Capítulo 25 - Medo
Anne nunca pensou que viveria sob a ameaça do medo. Quando morara no orfanato, ela aprendera desde muito cedo a entender que estava por sua própria conta,que ninguém a defenderia das ameaças do mundo e que precisava ser forte, porque não tinha família, amigos ou qualquer pessoa que realmente se importasse com seu bem-estar.
Assim, ela aprendeu a brigar, discutir e usar as palavras para desestabilizar alguém, pois quando a verdade era revelada da forma mais crua, qualquer outro argumento era jogado por terra.
Seu coração sempre foi valente e sua alma irlandesa não permitia que se convertesse em derrotada. Anne nunca abandonava uma luta e nem deixava pontas soltas para trás. Sobrevivera ao orfanato, à vida solitária e sofrida em Toronto, aos abusos de Roy e aos percalços dos seus primeiros dias na aldeia.
Entretanto, quando encontrara a felicidade, seu mundo estava prestes a desabar, justamente porque Roy continuava rondando, ameaçando sua paz, como se não bastassem os meses que a escravizara dentro da própria casa.
O pior de tudo naquela situação, foi que ela trouxera o mal para dentro daquela aldeia e se perguntava se conseguiria viver com aquilo.
Anne tinha certeza que não fora invenção de Pérola Negra. A moça a odiava, isso era certo, mas podia sentir que havia o dedo de Roy na invasão da aldeia e fora ela, mesmo involuntariamente, que causara aquele desastre.
Pela primeira vez, desde que viera morar ali, Anne se arrependeu de ter vindo,de não ter ido embora quando tivera oportunidade e de ter acreditado que estava livre de todo o pesadelo que vivera.
Sobretudo, não sabia se conseguiria abrir mão de tudo o que construíra ali, da alegria de ter encontrado a liberdade que viera buscar e, principalmente, não saberia viver em um mundo que não tivesse Gilbert Blythe.
Pensar em deixá-lo era como golpear o próprio coração com uma lança, porque a ferida que ficaria, caso decidisse partir, nunca mais cicatrizaria
Ela o amava tão perdidamente, que se recusava a pensar em um futuro sem Gilbert, mas com a ameaça de Roy, que parecia cada vez mais perto, Anne não sabia exatamente o que fazer.
Entre seu coração e sua razão havia uma distância muito pequena, e estava lutando para que prevalecesse a melhor escolha. Porém, até aquele momento, seu coração estava ganhando a batalha.
Deixando seus pensamentos de lado, Anne direcionou um olhar à sua sala de aula e observou com atenção a prima de Gilbert realizar uma tarefa que pedira a ela para fazer.
Kak'wet vinha frequentando as aulas regularmente, o que deixava Anne bastante feliz. Estavam desenvolvendo uma amizade bonita, e a ruivinha quase não podia acreditar que aquilo estivesse acontecendo.
Depois de tudo o que se passara, especialmente pelo que Roy fizera a Kak'wet, Anne achava um milagre que a prima de Gilbert quisesse ser sua amiga.
Às vezes, a ruivinha pegava Kak'wet olhando-a com admiração e carinho. Esse ponto não deixava de ser lisonjeiro, porque ser considerada um modelo de comportamento e caráter por alguém que chegara a odiá-la era realmente uma conquista e tanto.
Anne também admirava Kak'wet, pois a menina possuía uma inteligência acima da média. Aprendia com uma facilidade surpreendente e em pouco tempo de aula, ela já era a melhor aluna dela.
Apenas esperava de todo coração, que Kak'wet mantivesse aquela animação acesa e que se tornasse a professora que queria ser. Anne a vira ajudar as crianças na sala de aula com suas dúvidas mais urgentes e percebera que a menina levava jeito para lecionar.
A ruivinha sabia que podia ajudá-la e o faria, porque mesmo que não fosse sua culpa, ela sentia que devia alguma coisa àquela menina, que quase fora destruída pelo seu ex-marido.
- Anne, aconteceu alguma coisa? - Ela ouviu Kak'wet perguntar e se virou para responder:
- Não, querida.
- Mas hoje você está tão séria e, normalmente, você é a mais animada de todos nós. - Kak'wet comentou, surpreendendo Anne com sua observação tão precisa.
