Capítulo 9 - Um guerreiro
ANNE E GILBERT
A fazenda era imensa, tão grande que Anne levara quase uma semana para conhecer todas as suas dependências. Roy a levara para lá logo no dia seguinte de seu casamento, e lhe mostrara os cômodos principais. Todos os outros, Anne conheceu ao longo dos dias que pasaaram, fazendo ela mesma uma excursão pela casa toda, afim de conhecer com mais profundidade seu novo lar.
A casa dos Gardners tinha todas as características dos novos ricos. Nada de material parecia faltar ali. Desacostumada com tanto luxo, Anne achava um exagero tantos cômodos para apenas duas pessoas. Quando levantara essa questão em uma conversa com o marido, ele lhe dissera que a casa era perfeita para uma família numerosa, e que muito em breve, ele queria ver crianças enchendo cada parte daquela fazenda, por isso, Anne deveria se preparar para os filhos que logo viriam.
Caminhando naquela manhã pela casa toda, ajeitando cada coisa em seu lugar, Anne suspirou desanimada ao pensar em filhos. Ela adorava crianças, e sempre sonhara em ser mãe, mas por alguma razão, pensar em ter filhos com Roy não a animava nem um pouco, embora sempre soubera que ao se casar, esse fator faria parte de sua vida e de seu marido.
Porém, o que ela não queria admitir era que sua vida de casada era extremamente decepcionante, e que todos os planos e sonhos que tivera a respeito de Roy foram arrasados brutalmente pela realidade fria e cruel ao descobrir, que tinha um marido que parecia não se importar com seus sentimentos em relação a ele ou mesmo sobre a vida que estavam levando juntos.
Logo no primeiro dia que chegaram ali, ele lhe dera uma lista de obrigações que esperava que ela realizasse diariamente, e também lhe dissera com a maior frieza tudo o que desejava dela como esposa. Depois de conviver com Ruby e Jerry, e ver o amor que tinham um pelo outro, principalmente naquele momento em que passavam pela prova mais dura de suas vidas, Anne acreditara que pudesse viver uma história parecida.
Na verdade, ela vivera, mas apenas em sua imaginação, porque o homem por quem sentira seu coração bater mais forte não retribuira seu sentimento, ela se sentira uma grande tola por ter deixado que sua imaginação a iludisse daquela maneira. E agora se via em um casamento, onde era vista apenas como uma governanta para cuidar daquela casa imensa, e sua única vantagem ou talvez nem tanto era que tinha o sobrenome do dono de tudo aquilo.
Ajeitando as cortinas no quarto de hóspedes, Anne se perguntava de que valia tudo aquilo se não estava feliz? Se seu coração continuava a bater por um guerreiro que preferia sua vida errante do que aceitá-la como mulher? Será que sua infelicidade atual não existiria se ela nunca tivesse conhecido Gilbert Blythe? Se ela tivesse aprendido a olhar para Roy com mais afeição? Será que seus sentimentos sobre não se ajustar a vida que viera viver ali seriam diferentes, se não comparasse cada ação de seu marido com o único homem que a fizera sentir o sabor da paixão?
Anne suspirou alto e somente para si mesma, se recriminou por tantas perguntas para as quais nunca teria as respostas que desejava. A vida que escolhera era aquela, Roy era seu marido perante Deus e dos homens, e de nada adiantava tentar imaginar como teria sido sua vida se tivesse feito escolhas diferentes. Ela tinha que esquecer tudo o que Gilbert a tinha feito sentir, e entender que aquele homem jamais seria seu, especialmente agora que ela tinha assumido um compromisso sagrado com outro.
Tudo o que devia fazer era tentar construir um relacionamento harmonioso com Roy para que pudesse por fim ter o lar que tanto idealizara antes de chegar até ali. Era certo que não tinham começado bem sua vida de casados, mas Anne não podia esperar que tudo fosse perfeito no pouco tempo que estavam juntos. Levava-se tempo para que um casal se entendesse de fato, e tanto Roy quanto ela não tinham tido tempo de se conhecerem como se devia para que um sentimento de afeição crescesse entre eles. Com o passar dos dias e paciência, ela tinha certeza de que acabariam se entendendo, e quem sabe ela não descobriria que por trás daquela casca grossa que Roy apresentava ao redor de seu coração, havia um homem carinhoso esperando para ser amado assim como ela?
