo em seguida deliberou.

— Bettine, tenha noção! Olhe para essas garotas, são moças bem nascidas, nunca entrariam naqueles buracos que nós frequentamos.

Sidonie ardeu. Minha irmã não costumava ir além das cordialidades com estranhos, mas seu interesse por aquela mulher estava acima de tudo. Ela engoliu seco, olhou para mim um segundo antes de prosseguir, e disse:

— Bobagem! Minha irmã e eu estamos sempre abertas para novas experiências. Adoraríamos acompanha-las, não é Carla?

— É.

Nós fomos.

O Amis de la Vie era um café bem arrumado, com um grande balcão e clientes bem humorados. Ninguém se importou quando nós quatro sentamos em uma mesa, Bettine pediu gim e alguns minutos depois subiu no palco e começou cantar uma música americana com seu sotaque francês carregado e pronuncia incorreta. Os homens bateram palma, um deles puxou Amalie para uma dança e Sidonie ficou encantada. Ela moveu seus cabelos curtos para trás de sua orelha e naquele instante eu pude ver como seus olhos brilhavam observando Bettine cantar a musica errado. Em tal momento eu não senti nada além de inveja, pois no fundo, eu queria poder olhar para alguém como Sidonie olhava para Bettine.

Quando nós fomos embora — antes que nosso pai se incomodasse com o fato de estarmos demorando mais que o habitual para retornar — eu soube que aquela não seria a última vez que estaríamos ali. Minha irmã despediu-se do balconista, de dois rapazes que ela havia conversado por no máximo cinco minutos e nós nem ao menos precisamos buscar por Bettine, pois ao nos ver indo até a porta ela correu até nós e praticamente atirou-se nos braços de minha irmã agradecendo pelo chapéu, pela companhia, dando dois beijos, um de cada lado de suas bochechas, e pedindo para que retornássemos na sexta à noite. Sidonie disse que não poderia prometer nada, mas eu sabia que ela iria nem se precisasse pular pela janela.

Sexta-feira nós estávamos lá. Deitei para dormir ás nove, como habitual, mas Sidonie que sempre deitava depois das onze me acompanhou. Apenas por isso eu estranhei. Cerca de trinta minutos depois ela bateu em minha porta e sussurrou dizendo para que eu me arrumasse, que assim que se certificasse de que papai não iria mais nos procurar, iríamos partir para o Amis de la Vie. Coloquei um vestido vinho, luvas brancas e um chapéu parecido com o que Bettine ganhou. Sidoine apareceu com um vestido preto brilhante, com luvas negras e uma faixa no lugar de um chapéu. E sua boca... Foi a primeira vez que a vi com aquele batom vermelho que hoje me regressa sua memória nos mais tenros dias. Magnifica. Uma dançarina. A mais desejada da noite de Paris. Eu não era feia, alguns diziam que eu até era mais bonita que minha irmã, mas eu sabia que só pelo fato de Sidonie ter tamanha confiança e autenticidade nós não podíamos competir. Eu era água, ela fogo. Eu silêncio, ela um grito.

Um grito por liberdade, percebi um tempo depois.

Sentamos em uma das mesas e pedimos um pouco de café. Sidonie passou os dedos por cima do rum no menu, mas eu neguei, deveríamos ser cuidadosas. Estávamos sozinhas, em um lugar quase desconhecido no meio de Paris. A banda tocava alto, um rapaz — mais tarde descobri que seu nome era Vincent — com saxofone chamou minha atenção por sua habilidade e sua beleza, brinquei de sorrir para ele e de vez em quando ele sorria de volta. Os pés de Sidoine não conseguiam ficar parados. Ela queria dançar e no fundo eu também. Eu estava prestes a convida-la para tentar algo na pista, quando aquela mítica figura loira apareceu novamente. Os cabelos ondulados estavam presos em um belo penteado, seu vestido era branco e assim como o de minha irmã brilhava, no topo de sua cabeça o chapéu que havia ganhado de presente se destacava.

— Pensou que nós não viríamos? — Sidonie inclinou-se em sua direção.