- Estou apenas preocupada com alguns assuntos pessoais. Não se preocupe. Vou resolvê-los em breve. - Anne disse, ensaiando um sorriso suave, pois não queria que a menina soubesse sobre Roy.
Kak'wet já tinha sofrido tanto, e agora que estava reconstruindo sua vida e sonhando com um futuro melhor, não precisava de nada que a fizesse se lembrar do horror pela qual passara
Roy era como o mal encarnado. Espalhava destruição por onde passava e deixava um rastro de tristeza e dor pelo caminho. Anne se perguntava era como ele conseguia viver com uma alma tão podre.
- Quer falar sobre isso? Podemos conversar depois da aula. - Kak'wet sugeriu, fazendo Anne sorrir.
A ruivinha não esperava tanta consideração da menina, pois não eram exatamente amigas ainda. Ainda assim, era bom saber que Kak'wet se importava com ela o suficiente para lhe oferecer apoio, apesar das lembranças que a presença de Anne na aldeia poderia lhe causar.
- Obrigada, meu amor. Mas preciso resolver isso sozinha. - Anne disse, acariciando os cabelos da menina e observando seu rosto de traços fortes.
Ela era tão bonita quanto Gilbert. Os olhos eram bastante semelhantes, pois espalhavam uma sinceridade que podia atrair um coração carente e magoado.
Foi por isso que se apaixonara por Gilbert, além de suas outras várias qualidades. Encontrara naqueles olhos uma confiança que nunca tivera em ninguém e se sentia tão segura naqueles braços musculosos, que era como ter encontrado um castelo no qual se proteger.
Gilbert provava todos os dias o homem maravilhoso que havia em sua alma de guerreiro, e Anne agradecia todos os dias por ele ter a raptado e lhe mostrado como ser amada por ele tinha lhe devolvido sua alegria.
Não queria outra vida senão aquela, e não queria nenhum homem se não fosse Gilbert Blythe, com seu sorriso mágico e seu coração imenso. E era ali que estava o seu pior dilema
- Sei que não te aceitei bem quando te conheci. Peço perdão pela minha ignorância e pela maneira como a tratei. Depois desse tempo convivendo com você, entendi porque meu primo se apaixonou tão perdidamente. Queria também dizer que lamento pelo que passou com seu ex-marido. Consigo enxergá-la como uma irmã que ganhei na dor. - Kak'wet disse tudo aquilo em uma voz suave e baixa para que apenas Anne a ouvisse.
A ruivinha percebeu a maneira como a menina falava as frases um pouco passadas, olhando desconfiada ao redor de si, onde os outros alunos estavam sentados a uma distância pequena das duas.
Anne entendeu que Kak'wet não costumava se expressar daquela maneira com facilidade e tinha vergonha de alguém ouvir e zombar dela.
Gilbert lhe contara como sua prima tinha sido um garota confiante até Roy raptá-la. Aquele era um estrago enorme que ele tinha provocado na vida de Kak'wet, e Anne o odiava ainda mais por isso.
-Obrigada, meu amor. Fico contente que me veja diferente agora. Somos uma família e precisamos ficar juntos. - Anne disse, tentando passar segurança para Kak'wet, mas por dentro, só ela tinha como saber como estava se sentindo.
Estava apavorada com a ideia de Roy aparecer por ali e colocar aquela aldeia em perigo. Nunca se perdoaria se algo mais acontecesse ali por sua causa.
As horas até o final da aula passou mais rápido do que Anne esperava. Assim que os alunos deixaram a sala, ela ajeitou suas coisas e foi para casa. Gilbert tinha lhe pedido para esperá-lo, mas ela preferiu ir antes dele, pois precisava de um momento sozinha para pensar.
Por esta razão, ela decidiu ir para casa sem Gilbert e esperava que o rapaz entendesse.
Após quinze minutos de caminhada, Anne chegou à casa que Gilbert construiu para os dois e a sensação de estar ali era sempre maravilhosa.
Toda vez que entrava pela porta, ela sentia o amor que havia em seu pequeno lar. Gilbert era responsável pelos seus melhores dias naquela vida, e também por lhe dar tanto amor que transbordava pelas paredes daquela casa simples, mas tão aconchegante.