Apesar de toda boa vontade do mundo em mudar o cenário de sua vida, sua mente traiçoeira pareceu zombar dela ao fazê-la se lembrar que também não conhecia o Sargento Blythe tão bem assim e a atração entre eles fora instantânea. Como poderia pensar que os laços precários sobre os quais tentava equilibrar seu recente casamento, superariam qualquer sentimento ou emoção que tivera por Gilbert nos poucos dias em que estiveram juntos?
Anne sacudiu a cabeça com força como se assim pudesse colocar um pouco de juízo dentro dela, mas ainda assim, ela não conseguiu tirar de dentro de si a lembrança do toque de Gilbert . E o pior era que tinha mais pecados a confessar quando pensava em sua intimidade com o marido. Era tão ou mais decepcionante que seu casamento, e isso sem levar em conta a noite de núpcias que fora um desastre.
Depois que tudo terminara e Roy pegara no sono, ela fora até o banheiro e esfregava sua pele com bucha e sabonete até que se sentisse limpa do toque dele. Em sua memória estavam os olhos prateados do Sargento Gilbert, olhando-a com admiração e desejo, e apesar da sua impetuosidade masculina, acostumado como Roy aos rigores da vida militar, ele sempre a tocara com suavidade, como se reverenciasse sua pureza e inocência, e por isso, Anne nunca sentira medo ou relutância em deixá-lo descobrir seus segredos mais femininos.
Sem pudores ou vergonha, ela o seguira em todos os estágios da paixão. Gilbert a deixara segura o suficiente para que ela entendesse que não havia limites ali, ou necessidade de reprimir suas vontades. Ele abrira a porta de suas emoções mais profundas e a deixara livre para voar como quisesse, e apesar de no final ele ter rejeitado o que ela lhe oferecera, ainda assim, Anne se sentia agradecida por ter descoberto uma parte sua totalmente desconhecida para si mesma, e que viera à tona só por causa dele.
Por isso, na pior noite de sua vida, que deveria ter sido a melhor, ela se agarrara à lembrança daquele homem generoso, que ela lamentava não ter tido a oportunidade de conhecer mais a fundo. Talvez um dia fosse condenada por esse pequeno ato de traição platônica contra seu marido, porém fora assim que suportara a conclusão de um fato , cujo único participante fora seu marido, pois seu corpo estava ali, mas não sua alma.
Nos dias que se seguiram, tivera mais duas noites assim, e não pudera evitá-las. Roy não era muito bom em aceitar uma recusa, e muito menos levava em conta o cansaço físico dela, depois de tomar conta daquela casa enorme o dia todo. O que lhe importava era o que ele queria, e se Anne não concordasse, seu marido não fazia questão nenhuma de saber.
Roy não usava de uma violência explícita, mas também não era delicado com Anne naqueles momentos. A ruivinha logo entendeu que não teriam um relacionamento físico como sonhara, e por isso ,ela aprendeu a se recolher dentro de si mesma nesses instantes, onde cometia seu pecado mais doce e vivia seu sonho mais impossível.
Ela terminou de arrumar o quarto de hóspedes e ao passar pela sala de jantar seu olhar encontrou o relógio de parede que marcava onze da manhã. Apressadamente, Anne caminhou até a cozinha, pois logo Roy viria almoçar em casa e ele detestava atrasos na hora da refeição. Isso foi pontuado por ele em uma das exigências que fizera logo no primeiro dia que chegaram ali, e a ruivinha vira em seus olhos que esse era um erro que não toleraria, e como ela não desejava despertar a sua ira, Anne cronometrava o tempo que gastaria em cada tarefa, para que as refeições nunca se atrasassem.
Naquele dia em especial, ela estava ansiosa para que Roy chegasse, porque Anne esperava falar com ele sobre seu trabalho. Ela estava saudosa demais da sala de aula e lecionar sempre fora sua vocação desde cedo, por isso, Anne não via a hora de voltar a ter contato com crianças e seus olhinhos curiosos, e sempre dispostos a aprender algo novo, e sentia tanto falta disso que seu coração chegava a doer. A sala de aula sempre fora seu segundo lar, e esperava encontrar um lugar ali em Charlottetown onde seus conhecimentos como educadora poderiam levar a luz do conhecimento a pequenas mentes questionadoras.
