Capítulo 22 - O som do coração
Vendo o dia nascer pelas frestas da tenda na qual passara a primeira noite de seu casamento com Gilbert, Anne se sentia transformada.
Não era a primeira vez que ficavam juntos, mas ela sentia que tudo estava diferente, principalmente dentro dela. Seu corpo irradiava uma paz que fazia tudo ao seu redor ser mais bonito e mágico, como se ela fosse a Alice no país das maravilhas e tivesse descoberto um mundo encantado, onde todos os seus desejos pudessem se realizar em um piscar de olhos.
Ela levou a mão ao colar do qual nunca mais se separara desde que o ganhara de Gilbert e sorriu. O guerreiro lhe dissera que aquela pedra era o coração dele, e ela se sentia tão privilegiada por ter ganho aquele presente. Para Anne, aquele era o tesouro mais valioso do mundo.
A ruivinha levantou a cabeça e olhou para o rapaz que dormia, segurando-a firmemente junto ao corpo musculoso. Agora,ele era seu marido, mesmo que os votos não tivessem sido feitos em uma igreja, Anne sentia que os céus os tinham abençoados por sentirem um amor tão profundo que nada no mundo poderia destruir.
Roy Gardner parecia nunca ter existido, e se tornara poeira em um passado que Anne não suportava lembrar. Se tivesse dito não naquele altar, e ido atrás de Gilbert, não teria sofrido tanta dor e ferido seu coração até sangrar. Mas tinha se levantado e seguido em frente, mesmo com tudo o que Roy tinha lhe feito, Anne sentia que a dor não existia mais.
Se sentia tão plena e tão cheia de luz, que quase não conseguia deixar de sorrir. Chegara na aldeia com tantas incertezas assombrando sua mente, e agora não conseguia enxergar outro lugar como seu lar que não fosse aquele.
Seu olhar deslizou vagarosamente pelo rosto de Gilbert, e parou em um cachinho de cabelo caído em sua testa. Ela então se lembrou da primeira vez que o vira, e como o achara o homem mais bonito do mundo, e ainda caia de joelhos diante daquela beleza perfeita que não possuía um defeito sequer.
Sua mão pequena correu pelo peito dele, levemente suado pelo calor que fazia aquela manhã, subindo até o queixo e quando ia afastar o cachinho da testa dele, Gilbert segurou seu pulso, o levou aos lábios, e depois de deixar um beijo molhado no local, ele a encarou sorrindo e disse:
-Ainda é tão cedo e já está acordada.
-Acordei a um bom tempo, e não consegui mais dormir.- Anne respondeu, prendendo seu olhar no de Gilbert.
-Por que? Tem algo te incomodando.- ele perguntou preocupado, enquanto Anne o olhava apaixonada, achando graça naquele jeito dele de sempre querer entender o que estava se passando na sua cabeça.
O que Anne não podia sequer imaginar era que Gilbert vivia em uma ansiedade louca, com medo que aquele sonho maravilhoso que estava vivendo ao lado dela terminasse repentinamente. Não queria voltar a ser aquele rapaz amargurado que se concentrava apenas nas lutas diárias de seu povo, enquanto os anos passavam por ele
Ele tinha rejuvenescido interiormente com Anne a seu lado, pois no passado, se alguém falasse com ele, poderia sentir em sua expressão ou forma de encarar a vida, um ser humano que tinha mais anos na alma, do que aqueles que realmente tinha vivido.
Contudo, se sentia diferente agora. Como se todo o peso das responsabilidades tivessem sido retirados de dentro dele, e assim conseguia respirar o ar da juventude que foi injetada em suas veias por aquela garota especial e tão maravilhosa. Sol de Verão era o nome mais apropriado que alguém poderia dar a sua mulher, pois ela era o próprio sol da sua vida.
-Não tem nada me incomodando, amor. Na verdade, é a primeira vez que sinto que tudo está onde deveria. Sabe, agora tenho certeza que vim até Charlottetown para encontrar você, mesmo que eu tenha pego um atalho que não me levou a lugar algum.- Anne respondeu, e Gilbert entendeu que ela estava se referindo a Roy.
-Sabe que também acredito que fomos feitos para ficarmos juntos? Eu sempre fui supersticioso em relação a esse tipo de coisa. Aprendi com meu povo indígena a enxergar além do que os olhos podem ver, mas quando você apareceu, tive medo de acreditar que estava em meu destino, pois algo maravilhoso assim nunca aconteceu em minha vida antes. Você é preciosa, Anne, e vou cuidar de você até que meu coração pare de bater.- Gilbert declarou e Anne sorriu emocionada, olhando para o homem que era agora seu marido de coração e alma, e pensou no quanto ele também transformara seu mundo.
Ele lhe deu uma coragem que não conhecia em si mesma, e a garota um tanto precavida com tudo o que se relacionava ao mundo exterior, trocara sua busca eterna por segurança pelo gosto da aventura, o inesperado, e a liberdade.
-Você também é precioso, principalmente agora que é o meu marido.- Anne respondeu, analisando o rosto do rapaz que a olhava carinhosamente.