Não encontrara isso na fazenda para qual Roy a levara quando se casaram. A casa, apesar de linda, era fria como seu dono, e nos primeiros dias lá dentro, Anne se sentia como se estivesse aprisionada.
Não havia calor humano e nenhum consolo para a sua solidão. Em um mês dentro daquele lugar, sua luz interior tinha se apagado e seu espírito destroçado pela crueldade daquele homem, a quem se arrependera de ter conhecido e desposado.
Agora estava feliz e renovada, mas se perguntava por quanto tempo? Esse era o fantasma que rondava sua felicidade e Anne tinha medo do que Roy estava planejando.
Tentando recuperar sua serenidade, ela trocou de roupa e começou a preparar o almoço, pois Gilbert logo chegaria e queria que tudo estivesse pronto quando o rapaz viesse para casa.
Assim, durante uma hora, Anne se concentrou na comida que estava preparando, assobiando uma canção que aprendera quando ainda estava no orfanato e se sentindo mais aliviada do que quando chegara.
Por estar totalmente distraída, ela não percebeu Gilbert chegar. Ele parou na porta para observá-la, como fazia todos os dias, porque ainda não conseguia acreditar que aquela mulher linda o tinha escolhido para ser dela.
Sim, porque em toda a história dos dois, desde que se conheceram, ele tinha pertencido a ela e não o contrário.
Seu coração se apaixonara quando a vira naquela estação, vindo de longe, com seus sonhos numa uma mala pequena e seus olhos brilhando de expectativa, sem saber o que a esperava no caminho que escolhera.
Ela o impressionara com sua valentia, escondida em um corpo delicado. Nunca pensara que aquela garota ruiva da cidade, que chegara ali com suas roupas elegantes, transformaria aquela aldeia, desprovida de qualquer conforto, em seu próprio paraíso.
Anne era linda, de todas as formas que pudesse descrevê-la, e se tivesse que desistir da própria felicidade para protegê-la, Gilbert o faria sem pensar dois segundos.
Sem aguentar ficar longe dela, ele se aproximou, a envolveu pela cintura e perguntou:
-Por que veio para casa sem esperar por mim?
- Eu precisava de um tempo sozinha. - Anne respondeu, encostando o corpo no tronco do rapaz.
- Por que? O que aconteceu? - Gilbert perguntou, com seu coração disparado. Era sempre aquele receio que o fazia engolir em seco e prender a respiração toda vez que Anne ficava séria daquele jeito.
Nesses momentos, o pensamento mais persistente que o rapaz tinha era que havia chegado o momento de deixá-la livre, porque era isso que significava amar alguém. Entender que as pessoas tinham direito a ir e vir quando quisessem e, se Anne decidisse deixar a aldeia, tudo o que podia fazer era não impedi-la.
Entretanto, como convencer seu coração dessa verdade, se o seu amor por Anne era tão grande que chegava a ser egoísta? Seu avô sempre dizia que os pássaros livres deveriam ser mantidos livres, porque tinham asas exatamente para voar para onde quisessem.
Mas Gilbert desejava que esse momento nunca chegasse, pois não sabia o que faria com a dor de perder alguém tão valioso para sua vida.
- Quero ser sincera com você sobre algo que eu deveria ter te dito há dias. Estou com medo de Roy, Estrela da Manhã. Eu sei que foi ele quem mandou atacar a aldeia como retaliação por você ter me trazido para cá. - Anne confessou, pois não queria mais sentir aquele medo sozinha. Precisava de alguém para ajudá-la a pensar com coerência para não se encher de paranoias infundadas.
- Quem disse isso a você? - Gilbert perguntou, fazendo-a se virar para ele.
- Não importa quem disse, porque eu descobriria de qualquer maneira. Não quero colocar essa aldeia em perigo. Não é justo que sofram por minha causa. Nada disso teria acontecido se eu não tivesse vindo para cá. - Anne disse, com os olhos marejados.
- Você está arrependida de ter vindo para a aldeia? - Gilbert perguntou, sentindo o aperto em seu coração aumentar. Não queria pensar no que aquelas palavras significavam no contexto em que Anne as usava. Recusava-se a pensar nisso naquele momento.