Ao meio dia em ponto, Roy chegou, e Anne o ouviu entrar em casa sem grandes expectativas, mas ao mesmo tempo impaciente pela conversa que deveria ter com ele. Ela estava entediada dentro daquela casa, e pensar em passar mais semanas ou até mesmo meses apenas cuidando de afazeres domésticos quase a matava de tédio. Em Toronto tivera uma vida extremamente atarefada, nunca sobrava muito tempo para diversão, mas dificilmente poderia dizer que seus dias fossem monótonos. Naquela época, apesar do trabalho árduo diário, ela tinha tanta vontade de viver e realizar seus sonhos que nada derrubava seu ânimo. Era isso que queria de volta, aquela alegria de saber que o nascer de um novo dia lhe traria novas esperanças e oportunidades de ser feliz, e fazer de sua existência algo digno de ser lembrado
-Olá. - ele disse, assim que entrou na cozinha onde Anne acabava de colocar a mesa.
-Olá. - ela respondeu, sorrindo para o marido que não lhe sorriu de volta, fazendo-a se sentir magoada. Ela ainda não se acostumara com o jeito frio de Roy que nunca sequer lhe dava um beijo de bom dia. Ele não parecia estar interessado em estreitar os laços matrimoniais entre os dois como Anne desejava, mas ela decidiu que não desistiria. Talvez Roy tivesse sido criado dentro de um código moral que não envolvia manifestações de carinho explícitas, e com o tempo ela pudesse mudar essa particularidade da personalidade dele .
A carreira militar costumava deixar marcas profundas nas pessoas, e muita dessa dureza de seu marido, Anne imaginava que vinha da rigidez e exigência da profissão. No entanto, ela acreditava que uma pitada de leveza poderia causar grandes transformações, e era isso que queria ser para Roy, a suavidade que transformaria seus dias difíceis em flores.
Logo estavam sentados à mesa e saboreando o almoço caprichado que Anne preparara. Seu marido não costumava fazer elogios, mas por sua expressão facial satisfeita, ela acreditava que Roy apreciava seu tempero e seu talento para doces. Aproveitando que ele parecia mais aberto a conversar com ela naquele momento, Anne decidiu aproveitar a oportunidade antes que ele voltasse a exibir sua máscara de frieza e indiferença.
-Eu gostaria de te fazer um pedido. - ela disse com a voz em um tom baixo,observando-o mastigar a comida em um compasso que parecia calculado.
-Que pedido? - ele perguntou, parecendo muito pouco interessado no que ela tinha a lhe dizer.
-Antes de nos casarmos, eu te contei sobre minha vontade de continuar trabalhando como professora. - o rapaz balançou a cabeça, concordando com o que ela lhe dissera, e assim ela continuou.- Por isso, eu estava pensando que está na hora de eu voltar para o meu trabalho. Charlottetown tem muitas escolas com escassez de professores, e por isso, quero me candidatar para alguma instituição próxima, onde eu possa realizar as minhas atividades como fazia antes em Toronto.
-Não. - Roy respondeu secamente, fazendo o sorriso de Anne desaparecer, enquanto a decepção a atingia como se tivesse levado um tapa no rosto.
-Mas você disse que iria me apoiar quando eu decidisse voltar a trabalhar.
-Mudei de ideia. Essa casa precisa de você e duvido que terá energia ou tempo para trabalhar fora.- ele respondeu, continuando a comer sem se importar com a cara magoada de Anne.
-Eu adoro lecionar, Roy. A minha vida está dentro de uma sala de aula. É lá que me identifico e sou realmente feliz.- ela disse em um discurso inflamado que não comoveu nem um pouco seu marido que lhe respondeu:
-Sinto muito, Anne, a minha última palavra é não. Você terá que ser feliz cuidando dessa casa, e se preocupando com nossos filhos que logo virão.- Anne sentiu o impacto das palavras dele, e percebeu que não adiantaria insistir. Roy parecia ser o tipo de homem que não voltava atrás em sua decisão, e esse pensamento a deixou terrivelmente deprimida. Ela mal comeu seu almoço naquele dia, e quando Roy voltou para o trabalho, de certa forma, ela ficou aliviada.