— Ah, não! — Bettine riu — Eu tinha certeza que vocês viriam. Estou usando meu chapéu da sorte!

Sidonie quase deu pulinhos de alegria. A música no fundo ficava mais animada. Permiti que meus pés dançassem sozinhos embaixo da mesa.

— O chapéu é o seu da sorte?!

— Claro. E o mais bonito também. Tenho um chanel, Sidonie. Um chanel! Graças a você. Foi a segunda melhor coisa que ganhei ontem.

Minha irmã bebeu o resto do café.

— Estou tentada a perguntar qual foi a primeira.

— Oras, você. Uma amiga! — Em seguida ela olhou para mim — Duas, na verdade. Mas sei que foi você que me escolheu no meio da multidão.

— Você que me escolheu. Você se destacava no meio de todos.

Bettine riu. Reparei nesse instante que sempre que ela dava risada olhava para baixo. Minha irmã acompanhava seu olhar. Sidonie gostava que as atenções estivessem sempre voltadas para ela durante uma conversa.

— Mas o que vocês estão fazendo aqui sentadas? — Bettine indagou por fim — Vieram para dançar, então, por favor, vamos dançar. Aproveitem o jazz!

Neguei com a cabeça no mesmo instante.

— Hoje vou apenas observar.

— Humpf! — Bettine concentrou-se em minha irmã. Estendeu a mão como se fosse um cavalheiro. — Mademoiselle Saint Clair, você me acompanharia nessa singela valsa?

Sidonie riu, levantando-se.

— Tenho certeza que isso não é uma valsa.

— Claro que não! — Bettine a arrastou para a pista de dança — Todos estão felizes!

A loira começou a mover os pés com uma habilidade notável. De vez em quando dava alguns pulinhos, as mãos voavam e ela sorria para Sidoine mostrando que a admiração entre elas era mutua. Minha irmã arriscou. Lembrou-se de alguns passos que a filha de um antigo amigo de papai havia nos ensinado em vinte cinco e tentou encaixar na música. Bettine até parou por alguns instantes para que pudesse admira-la com total atenção. Em seguida, tocou seu braço, pedindo para que repetisse seus passos. Bettine fazia, Sidoine copiava, Bettine pulava, Sidoine balançava as mãos, Bettine girava, Sidoine pulava para trás. Estavam tão bem sincronizadas que pareciam ter ensaiado dezenas de vezes antes de irem para a pista de dança.

Dançaram muito. Dançaram até que gotas de suor escorressem pela lateral de suas cabeças. Diferente dos bailes em Saint-Germain eu não me importava em tomar chá de cadeira. Ao contrário, pela primeira vez em minha vida não estava preocupada em ser apenas uma observadora. As duas foram até o balcão e finalmente minha irmã conseguiu o copo de rum que tanto aspirava. Um rapaz foi até Bettine para oferecer uma taça de champagne, mas atenções da loira naquela noite não poderiam ser dividas. Ela nem olhou para ele, apenas afastou-o com a mão, sem desgrudar os olhos da minha irmã que enquanto bebia — e de vez em quando fazia uma careta — contava alguma historia engraçada e provavelmente aumentava algum ponto, como de costume.

A verdade é que Sidonie sempre fora mais bonne vivant e sociável do que eu. Sempre foi a mais empolgada para as festas, para os bailes, para um chá da tarde no solar qualquer um, para um sarau de domingo. Foi a primeira de nós a cortar o fatídico chanel bem curtinho e a primeira a flertar com os garotos no Louvre. Assim, não era de se surpreender que enquanto eu fosse ao Amis de la Vie apenas nas sexta-feiras — exceto as que eu estava cansada demais — ela estivesse lá sempre que tivesse a oportunidade. Quanto mais se aproximava o verão, mas dificuldade eu tinha de dormir, assim ás vezes ficava na janela observando o movimento e via minha irmã agarrando-se ao galho da árvore próxima a sua janela, pulando por entre as folhas, para no fim, estender a mão para Bettine que a esperava ali embaixo.