- Não, meu amor. - Anne respondeu, segurando o rosto dele entre as mãos. - Vir para cá, me trouxe uma felicidade imensa. Mas não posso ignorar o fato de que posso ter causado um mal terrível para esse lugar especial, que me recebeu tão bem.
- Está enganada, Sol de Verão. O que trouxe para essa aldeia foi uma luz imensa. Você não sabe o quanto tem feito bem ao meu povo e a mim. - Gilbert afirmou, pois não podia deixá-la pensar daquela maneira.- Roy Gardner é responsável pelo que aconteceu, não você.
- Você sabe que se eu não estivesse aqui, ele não teria mandado invadir a aldeia. - Anne insistiu.
- Quem sabe? Roy não presta, é maldoso e rancoroso também. Nunca tivemos uma boa relação e ele sempre sentiu raiva por eu ser um dos Sargentos da Cavalaria, considerando-me indigno por eu ser um mestiço. Acho que você estar aqui não é o único motivo. - Gilbert explicou e o que dissera era mesmo verdade.
Roy nunca gostara dele e sabia que Gilbert não se deixara enganar por ele. O ex-marido de Anne era egocêntrico e fingia ser um homem honrado, quando, no fundo, não valia nada. A consciência de que o jovem guerreiro sabia disso só aumentava seu rancor indisfarçável.
- Mesmo assim, eu tenho medo. - Anne respondeu, encostando a cabeça no peito de Gilbert, que a envolveu em um abraço protetor e disse:
- Nada vai acontecer. Estou aqui para cuidar de você. Roy não vai chegar até você, porque para isso, ele terá que passar por mim primeiro. - Gilbert afirmou, continuando a abraçá-la e Anne sabia que podia confiar nele, porque só se sentia segura, quando estava nos braços dele.
- Obrigada. - Ela respondeu, levantando a cabeça para encará-lo.
- Não precisa agradecer. Você é a mulher da minha vida e não há absolutamente nada que eu não faria por você. - Gilbert disse, prendendo o olhar dela no seu.
E por um longo segundo, eles ficaram se olhando, partilhando aquele amor que transcendia suas almas e seus corações, fazendo-os sentir na pele a magia que tornava todos os momentos juntos incrivelmente perfeitos.
Anne aproximou seu rosto do de Gilbert e lançou um olhar lascivo aos lábios do rapaz, que se abriram levemente, como se estivessem esperando pela iniciativa dela de beijá-los.
Sem perder tempo, Anne colou seus lábios, sentindo em sua boca o calor da língua dele que brincava com seu interior, fazendo o corpo todo dela vibrar, como se tivesse passado por uma enorme carga elétrica.
Tudo o que vinha de Gilbert era força, energia e uma paixão que corria pelo sangue dela, até roubar-lhe as forças e a razão.
Ele a sentou em cima da mesa, porque assim podia senti-la mais perto. As mãos fortes e masculinas correram pelo corpo dela, coberto pelo tecido do vestido, em uma busca desesperada por sentir cada contorno que sua mente e seus lábios conheciam intimamente.
Esse fogo entre eles queimava todas as noites, talvez porque o amor que sentiam fosse alimentado por emoções intensas. Gilbert mostrara a Anne como se sentir uma mulher completa, e a ruivinha ensinara a Gilbert como expressar seus sentimentos por meio do toque, dos olhares e do desejo.
Era assim que percebiam que foram feitos um para o outro, e que as diferenças sociais que poderiam existir entre os dois não significavam nada.
Anne via no rapaz muito mais do que suas raízes indígenas, o admirando por sua coragem, retidão de caráter e delicadeza quando estava com ela nos momentos mais íntimos.
Gilbert via naquela garota de gestos elegantes uma mulher cuja beleza, sempre o impressionaria, mas não era por isso que a amava. Anne tinha uma obstinação e teimosia que se igualavam muito às guerreiras de sua tribo.
Ela era inteligente, tinha uma alma nobre e uma capacidade absurda de se doar para aqueles que precisavam dela, mostrando assim, a grandeza de seu coração tão puro.
Gilbert vira o que ela fizera por Kak'wet e duvidava que Anne soubesse que salvara sua prima de sua escuridão interna.
Enquanto o beijo continuava, Gilbert se posicionou no meio das pernas dela, segurando-a pela nuca, sentindo que aqueles beijos no meio da cozinha não seriam suficientes.