Saber que ele frustrara seus planos, e tomara uma decisão por ela sem sequer conversar ou saber o que ela pensava sobre o assunto, lhe disse um pouco mais sobre o homem com o qual estava casada. A ideia de ficar presa dentro daquela casa imensa realizando tarefas exaustivas e repetitivas sem descanso, ou variação a fez perceber mais uma vez que seu casamento nunca seria como desejava, cheio de cumplicidade e amor.
Esse pensamento a levou mais uma vez de volta a outra lembrança, de um homem destemido que parecia não temer nada e a ninguém, mas tinha tanta gentileza em seus modos, calmaria na maneira de se expressar, e um calor naqueles olhos prateados que a fazia se perguntar como ele seria na intimidade de um quarto a dois. Seu peito doeu ao fazê-la entender a realidade na qual estava inserida, dentro de uma vida que pensara ser melhor para si naquelas circunstâncias, estava presa pelo compromisso de um casamento, o qual idealizara em seus sonhos tão distantes, mas que se tornaram pó diante da enormidade de sua infelicidade e constatação de que seus dias seriam sempre assim, vazios e sem perspectiva.
Era noite quando seu marido chegou em casa no fim do dia. Observando a hora no relógio, Anne percebeu que ele estava atrasado há pelo menos uma hora e meia. Fato raro em seu currículo impecável de ser sempre pontual, o que chegava a ser um ato metódico. Roy não lhe deu nenhuma explicação sobre o seu atraso e Anne também não se importou em perguntar. Estava aborrecida demais pelo que conversaram no almoço, e de certa forma era até confortador o silêncio que imperava dentro daquela casa, mesmo com a presença se duas pessoas dentro dela.
Com cara de poucos amigos, Roy jantou e foi para a cama logo em seguida. Anne se demorou um pouco mais na cozinha de propósito para fugir da intimidade que teriam se deitasse na cama com ele, e naquela noite ela não estava muito disposta a ceder às investidas do marido. Quando por fim se juntou a ele, Roy dormia profundamente, e assim, ela se sentiu segura para também descansar, tomando o cuidado de manter uma distância do corpo dele que sem que ela o desejasse, estava começando a causar-lhe certa repugnância.
Ela despertou no dia seguinte extremamente cansada, e quando foi para a cozinha encontrou Roy totalmente absorvido em sua leitura matinal do único jornal que circulava pela cidade. Ele levantou o olhar para ela e disse:
-Se apresse com o café, pois teremos um compromisso na arena do meu regimento.- Anne assentiu e começou a preparar o café da manhã, se recordando que Ruby havia mencionado tal evento em comemoração ao dia do soldado, mas com tanta coisa que acontecera nos últimos dia, ela tinha esquecido completamente.
Eles saíram de casa logo após o café embaixo mais uma vez de um sol inclemente que tirava o ânimo de qualquer um. Felizmente, Roy dispensara os cavalos, e alugara um carro para que pudessem chegar ao regimento sem terem que enfrentar o calor excessivo. Quando finalmente chegaram lá, o coração de Anne bateu rápido ao fazê-la se perguntar se haveria uma possibilidade de ver Gilbert nem que fosse de longe, mas sua sutil animação morreu quando seus olhos não o encontraram em lugar algum.
No entanto, ela voltou a sorrir ao avistar Ruby e Jerry, Diana que os acompanhava e a Srta Stacy que lhe acenou alegremente quando a viu se aproximando junto ao marido. Roy cumprimentou Jerry com um aperto de mão formal, e depois se sentou com Anne nos lugares que lhes foram destinados. Felizmente seus assentos eram ao lado dos Baynards, e por isso lhe foi possível conversar com a amiga com certa intimidade, enquanto Roy se envolvia em uma discussão de teor político com o marido da amiga.
-Você está linda, minha amiga. E como vai sua vida de casada?- Ruby perguntou-lhe sorrindo, enquanto Anne observava-lhe o rosto pálido com apreensão. Ela parecia ainda mais frágil que a última vez na qual se falaram, e a certeza de que os dias de sua tão prezada amiga estavam pouco a pouco se findando bateu fundo em sua alma. Quando grande esforço, Anne lhe sorriu de volta e respondeu:
-Está tudo bem. - Era uma grande mentira, mas não queria deixar Ruby preocupada com ela justamente naquele ponto em que sua saúde já estava abalada. Era melhor que a amiga acreditasse que seu casamento era um sucesso, pois assim Anne também seria poupada de compartilhar sua infelicidade.