De vez em quando elas caiam. Eu desconfiava que Bettine puxava minha irmã de propósito para que pudesse deixar seus corpos mais próximos. Uma vez a queda de Sidonie foi tão feia que achei que meu pai até acordaria com o barulho e a pegasse no flagra, mas isso não aconteceu, ao invés disso Sidoine agarrou a mão de Bettine e elas saíram correndo e tropeçando pela calçada de nossa rua.

Minha irmã estava claramente mais feliz. Ela começou a andar pela casa dançando. Ela acordava cantarolando uma canção de jazz, rodopiava, e toda semana aparecia um passo novo. Lembro-me dela chegando na sala de jantar para o café da manhã, pulando os degraus da escada e no final, dando um giro. Durante a tarde o rádio tomava conta de nossa casa. Era no máximo. E Sidonie não se contentava apenas em ouvi-lo, ela tinha que cantar e dançar, não apenas em um cômodo, em todos.

Outra coisa que nos diferenciava muito era como agíamos em relação a nosso pai. Nenhuma das duas o amava, é verdade, mas nós o temíamos de maneira diferente — ou talvez minha irmã apenas fosse mais corajosa do que eu. A questão é que ela começou a levar Bettine para nossa casa. Certa vez, depois de ter uma aula para moças na universidade de Sorbonne, entrei na sala de estar e as encontrei no sofá. Bettine sentada com as costas apoiadas e Sidonie com os braços ao redor de seu pescoço, com os lábios pressionados contra os dela de uma forma que eu nunca havia visto antes. Já havia visto meus tios e alguns casais mais ousados se beijando na rua, mas nunca como Sidonie e Bettine faziam. A paixão emanava de suas almas de uma forma que eu não fui capaz de intervir. Eu poderia tossir, mostrar que estava ali, parada na porta de minha sala de estar as observando, mas não o fiz. Não me interessava estragar o amor delas.

Não era como se eu não soubesse que minha irmã gostava de garotas. Ela nunca fez questão de esconder sua inclinação para mulheres. Apenas não era um assunto que algum dia houve a necessidade de conversar sobre. Eu não queria discutir moralidade com minha irmã, mas desejava que ela soubesse que podia contar comigo em qualquer situação, assim certo dia eu deixei um bilhete sobre sua cabeceira enquanto ela estava dançando com Bettine.

Eu sei que Bettine e você estão juntas. Se quiser conversar comigo, estou aqui.

Carla.

Nós não conversamos, mas era perceptível que Sidonie sentiu que poderia confiar em mim para lidar com sua namorada. Nós três saíamos durante tarde, Bettine e Sidonie na frente de mãos dadas, ás vezes trocando alguns beijinhos discretos e dando risadas. Na maioria das vezes eu me contentava apenas em levar as sacolas de compras das Champs-Élysées — onde minha irmã gastava metade de nossa mesada comprando coisas de alta costura para Bettine. Em seguida nós três íamos para nossa casa, tomávamos um rápido chá, eu pegava um livro e ia ler enquanto as duas trancavam-se no quarto de Sidonie. Ás vezes Sidonie aparecia nua, enrolada apenas em um lençol, correndo até minha janela — que tinha vista para a rua principal — para ver se papai havia chegado.

E eventualmente elas brigavam por isso.

— BETTINE! — Minha irmã gritou certa tarde. — Espere!

Eu estava dormindo e fui acordada por seu grito agudo. Pensei que era algo grave, mas era apenas uma discussão de relacionamento. Bettine estava com os cabelos soltos, o vestido verde amassado e seus olhos estavam inchados de tanto chorar.

— Não posso continuar assim, Sisi! — Bettine bravejou prestes a descer as escadas — Não aguento mais me esconder. Quero contar a todos que a amo!

— Não. Podemos. — Sidonie repetiu, pelo o que aparentava, pela milésima vez — Não é certo.

— Pois vê, Sidonie?! Você diz que nosso amor não é certo e não quer que eu fique brava com você.

— É nosso segredo.

— Não gosto de segredos. Sou uma pessoa livre! Todos no café já sabem que você é minha namorada.

— Sim, Betty. Mas o café não é o mundo real. O mundo é real é hostil. Ele não terá dó de nós. Não faço isso porque não a amo, pois eu a amo mais do que tudo, faço isso porque não quero que ninguém ouse nos separar.