Deste modo, ele interrompeu o beijo, deixando sua cabeça descansar no ombro de Anne, esperando que tanto o seu coração quanto sua respiração voltassem ao normal.
- Fiz alguma coisa que não te agradou? - Anne perguntou, de certa forma, intrigada, pois Gilbert nunca interrompia um beijo intenso dos dois, a não ser que estivessem em público.
- Não. Por que? - O rapaz perguntou, ainda com a cabeça apoiada no ombro dela, mas dessa vez, as mãos subiram da cintura para os cabelos macios.
- Você parou de me beijar de repente, então isso é um mau sinal para mim. - Anne reclamou, provocando um sorriso em Gilbert, que respondeu:
-Sua bobinha. Não é nada disso. Eu preciso sair daqui a pouco, por isso, parei de te beijar. Tenho pouco tempo e não quero começar algo que não poderei terminar. - Os olhos dele a queimavam e Anne sabia bem o que ele queria dizer.
Ela também não gostava quando esses momentos entre eles começavam e terminavam rápidos demais. A ruivinha preferia quando não tinham pressa e tudo acontecia bem devagar, permitindo que sentisse cada pequeno toque em sua pele com toda intensidade e paixão.
- Vai sair depois do almoço? - Anne perguntou, tentando entender o motivo de Gilbert não poder ficar mais tempo com ela.
- Vou caçar com os homens da tribo. Nossas provisões estão acabando e precisamos reabastecê-las. - Gilbert explicou, segurando o pulso dela com carinho.
- Então eu vou com você. - Anne se prontificou.
- Isso está fora de cogitação. - Gilbert negou a intenção dela veemente.
-Dessa vez eu vou. Não vai me convencer a ficar. - Anne disse com teimosia.
- Uma caçada não é lugar para uma mulher como você. - O jovem guerreiro disse, entrelaçando seus dedos nos dela.
- As mulheres da aldeia às vezes vão nestas caçadas que vocês fazem? - Anne perguntou, sem dar chance para o rapaz de retrucar.
- Sim. - Gilbert respondeu.
- Eu sou uma das mulheres dessa aldeia e vou com vocês. -- Ela tornou a dizer.
- Anne, eu não acho que seja uma boa ideia.
- Eu não vou ficar sozinha nessa aldeia, Estrela da Manhã. Recuso-me a passar horas esperando que você volte, enquanto minha mente me envenena. Eu não sou nenhuma princesa em um castelo de vidro. Quero ser como as mulheres daqui, fortes e habilidosas em tudo o que se refere à aldeia. Somente vou conseguir isso se você me der essa oportunidade. - Anne disse com convicção.
Não estava zangada, longe disso. Desejava apenas que Gilbert entendesse seu ponto vista, e isso só acontecia quando falava com ele de igual para igual.
- Essas mulheres sobre as quais você fala nasceram aqui e estão acostumadas com essa vida dura. Você está nesta aldeia há apenas alguns meses. Não quero que pense que estou subestimando sua capacidade de aprender, mas o que desejo é proteger você como puder. - Gilbert explicou, tocando o rosto dela com a ponta dos dedos.
- Sei que estou em desvantagem, pois entendo que precisarei de muito mais tempo para aprender tudo o que elas sabem. Entretanto, peço apenas que acredite em mim e que me ajude neste processo tão complexo. - Anne pediu.
Ela queria e precisava aprender a se defender, e ser apenas a esposa do chefe não a estava ajudando naquela etapa importante. Todos queriam protegê-la por ser mulher de Gilbert e não pensavam na necessidade que ela tinha de fazer isso por si mesma.
- Está bem. Se é o que quer, eu permito que vá conosco. Apenas peço que durante a caçada, observe e aprenda. Não tente fazer nada que vá colocar sua vida em risco. Só estou dizendo isso para que entenda que minha primeira prioridade é sua vida e não a minha. - Gilbert disse, e Anne sentiu ali a alma de um verdadeiro líder.
Ele se colocaria em risco não só por ela, mas por todas as pessoas que dependiam dele naquela aldeia e, por isso, não o desapontaria.
- Certo. Vamos almoçar e depois, você pode me instruir melhor sobre a caçada. - Anne disse, sorrindo para o rapaz e deixando um selinho nos lábios masculinos antes de começar a servir a mesa.