-Que alegria ouvir isso. Confesso que fiquei muito preocupada com sua inexperiência ao entrar nesse casamento com um homem como o Sargento Gardner que apesar de distinto, me pareceu um pouco sério demais para a sua alegria espontânea, Anne. Espero que vocês sejam muito felizes, e construam um casamento tão forte quanto o meu e de Jerry.- a sinceridade da amiga era comovente, por isso, Anne se apegou a ideia de não deixá-la saber do quanto o desejo dela estava longe de acontecer.
-Eu penso da mesma maneira. - Anne respondeu, tentando parecer feliz enquanto seu coração dava voltas angustiadas em seu peito.
-O show vai começar. - a Srta. Stacy disse, interrompendo a conversa que Anne e Ruby estavam tendo, o que deixou a ruivinha interiormente aliviada, pois não sabia por quanto tempo sustentaria aquele papel de esposa feliz se a amiga insistisse no assunto.
Para surpresa de Anne, muitos cavaleiros se posicionaram em frente a plateia ávida por ver o espetáculo que lhes seria apresentado naquele dia festivo. Havia uma mistura dos que faziam parte do regimento de Jerry e Roy, e outros que eram guerreiros de muitas tribos espalhadas pelas planícies de Charlottetown. Anne achou curioso aquele fato e quando perguntou a Ruby como aquilo era possível, a amiga lhe explicou, que os nativos eram considerados parte da cultura das batalhas locais por terem lutado muitas vezes no passado ao lado da Cavalaria Canadense, a fim de ajudarem na libertação da população que ali vivia, de intrusos que que colocariam a paz e vida de todos em risco.
Enquanto a amiga lhe contava toda a história sobre Charlottetown, os olhos de Anne se prenderam a um cavaleiro em particular. Ele usava calça de couro com franjas dos lados, modelando seus quadris de forma quase escandalosa, e nos pés ele calçava mocassins também de couro. Os olhos dela subiram pelo peito musculoso e nu, tão bronzeado que chegava a brilhar por conta do aspecto dourado, chegando aos cabelos escuros onde ele prendera uma faixa vermelha que ia da testa até a nuca, mas foi nos olhos prateados que ela se perdeu, se lembrando como ficavam escuros e intempestivos quando desafiados ou cheios de ira. Eles também se suavizavam quando a encaravam com ternura, fazendo-a quase acreditar que ele podia amá-la com a mesma intensidade que ela o amava.
-Aquele é o Sargento Blythe?- Rachel Lyndie perguntou ao encarar o rapaz que tinha abaixado a cabeça para falar com seu cavalo.
-É sim.- Ruby confirmou, enquanto Anne não conseguia tirar os olhos dele.
-Por que ele está vestido como um mestiço qualquer? - Rachel perguntou novamente, fazendo com que as quatro mulheres sentadas ao lado dela a olhassem com reprovação.
-Ele está representando o povo dele. Se você não sabe, o Sargento Blythe tem sangue índio e pediu para o Jerry deixá-lo participar desse evento ao lado da comunidade indígena. - Ruby explicou, mas era nítida seu desagrado com Rachel que demonstrava claramente seu preconceito velado.
-Que importa de que lado o Sargento Blythe está? Aquele rapaz tem mais dignidade que muitos homens que possuem cem por cento de descendência branca. Seu comentário foi totalmente desnecessário. - a Srta. Stacy disse para a amiga que baixou a cabeça e preferiu não dizer mais nada, enquanto Anne mentalmente concordava com a mulher mais velha, e teria defendido Gilbert abertamente se os olhos de Roy não estivessem sobre ela.
Naquele momento todos se calaram, porque a competição se iniciou e ninguém queria perder um minuto daquele evento que acontecia apenas uma vez no ano, e era uma das poucas atrações que teriam em muito tempo e que reunia famílias de todos os lados.
A atividade consistia em os participantes apontassem uma corrida a cavalo e quando chegassem a um ponto marcado, deveriam atirar uma lança que carregavam nas mãos o mais longe que pudessem. Ganhava o participante que fizesse mais pontos nos dois quesitos.