Por um instante considerei o fato de que estava sendo inconveniente assistindo a cena do parapeito de minha porta, mas se elas não se importavam com isso eu também não me importaria.

Minha irmã aproximou-se da radiante Bettine. Tocou seu rosto e com seus lábios coloridos naquele belo tom de vermelho e a beijou. Bettine demorou corresponder, mas seu amor era maior do que seu orgulho. Assim como Sidonie pousou uma mão de cada lado do rosto da amada e manteve o beijo vivo. Nesse momento eu decidi voltar para o meu livro e deixa-las sozinhas no corredor de casa.

Um dia papai descobriu.

Eu nunca soube exatamente como, mas ele soube. Já tive coragem de perguntar para Sidonie muitas coisas intimas que a fizeram ruborizar, mas nunca consegui conversar com ela sobre o que houve naquela briga com papai. Acredito que ele deve tê-la cobrado por ter vinte e um anos, estar solteira e pouco interessada em rapazes, e como minha irmã sempre foi explosiva ela deve ter dito a verdade e despejado em cima dele todas aquelas juras de amor que cochichava no ouvido de Bettine enquanto dançavam jazz com uma proximidade maior que o necessário para um dueto.

Papai começou a vigia-la, a proibiu de ir atrás de Bettine, pediu para que a empregada vigiasse seu quarto de noite e nos forçou a voltar a frequentar salões de baile para, com sorte, conquistar um marido. E Sidonie que sempre foi imprevisível, ficou pior ainda. Quebrava as pratarias, gritava com meu pai, não comia nada, trancava-se o dia inteiro no seu quarto e chorava rios naquela cama que um dia foi o berço de amor para as duas mulheres apaixonadas. Ás vezes quando ele entrava em seu quarto e a obrigava a sair de sua cama ela o provocava, dizendo que estava abraçando o travesseiro e sentindo o cheiro que Bettine havia deixado ali.

Um dia elas conseguiram se ver. Eu estava com febre e então em vez da empregada cuidar para que Sidonie não fugisse, ela ficou comigo no meu quarto, subindo e descendo com panos molhados, chás de ervas e lençóis novos. Eu não estava tão mal, mas usei meus dotes de teatro para dar um pouco de liberdade para minha irmã. Enquanto a empregada descia para a cozinha, buscando mais chá, fui até o parapeito de minha janela para observar a última vez que Sidonie viu Bettine. Na esquina de nossa casa, iluminada pelos postes de luz fraca, com a lua minguante e uma melodia distante elas se beijaram com ardência. No momento que deveriam se separar nenhuma das duas teve coragem de dar o primeiro passo. Era agoniante para mim, uma mera espectadora, presenciar tamanha dor.

Sidonie era só melancolia. Não falava mais com ninguém, inclusive comigo. Um dia papai me convidou para ir com ele até o Le Marais, onde procurava uma nova casa — longe de Montmartre — para que pudéssemos sentar em algum café e comer alguma coisa. Pedi macarons, chá gelado e papai preferiu não comer nada, apenas conversar comigo.

Ele acendeu um charuto antes de começar a falar. Enchi toda minha boca de comida, pois assim ao menos tinha uma desculpa para não respondê-lo. O cheiro de tabaco me dava náuseas e até hoje me lembra ele em seus momentos mais difíceis.

— Temos que fazer algo com sua irmã, — papai disse — e eu estou falando com você Carla.

Tomei o chá para evitar que o macaron descesse rasgando minha garganta.

D'accord.

D'accord não significava realmente que eu concordava com meu pai, mas era constantemente usada para cessar a conversa o mais rápido possível. Dessa vez não funcionou.

— Ela está desde domingo sem comer. Ela não tomou nem a eucaristia na missa. — Saint Clair disse.

— Talvez se fossemos a Sacré-Coer ela comungasse. Nós não estamos acostumadas com as missas em Notre-Dame.

— Carla.

— Desculpe. — Não sabia por que estava me desculpando, mas pareceu o mais certo a fazer no momento.