Durante o almoço, eles conversaram sobre coisas do dia a dia, mas mesmo assim, a cabeça de Gilbert não parava de trabalhar.
Ele estava preocupado com o pedido de Anne, e mesmo que tivesse permitido que ela fosse com ele, o jovem guerreiro não sabia se tomara a decisão certa.
Nunca levara ninguém em uma caçada sem treiná-lo antes. Era a primeira vez que fazia essa exceção. Gilbert entendia que Anne fizera esse pedido porque se sentia acuada, fragilizada e necessitava de algum tipo de estímulo para se proteger contra Roy Gardner.
Aquela não era a forma mais eficaz, mas diante do medo e da ansiedade dela, o rapaz decidira ceder, pois uma caçada também era uma forma de lutar contra um inimigo, mesmo que o intuito fosse apenas se alimentar.
Após o almoço, Gilbert instruiu Anne em como se vestir com roupas resistentes e lhe explicara exatamente o que ela deveria fazer.
Iriam em cavalos separados, e a função dela era observar se na região para onde iriam, havia animais disponíveis para alimentar a aldeia.
Era uma tarefa simples, que exigiria dela apenas atenção. Gilbert não iria expôs-la a perigos desnecessários, enquanto não tivesse certeza de que ela estava pronta para outros tipos se desafios.
Com tudo planejado e organizado, eles foram para a aldeia encontrar o grupo de homens que os ajudaria naquela missão.
Ao ver Anne ao lado de Gilbert, Olho de Águia não fez nenhuma pergunta, pois uma vez que o jovem guerreiro era o líder de seu povo, não cabia a ele questionar suas decisões.
Assim, ele pediu apenas alguns minutos, correu até sua tenda e pediu a Pérola Negra que lhe fornecesse alguns cobertores no caso de voltarem tarde, pois a noite nos cânions era bastante fria.
- Quantas pessoas irão nessa caçada dessa vez? - A moça perguntou, separando os cobertores que seu irmão pedira.
- Sete homens e uma mulher.- Olho de Águia respondeu, esperando pacientemente que sua irmã terminasse de dobrar os cobertores.
- Uma mulher? - Pérola Negra perguntou, com a testa franzida.
- Sim. Sol de Verão irá conosco. - Olho de Águia respondeu, sem prestar atenção no olhos da irmã, que se tornaram negros de ódio, enquanto seus pensamentos pareciam ainda piores.
Aquela história tinha passado de todos os limites. Estrela da Manhã nem parecia mais o guerreiro destemido que conhecera. Agora tudo girava em torno daquela garota ruiva. Por causa dela, a aldeia quase tinha sido destruída e ainda assim, ela era tratada como uma rainha.
- Espere um pouco, irmão. Vou pegar um cobertores mais grosso que esses que acabei de dobrar. A esposa do chefe merece algo melhor. - Pérola Negra disse mansamente, sem deixar transparecer sua raiva por dentro.
Ela entrou em sua tenda e pegou um pacote onde tinha um cobertor pardo de muito boa qualidade e logo retornou com o objeto, entregando-o ao irmão, sabendo que ali estava sua arma secreta.
- Aqui está. Deixe‐o dentro do pacote, pois assim não há risco de se sujar.- Ela explicou, fazendo com que Olho de Águia assentisse e voltasse para junto dos outros nativos, enquanto Pérola Negra sorria com sarcasmo.
O pequeno grupo viajou cerca de uma hora. Anne cavalgava ao lado de Gilbert, enquanto os outros homens seguiam atrás, atentos a qualquer barulho que pudesse chamar-lhes a atenção.
Anne também tentava se manter atenta, mas percebia que não tinha a audição tão treinada quanto a dos nativos. O que era compreensivo, pois afinal, eles tinham nascido ali e conheciam aqueles lugares como a palma de suas mãos. Ela estava ali para aprender a sobreviver naquele ambiente tão cheio de perigos, mas fascinante.
O cavalo no qual cavalgava erta bastante dócil e Anne já tinha confiança em si mesma para conseguir guiá-lo sozinha, embora percebesse o olhar atento de Gilbert sobre ela, fazendo-a sentir-se protegida e confortável em sua própria pele.