Assim que foi dada a largada, Gilbert se destacou, e não era dúvida para ninguém que ele levaria o prêmio. Anne por sua vez não conseguia desviar seus olhos dele, hipnotizada por cada movimento que ele fazia em cima do cavalo, seu corpo musculoso e ágil deslizando pelo ar como se não pesasse quase nada, seu rosto de traços singulares fechado em uma concentração profunda do que estava realizando naquele momento,
Gilbert avançou sem dificuldade nenhuma, deixando para trás todos os seus adversários que se esforçavam para alcançá-lo a cada passo vencido. Logo ele atravessou a primeira linha, e atirou a lança no ar, a qual fez um movimento perfeito antes de cair por terra, enquanto outras se seguiram bem atrás dela.
Quando o último cavaleiro chegou ao seu destino, foi calculado o tempo de corrida de cada participante e a distância a qual a lança alcançou ao ser lançada pelo cavaleiro em seu ato final. Não foi surpresa para Anne e para a maioria das pessoas ali presente quando Gilbert foi anunciado como vencedor, pois ele tinha sido de longe o melhor participante daquela competição.
Ele foi chamado para receber o prêmio, e após a medalha ter sido colocada em seu pescoço pelo prefeito da cidade, seu olhar cruzou com o de Anne, e seu coração o fez reviver a dor de tê-la perdido. Fazia semanas que não a via, especificamente desde o dia do casamento dela, e depois disso, ele se mantivera ocupado com inúmeras atividades para não pensar em como sua história com ela havia terminado. E em parte, sua tática funcionara, porque quando chegava em casa estava tão exausto que caia na cama e só acordava no dia seguinte.
Porém, havia noites em que o sono não era tão fácil de ser conquistado, e ele acabava passando as horas seguintes encarando o teto e se lembrando da única mulher que conseguia desviá-lo do seu principal objetivo. Observando-a naquele momento, Gilbert não podia deixar de notar como ela mudara naquele tempo que não a tinha visto. Seu corpo parecia ter desabrochando, seus cabelos pareciam mais longos e os olhos pareciam mais claros, brilhando intensamente como dois diamantes azuis. Entretanto, ela ainda exibia uma inocência adorável naquele rosto de boneca, que o atraía absurdamente. Apesar de ter se casado com o pior crápula que ele já conhecera, Gilbert ficava feliz por constatar que Roy Gardner não corrompera aquela alma tão pura.
-Ei, você!- Gilbert ouviu alguém dizer atrás dele, e quando se virou seus olhos fitaram a única pessoa que não fazia questão nenhuma de ter em seu campo de visão. - Tire os olhos da minha mulher, seu mestiço imundo!- Gilbert não pensou que reagiria com tanta violência ou rapidez diante das palavras que ouvira de Roy Gardner. Normalmente, ele manteria seu autocontrole intacto , mas a raiva, o rancor, a ira chegaram antes que ele pudesse neutralizá-los, e no minuto seguinte suas mãos estavam na garganta de Roy , enquanto o rapaz o olhava aterrorizado.
Então, uma voz próxima a ele lhe disse:
-Por favor, Sargento Blythe. Solte-o. - Era Jerry Baynard, seu superior, mas ali não estavam a trabalho, por isso, Gilbert não achava que tivesse que obedecer a uma ordem direta como faria se estivesse usando sua farda do regimento.
-Não estamos trabalhando, tenente. Então não vejo porque tenho que ouvi-lo. , Gilbert disse com sua voz cortando o ar como se fosse um chicote.
-Não estou lhe pedindo como seu superior e sim como amigo.- Jerry respondeu, colocando a mão no ombro de Gilbert para acalmá-lo.
-Você sabe o que esse crápula merece.- Gilbert disse entre dentes, enquanto continuava a apertar o pescoço de Roy que agora lutava para respirar.
-Essa é uma questão pessoal sua com ele, Sargento, mas pense nas pessoas que estão aqui hoje com suas famílias. Você as está assustando.
Gilbert levantou o olhar e viu mulheres e crianças que o observavam aterrorizadas, mas foi a visão do rosto de Anne que mais o atingiu. Ele viu o medo nos olhos dela, e uma expressão clara de desconforto como se não o reconhecesse, e essa rejeição tão aberta dela em relação a sua dualidade genética o abalou mais do que se tivesse sido atingido por uma lança em uma batalha. Assim, ele afrouxou o aperto de suas mãos e deixou que Roy se libertasse. Com o ódio lhe saltando pelos olhos, o homem gritou enfurecido.