— Isso não é certo e você não está levando a sério.

— Eu já disse a ela que ela iria morrer se não comesse, papai. E Sidonie disse que estava ansiosa.

— Ansiosa?

— Para morrer.

— Conversei com as Irmãs no domingo. Elas disseram que podem ajudar Sidonie.

— O senhor quer mandar minha irmã para um convento?

Eu não entendia como isso iria ajuda-la em nenhum dos problemas. Nem em sua inclinação para mulheres e muito menos em seu estado de melancolia.

— Para um hospital que pode ajuda-la. Um hospital psiquiátrico.

— Papai, Sidonie não é louca! Não pode manda-la para um manicômio! — Exclamei em uma altura em que todo café escutou.

— Carla...

— Não, não, não...

— Carla! Sua irmã é sim louca. Ela cortou os pulsos. De novo!

Calei-me. Sidonie já havia feito isso, porém há muitos anos. Depois que mamãe morreu minha irmã ficou inconsolável, por quase um ano confinou-se dentro de nossa casa lamentando-se por ela, e certa vez acordamos com os gritos de nossa empregada dizendo que Sidonie estava sangrando no lavabo. Meu pai conversou com o Dr. Bellier, ele nos entregou alguns remédios, conversou com minha irmã e disse que com o tempo ela ficaria bem. Sidonie melhorou, porém a lembrança do corpo de uma garota de treze anos, pequena e ensanguentada não saia de minha cabeça.

— Tenho medo que ela faça algo contra você.

— Mentiroso! — Bradei — Você tem medo que saibam que sua filha está perturbada graças a você.

Saint Clair tirou o charuto da boca e pousou sobre a mesa. Afastei-me apoiando-me na cadeira, mas meu pai inclinou-se sobre a mesa ao ponto de que pude sentir sua respiração em meu rosto. Tabaco.

— Não fale assim comigo nunca mais. Não é difícil coloca-la no mesmo lugar para onde sua irmã vai.

Eu quis chorar. Eu iria chorar se uma heroína não houvesse aparecido de repente como nos romances. Bettine estava coberta por um casaco de pele que provavelmente havia sido presente de Sidonie, seu vestido estava na altura do joelho mesmo sendo inverno, mas seu calçado cobria até o fim de sua panturrilha. Os cabelos estavam presos no penteado da moda e aparentemente ela havia cortado boa parte dele. Dessa vez o chapéu da sorte não estava ali, ela usava uma faixa sobre a testa. Se colocasse uma peninha ao lado estava pronta para uma dança.

— Você é um lixo! O pior ser humano do mundo! — Bettine disse sentando-se a mesa conosco.

— Alguém permitiu que essa prostituta sentasse aqui? — Meu pai pegou novamente o charuto.

Bettine ficou vermelha.

— A prostituta que sua filha ama.

— Minha filha é louca. — Papai disse — Se você também a ama deveria saber disso.

— Sidonie não é louca, monsieur Saint Clair. Você é!

Meu pai riu. Eu desejava do fundo de meu coração que Bettine saísse dali agora antes que aquilo piorasse para seu lado, mas ela não faria isso. Eu via em seus olhos sua obstinação. Ainda eram azuis como o oceano, mas não pareciam mais com um mar calmo e paradisíaco, eles exalavam uma violência capaz de afundar uma frota de navios.

— Mademoiselle Bettany... — papai começou com seu típico desdém.

— Bettine. — Ela fez questão de corrigir.

— Irei dizer apenas uma vez. Nunca mais cruze com o caminho de minhas filhas. Nem de Carla e muito menos de Sidonie. Você já se aproveitou o suficiente delas. Ou seus amantes que te compraram essas joias?

— Quero ver Sidonie agora! — Bradou.

— Nunca. Você nunca voltará a vê-la. E se algum dia eu souber que você continua perturbando minhas filhas...

— A policia não irá me prender por isso, monsieur Saint Clair. Sou uma mulher livre.

— Eu mesmo farei questão de me livrar de você.