Assim, Anne pôde viajar com segurança, prestando atenção à vegetação selvagem que havia nos lugares por onde passava, deixando que seu olhar se maravilhasse com tanta beleza ainda não descoberta pelo homem. De repente, sua atenção foi despertada por um rugido baixo que a deixou em alerta e apreensiva. Olhando para Gilbert, ela disse:
- Estrela da Manhã. Acho que temos companhia.
O rapaz olhou em direção para onde Anne apontava e percebeu um grupo de porcos selvagens escondidos pela vegetação local. Ele fez um sinal para seus homens, que balançaram a cabeça e entenderam o que deviam fazer.
- Você fica aqui.- Gilbert pediu a Anne, que balançou a cabeça e assentiu, enquanto observava o rapaz descer do cavalo, pegar uma faca enorme e seguir em direção aos porcos que o encaravam zangados.
Em questão de segundos, a luta começou entre Gilbert, seus homens e os animais que não estavam dispostos a perder a vida naquele embate.
Apesar de temerosa, Anne observou fascinada a maneira como Gilbert controlava a situação, se atracando com o animal que fazia o possível para escapar, mas não conseguia superar a força daquele guerreiro que sabia exatamente como queria que aquela luta terminasse.
Seus movimentos eram ágeis, precisos e controlados. Ele não dava nenhuma brecha para que o porco selvagem o ferisse, ou fugisse da destreza de suas mãos, pois ali só teria um vencedor e não havia dúvidas de quem seria.
Era hipnotizante observar os músculos das costas do rapaz todos retesados ao exibirem sua força naquela situação. Os cabelos dele estavam molhados de suor e brilhavam à luz do sol, como ébano puro, enquanto os seus olhos pareciam os de um tigre, firmes, duros e mortais.
Anne podia imaginá-lo claramente em uma batalha, vencendo o inimigo com facilidade. Gilbert era um lutador nato, seja por suas origens indígenas ou por sua profissão antiga. A verdade era que aquele homem era o mais corajoso que tinha conhecido e, sem sombra de dúvidas, o mais fascinante.
Quando a luta terminou, eles tinham abatido cinco dos sete porcos que encontraram. Os outros dois tinham fugido e se embrenhado na vegetação de difícil acesso, por isso, os nativos tinham desistido de tentar capturá-los. Com aquela caçada teriam carne para três semanas, o que fora considerado um sucesso por todos eles.
Após tomar os devidos cuidados com a conservação dos animais até que chegassem na aldeia, Gilbert se aproximou de Anne e perguntou:
- Você está bem?
- Estou sim. Apenas fiquei impressionada com sua luta com aquele animal. Eu já sabia que você era forte, mas hoje, superou minhas expectativas. - Anne respondeu, passando as mãos pelos músculos dos braços do rapaz.
- Obrigado pelo elogio.- Gilbert respondeu com um sorriso tímido. A franqueza de Anne às vezes o deixava sem jeito. Apesar de todos aqueles meses com ela, o rapaz ainda não se acostumara uma sinceridade tão crua.- Vamos ter que passar a noite em uma de nossas cavernas secretas. Está anoitecendo e voltar para a aldeia neste horário seria perigoso. Espero que não se importe.- Ele contou, tocando os cabelos dela.
- Tudo bem. Posso aguentar uma noite fora de nossa casa, desde que esteja com você. - Anne respondeu, com os olhos cheios de amor por aquele rapaz que fazia de tudo para cuidar dela.
- Tem um rio perto da caverna que é seguro, e onde você pode tomar banho se quiser. -- O rapaz sugeriu.
- Obrigada, querido. Vou adorar tomar banho antes de dormir. - Anne disse, se sentindo pegajosa da cavalgada que fizeram até ali.
- Eu te acompanharia se estivéssemos sozinhos.- Gilbert falou, segurando a mão dela, enquanto o calor daqueles olhos a aqueciam por dentro.
- Bem, amanhã estaremos em casa e você pode me dar essa sugestão novamente. - Anne disse, sorrindo de forma sedutora, fazendo com que Gilbert a fizesse descer do cavalo e dissesse antes de beijá-la.
- Como você consegue me deixar louco desse jeito com tão pouco?