-Eu quero que ele pague pelo que acabou de fazer! Esse bastardo precisa ser preso e condenado!
-Não acho que deveria levar esse assunto adiante, Sargento Gardner. Não se esqueça que o feitiço pode virar contra o feiticeiro, e quem sairia perdendo seria você. - Jerry respondeu em um autoritário.
-O que quer dizer com isso? - Roy perguntou, tocando o pescoço e massageando o local onde ainda havia o sinal das mãos de Gilbert.
-Você sabe o que eu quis dizer, como também sabe que foi você quem começou essa situação. Se não estivéssemos em um local tão cheio de gente, eu deixaria que vocês resolvessem essa pendência entre ambos da maneira que desejassem. - Jerry disse, vendo Roy recuar. Depois ele se dirigiu aos responsáveis pela cerimônia e falou:- Vamos continuar com as celebrações.
Deste modo, a festa continuou sem maiores incidentes e apesar de estar se divertindo ao lado de suas amigas, Anne não conseguia parar de pensar em Gilbert. Ela sabia que ele não tinha apreço por seu marido, mas somente antipatia não causava tamanha ira que vira no rosto dele, e por um segundo, ela temera que o pior acontecesse, pois nos olhos prateados ela enxergara um ódio capaz de destruir alguém com sua força.
Após o episódio, Roy fechara ainda mais seu semblante normalmente sério, e se afastou dela, preferindo estar perto dos oficiais que estavam ali como ele para prestigiar as comemorações do dia. O que ele estava pensando, Anne não sabia dizer, mas podia perceber que ele não ficara nada satisfeito com o que tinha acontecido.
Quase no fim da festa, Ruby convidou Anne para almoçar em sua casa, enquanto Roy preferiu almoçar com um de seus subordinados. Anne se sentiu aliviada por ficar livre de sua presença autoritária, e ter uma refeição sem a costumeira tensão que reinava entre eles.
Um pouco mais tarde, enquanto Ruby descansava e ela esperava por Roy para voltarem para casa, Anne decidiu dar uma volta pelo forte, pois tinha saudades de quando passara seus dias ali, e de certa forma fora feliz. Surpreendentemente, ela se deparou com um jardim de rosas que nunca tinha visto no tempo em que passara como convidada na casa de Ruby e se perguntou como naquele lugar onde imperava um calor insuportável, poderia algo tão delicado e lindo sobreviver cheio de vida?
Seus pensamentos foram interrompidos por barulho de passos que pareciam cautelosos ao se aproximarem de onde ela estava, e ao se virar para confrontar a presença inesperada naquele local tão pacificio, Anne quase parou de respirar ao ver Gilbert a dois passos dela. Ele estava exatamente como na competição. Seu dorso nu parecia ainda mais musculoso e bronzeado agora que estavam tão próximos, e os olhos que enfeitiçavam a mente dela, faiscavam como se fossem duas pedras preciosas raras. Anne nunca conhecera um homem tão atraente quanto aquele, que não precisava de muito para ser notado por qualquer mulher. Havia uma força em seu gestos que chegava a lhe tirar o fôlego, e um magnetismo que atraía seu coração completamente.
Gilbert era um desses homens que exibia uma natureza sensualmente desinibida, e sequer percebia o tumulto que causava nas pessoas ao seu redor. Ela notara enquanto ele participava da competição que não era somente ela a quem ele fascinava, mas sim a todo o público ali presente sendo feminino ou não. As mulheres sonhavam com a beleza daquele rapaz misterioso, e os homens o admiravam por suas habilidades como cavaleiro. Era quase impossível não se deixar levar por fantasias quando o fruto do seu desejo mais proibido a olhava como se quisesse possuir a sua alma.
-Desculpe- me por perturbar sua paz, Anne, mas eu não podia ir embora sem vê-la por alguns minutos a sós. - Gilbert disse, fazendo o coração de Anne bater descontrolado. Não devia se sentir assim diante de um homem que não era seu marido, mas como congelar todas as suas emoções? Gilbert era como o sol e ela precisava desesperadamente do seu calor.
-Por que? - ela quase sussurrou.
-Eu queria saber como você está?- ele respondeu, parando tão próximo dela que ela podia ver cada pequeno detalhe daquele rosto sem defeitos.