Pela primeira vez vi Bettine sem palavras. Seu olhar me procurou, mas eu não pude fazer nada além de assentir. Meu pai não estava mentindo. Eu nunca ouvi falar de alguém que ele de fato havia se livrado, mas o conhecia o suficientemente bem para saber que quando o assunto era sua honra ele não tinha escrúpulos morais.

— Agora vá, criança — ele gesticulou para que ela se levantasse.

No mesmo instante Bettine levantou-se. Colocou novamente seu casaco de pele, agarrou sua bolsinha e olhou com ódio para meu pai. Fechei meus olhos quando percebi que ela iria cuspir. Não queria ver a cara de meu pai quando ela concretizasse sua ação.

— Vá se foder, Saint Clair, não vou desistir de um amor. Não tenho medo de morrer, mas se eu fosse você teria já que a única coisa que te espera é o inferno.

E ela se afastou. Foi a última vez que vi Bettine. Às vezes quando fecho meus olhos a imagem daquela jovem tão bonita e transtornada me vem a minha mente. Antes de atravessar a rua ela olhou pela última vez para nós e a intensidade de seus olhos me tirou o sono por várias semanas.

Papai ficou em silêncio. Tirou de seu bolso um lenço e limpou a saliva de Bettine no seu rosto. Ele olhou para mim e eu tive a audácia de sorrir.

— Está rindo? — Ele perguntou.

E por mais que eu tremesse apenas de olhar para seu rosto tive coragem de enfrenta-lo. Por elas.

— Sim.

— Do que?

— Bettine cuspiu em você.

Depois disso fomos para casa em silêncio. Não conversamos mais, apenas tive tempo de ir para o quarto de Sidonie e abraça-la por todo o tempo que nos restou até que o doutor foi em nossa casa para retira-la. É claro que Sidoine se recusou a ir. Quebrou toda a prataria e porcelana que havia restado em nossa casa, derrubou a mesa, gritou obscenidades para toda Montmartre ouvir e saiu sendo carregada por dois enfermeiros.

Desci as escadas logo atrás. Ela estendeu-me a mão e por alguns segundos pude toca-la. Do lado de fora os vizinhos observavam. Alguns haviam feito questão de descer na rua para ver a cena, outros apenas observavam das sacadas ou das janelas. Até os universitários de Sorbonne que eu sempre via rindo observavam minha irmã sendo arrastada com um olhar mortificante. O artista de rua que sempre ficava na esquina de cima havia parado de tocar.

Jogaram-na no carro. Ela continuou se debatendo, mas dois homens eram capazes de contê-la o suficiente para que não escapasse. Em segundos que em minha cabeça aparentaram pertencer a eternidade vi o carro se afastando e levando consigo parte de mim.

Entrei novamente em casa. Fui direto para meu quarto, peguei um casaco, minha bolsa e um chapéu que cobrisse bem minhas orelhas, pois já estava anoitecendo e ficaria ainda mais frio.

— Onde vai? — meu pai perguntou do sofá.

O mesmo sofá onde flagrei pela primeira vez Sidoine e Bettine se beijando.

— Na igreja.

Fui para o Amis de la Vie escutar Vincent tocar saxofone. Tomei todo o rum que Sidonie tomaria em meu lugar. A amiga de Bettine estava ali, mas Bettine não. Eu estava triste, despedaçada, meu coração ardia em tristeza, mas ver aquela garota que eu mau recordava o nome dançar ao som de um bom jazz me fazia bem. Ela deve ter percebido que eu a observava, pois se aproximou de mim e me convidou para uma dança, eu aceitei. Dancei tão bem que minha irmã ficaria orgulhosa de mim. No final da noite pela primeira vez tive coragem de elogiar a habilidade de Vincent. Estava fora de mim.

Os três meses que vieram em seguida sem minha irmã foram sufocantes. Só pude respirar quando a vi novamente. Seu corpo estava ali, mas eu sabia que sua alma estava distante. Ela foi para um manicômio para não ser mais louca, porém quando eu a olhava não via mais Sidonie, dessa forma conclui que a loucura tivesse nascido com ela.

Agora ela estava ali, enrolada no manto vermelho de Bettine, implorando para que nós saíssemos para dançar.