E logo estavam se beijando, agarrados como se fossem um só. Anne apenas lamentou a falta de privacidade naquele dia, pois teria que aguentar dormir ao lado daquele homem lindo, sem poder tocá-lo como gostava.
Quando o beijo terminou, ela estava trêmula e Gilbert ainda mais apaixonado, porque cada vez que seus lábios se uniam, ele permitia que Anne roubasse um pouco mais dele, até que tudo o que conseguia sentir era ela correndo em suas veias.
- Precisamos ir.- Ele disse, deixando um beijo no topo da cabeça de Anne.
Assim que chegaram na caverna, Gilbert providenciou para que Anne tomasse o seu banho em segurança e, após tomar o próprio banho, ele se juntou a ela e aos outros rapazes para prepararem uma refeição quente e reforçada.
Quando chegou a hora de dormir, Anne se aconchegou no cobertor que Olho de Águia lhe estendeu e caiu em um sono profundo e sem sonhos.
De madrugada, ela acordou com a garganta seca e dolorida, ao mesmo tempo em que sua cabeça parecia que ia explodir de dor. Ela tentou se levantar, mas seu corpo todo também doía e, com dificuldade, chamou Gilbert baixinho.
- Estrela da Manhã..
Gilbert abriu os olhos no mesmo instante e, fitando o rosto corado de Anne, o rapaz perguntou:
- O que foi?
- Não me sinto bem. - Anne respondeu, tornando a se deitar no cobertor.
Gilbert colocou a mão na testa de Anne e percebeu que ela queimava em febre. Observando-a melhor, o jovem guerreiro logo descobriu o que se passava com a ruivinha.
Levantando-se num salto, ele acordou os outros nativos e disse quase com desespero:
- Sol de Verão não está bem. Pela minha experiência, me atrevo a dizer que ela pegou influenza.
Assim que deu aquela informação, Gilbert viu os seus homens se entreolharem assustados e Olho de Águia foi o único que disse o que se passava na cabeça de todos.
- Está doença é mortal.
- Eu sei e é por isso que vou levá-la agora mesmo para a aldeia. A avó saberá o que fazer. - Gilbert respondeu, tentando manter a calma, porque as lembranças do que seu pai lhe contara sobre a morte de sua mãe começaram a assombrá-lo.
Ele tinha visto em seus tempos de Cavalaria, homens mais fortes do que ele ficarem à beira da morte por causa da gripe espanhola. Felizmente, ele e os nativos da aldeia aprenderam a se proteger, tomando uma mistura de ervas que a anciã os ensinara a fazer.
Fazia anos que ninguém ficava doente na aldeia por causa daquela doença e Gilbert até pensara que estavam livres dela, embora continuasse a tomar o tal líquido. Porém, não esperava que Anne contraísse aquele mal e estava se sentindo desesperado porque não sabia o que fazer.
Enquanto os seus homens recolhiam todos os seus pertences, Gilbert ajudou Anne a se levantar, a pegou no colo e subiu em seu cavalo com ela apoiada em seu tronco.
- Iremos atrás de você daqui a pouco. - Olho de Águia disse, olhando para Anne preocupado, pois sabia o que aconteceria se o jovem guerreiro a perdesse.
Galopando o mais rápido que pôde, Gilbert venceu três quilômetros em menos tempo do que normalmente faria, e quando entrou na aldeia, Anne começou a delirar, fazendo o rapaz perceber que a febre tinha aumentado.
Ele correu com a ruivinha nos braços até a tenda da anciã, e quando a mulher apareceu Gilbert disse transtornado:
- Por favor, salve Sol de Verão. Ela está com influenza
- Traga-a para dentro. - A anciã respondeu, olhando para a garota ruiva que tremia e delirava nos braços do rapaz.
Após acomodá-la em um dos sacos de dormir, Gilbert se sentou ao lado dela, enquanto a anciã fazia o seu trabalho com as ervas. No auge do desespero, o rapaz pediu baixinho:
- Por favor, meu amor. Você precisa viver.
Em seu alheamento, Anne sequer abriu os olhos, pois tanto seu corpo como sua alma estavam perdidos nas sombras daquela enfermidade terrível.
Olá, capítulo postado. Espero que o apreciem e me deixem suas opiniões. Beijos e obrigada.
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