-Eu estou bem. Obrigada por se preocupar. - o sorriso dela foi sincero, e Gilbert mal podia conter a vontade de tomá-la nos braços. Quantas vezes nas últimas semanas, ele murmurara o nome dela? E quantas vezes ele dissera a si mesmo que era um tolo, pois a tinha perdido e não adiantava se lamentar?
-Ele a está tratando bem?- ela o ouviu perguntar e por um segundo, Anne ficou tentada a contar sobre seus momentos difíceis naquele casamento, mas ela teve que se lembrar que apesar de Roy não ser o marido com o qual sonhara, ela não podia traí-lo daquela maneira, por isso respondeu:
-Sim.
-Eu queria me desculpar pela cena que presenciou. Eu perdi a cabeça.- para a surpresa do rapaz que esperava ouvir uma lista de críticas de Anne pela forma como se comportara com o marido dela, a ruivinha se aproximou, tocou o rosto dele com carinho e disse:
-Eu fiquei preocupada com você. Nunca o vi tão furioso. - seus olhos se conectaram, tornando Gilbert ainda mais consciente da beleza dela e de seus dedos macios na pele dele, e como se seus movimentos tivessem vida própria e não pudessem ser controlados,ele a tomou nos braços e afundou a cabeça nos cabelos macios, aspirando o perfume de lavanda deles, enquanto as mãos de Anne se espalmavam em seu peito. Eles ficaram assim abraçados por alguns segundos, pensando em tudo o que podia ter sido a história dos dois, e como se estivessem em sincronia, eles se afastaram um milímetro e se encararam novamente. Os olhos de Gilbert se fixaram nos lábios vermelhos, os quais Anne entreabriu, esperando pelo beijo com o qual vinha sonhando.
A tentação era forte, e seus sentimentos por aquela garota espetacular estavam todos expostos. Ele teria apenas que inclinar a cabeça, e logo o sabor tão doce dela estaria em seus lábios mas então, o rapaz se lembrou que Anne era casada agora e que não podia ser desrespeitada por ele daquela maneira. Assim, Gilbert a soltou e disse:
-Preciso ir. É melhor voltar para seu marido agora. Aqui fora não é seguro para uma garota sozinha. - sem esperar que ela lhe respondesse, Gilbert se foi, pensando que seus dias como Sargento Blythe estavam acabados. Era melhor que assumisse de vez seu lugar no meio de seus ancestrais como Estrela da Manhã e tomasse nas mãos o destino que lhe fora preparado.
Anne voltou para dentro, sentindo-se desapontada. No fundo ela sabia que Gilbert agira certo em não deixar que o beijo entre eles acontecesse. Ela tinha um marido e não era uma mulher livre, porém seu coração tinha uma opinião diferente, pois perdido no amor que sentia por ele, o pensamento que lhe passava pela cabeça era que nada com Gilbert seria errado.
Quando Roy veio buscá-la um tempo depois, Anne sentiu algo pesado nas feições do marido, que não lhe dizia nada, mas não tirava os olhos dela, o que lhe causava calafrios. Naquela mesma noite, como vinha fazendo ultimamente, Anne se demorou na cozinha, esperando que quando chegasse ao quarto, Roy estivesse adormecido, mas quando por fim resolveu se deitar, ele estava a espera dela e sem rodeios perguntou:
-O que você tem com aquele mestiço imundo?
-Nada. - Anne respondeu, engolindo em seco ao ver a ira dentro dos olhos do marido.
-Não tente me fazer de idiota. Ele não te olharia daquela maneira se não tivesse nada entre vocês. - Anne não respondeu, pois seu corpo todo tremia e não queria que Roy percebesse o quão aterrorizada estava.
-Vamos, me responda. Ele colocou as mãos imundas em você?- Anne sacudiu a cabeça, negando, mas Roy lhe disse:- Você mente, mas vou te mostrar o que é um homem de verdade, e para que saiba que é minha e que nenhum outro tem o direito de te tocar a não ser eu.
Então, ele a agarrou pelo pulso, e a jogou na cama, se deitando por cima dela, enquanto seus lábios cruéis desciam sobre os dela com violência. E assim, enquanto Roy marcava seu corpo com sua possessividade, Anne se escondeu novamente no fundo de sua mente, onde apenas a chama de seu amor por um lindo guerreiro importava.
Olá, pessoal. Mais um capítulo postado. Me deixem seus comentários e votos se quiserem. Beijos
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