— Bem... — levantei-me — vamos então. O que temos a perder?

Sidonie sorriu.

— Eu já perdi tudo mesmo.

Colocamos nossas roupas mais bonitas, deixei que ela me maquiasse, escolhi minhas luvas vermelhas nunca usadas e saímos por aí, sem destino algum, andando por Roquette como se fosse Montmartre. Sidonie cantarolava aquela canção americana que Bettine cantou no dia em que nos conhecemos, nós rodávamos agarradas nos postes, de vez em quando eu arrancava algumas flores de jardins nas janelas que floriam com a primavera. Carros passavam, alguns rapazes gritavam para nós e eu não conseguia deixar de sorrir em ver Sidonie daquela forma. Viva.

Os flashes de nossos tempos de ouro voltavam a minha mente. Seus lábios vermelhos. Os vestidos negros. Ela sentada na calçada, em frente ao Moulin Rouge, virando uma taça de champagne enquanto Bettine, Vincent e Amalie vibravam.

Nós estávamos tão longe do Moulin Rouge, mas eu conseguia vê-lo tão claramente.

Não demorou muito para que começasse a chover. A chuva não nos afugentou, ao contrário, nos deu mais energia ainda. Depois de tanto tempo voltei a me sentir viva. Senti que conseguiria ir correndo até a Torre Eiffel. Era claro que não seria possível, mas se fosse, lá nós estaríamos.

Naquela noite nós dormimos juntas. Abracei Sidonie de uma forma que pude escutar as batidas de seu coração a noite toda. E em meio dos trovões de uma tempestade que se formava seus batimentos me acalmavam. Soube naquele instante que nada no mundo era mais forte do que meu amor por minha irmã.

Nada, no mundo todo, seria capaz de separar nossas almas.

Ela morreu seis meses depois.

Minha tia Geniviève disse que a causa era uma doença do coração, que ela estava tão triste que não aguentou mais, pois seu coração se partiu. Eu não duvido da tristeza de minha irmã, mas ela havia contraído febre tifoide e junto a todos aqueles remédios que tomava para controlar a loucura que já a deixavam fraca, era difícil que resistisse a uma doença daquelas. Passei o dia inteiro velando por seu corpo, assim como há dez anos ela havia feito com nossa mãe.

Depois disso me casei com o saxofonista. Papai foi contra, mas eu não me importei, ele havia acabado com a vida de minha irmã e eu não deixaria que fizesse o mesmo comigo. Não importava que eu não fosse mais viver no luxo, com vários empregados ou no conforto de um palacete, eu seria livre. Meu pai nem ao menos compareceu ao casamento e eu não me senti mal, fiquei feliz por nunca mais ter que vê-lo. E nunca o vi de fato. Desde que sai de casa para viver com meu marido nunca mais pisei em Roquette. Nem mesmo meus filhos conhecem o avô.

Desejei que Bettine pudesse ser uma de minhas madrinhas, mas ela havia desaparecido. Pensei que houvesse cedido as ameaças de meu pai, porém um bom tempo depois quando Vincent e eu retornamos ao Amis de la Vie descobrimos que ela havia se mudado para Bordeaux e havia morrido lá. Conta a história que ela voltava sozinha para casa de madrugada, tão bêbada que mau podia manter-se em pé, quando ao atravessar a rua um carro a pegou. O motorista disse que ela se atirou na frente do carro, mas os policiais não acreditaram, eu por outro lado não dispenso essa hipótese.

Se doeu em Sidonie também doeu em Bettine.

O que nenhuma das testemunhas nega é que mesmo no chão, sem vida e com os cabelos loiros ensanguentados, ela ainda era uma das mulheres mais lindas que o mundo teve o prazer de conhecer.

Nunca me esqueci delas. Mesmo não morando em Montmartre e muito menos em Roquette ás vezes no silêncio da noite escuto o jazz do final da década de vinte ecoando em meus ouvidos. Escuto seus pés batendo no chão acompanhando o ritmo da música, as taças de champanhe brindando, suas risadas, e de vez em quando, quando a música para de tocar,

suas juras de amor. 

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