-Isso parece um sonho.Eu sei que nosso casamento não tem valor perante a lei dos brancos, mas quero que saiba que o considero legítimo.- Gilbert afirmou, fazendo Anne entrelaçar seus dedos pequenos nos dele.
-Eu também. Quem sabe um dia não poderemos oficializá-lo em uma igreja.- Anne comentou, encostando sua cabeça no ombro de Gilbert.
-Você sabe o que precisa acontecer para que esse desejo se realize.- Gilbert comentou, tocando o rosto dela, e Anne respondeu, compreendendo no fundo de sua mente que Roy precisaria desaparecer para que ela e Gilbert pudessem ter uma vida juntos no mundo dela.
Seu ex-marido, ela gostava de pensar em Roy assim agora, era uma das pessoas mais detestáveis que havia conhecido, mas se sentia mal ao pensar que para ser feliz, ele precisava deixar de existir.
Nunca seria o tipo de pessoa que desejaria a desgraça de alguém, por mais que essa pessoa tivesse lhe causado mal. Preferia pensar que a justiça divina era sempre certeira e daria a tal pessoa a lição que ela merecesse, sem que Anne tivesse que mexer um dedo para isso.
-Eu sei, mas prefiro viver aqui com você para sempre do que causar qualquer mal a ele. Roy foi horrível comigo e Kak'wet, e eu não condenaria você por buscar justiça para sua prima à sua maneira. Quanto a mim, não sentiria minha consciência tranquila se tivesse que tomar qualquer atitude que me igualasse aquele homem. Fui criada para fazer o bem, lutar pelo que acredito, não para odiar e usar meu ódio de forma destrutiva. Vamos continuar vivendo como fizemos até agora, pois está perfeito para mim dessa forma.- Anne disse, desenhando corações no peito de Gilbert com a ponta da unha, sorrindo de leve ao ver a pele dele se arrepiar.
-Apesar da crença indígena de que devemos fazer justiça com as próprias mãos, o meu lado canadense não aceita muito bem essa ideia. Nunca matei ninguém e não pretendo fazê-lo. Acho que tem outras formas de conseguir o que desejamos sem levar para um lado tão sombrio.- Gilbert explicou, beijando o topo da cabeça de Anne.
-Deve ser difícil para você transitar entre dois mundos completamente diferentes. Imagino o quanto você teve que lutar para se manter leal a ambos até escolher apenas um.- Anne comentou, pensando em Gilbert quando mais jovem, sofrendo por não ser totalmente indígena ou canadense. Evidentemente, ele tivera que optar por um lado, e parecia estar em paz com aquela escolha.
-Eu vivi muito tempo dividido, confesso, mas sempre quis lutar por meu povo indígena, pois eles não têm o mesmo tipo de direito que os brancos têm. Acho que sou mais útil aqui do que fui quando fazia parte da Cavalaria. - Gilbert respondeu. Ele sempre sentia uma espécie de culpa quando era Sargento, por viver no conforto enquanto seu povo tinha que lutar dia a dia para sobreviver com o pouco que tinham. Sua opção por ser um guerreiro não fora apenas pelo chamado do sangue, mas por conta de uma consciência moral também.
-Você é necessário em qualquer lugar. Sua nobreza de coração é importante para todos que conhecem você, especialmente para mim.- Anne disse sem deixar de olhá-lo, pois era impossível para ela não fazer isso. Gilbert era tão lindo que seus olhos se maravilhavam com aquela visão todos os dias de manhã. Dormir e acordar com ele era tudo o que um dia Anne desejara, e seu desejo secreto tinha se realizado.
-Você me tem por inteiro. Sabe disso, não é?- Gilbert perguntou, tocando o queixo dela com o polegar.
-Eu sei, e queria compartilhar algo com você. - ela disse, tomando coragem para falar o que precisava, pois queria que Gilbert tivesse certeza de que a tinha por inteiro também.
-O que é?- o rapaz perguntou, concentrando toda sua atenção nela.
-Quando eu e Roy nos casamos, nas noites mais difíceis, eu pensava em você e foi por isso que consegui atravessar todo aquele horror sem dar cabo da minha vida. - ela baixou a cabeça com medo do que Gilbert pudesse ver em seus olhos. Ela não pensava mais naquilo, contudo falar sobre o que vivera naqueles meses ao lado de seu ex-marido, ainda doía demais.
-Você realmente pensou em acabar com sua vida?- Gilbert perguntou, levantando o queixo de Anne para que ela pudesse encará-lo, chocado com aquela revelação, ao mesmo tempo em que sentia uma fisgada em seu coração, como se uma flecha o tivesse o atingido ali. Imaginar que Anne poderia não estar ali com ele, o deixava quase fisicamente doente. A maneira com que Roy brutalizara aquele corpo delicado quase destruira a única mulher que amara na vida, e se isso tivesse acontecido, ele não descansaria até destruí-lo também.
-Algumas vezes, mas você me salvou, mesmo estando preso apenas em minhas lembranças. Eu já te amava naquela época, e pensar em você era que me dava forças para não desistir.- Anne respondeu, se sentindo aliviada por deixar Gilbert saber sobre seu sofrimento daquela época.
Havia dor naqueles olhos prateados, e uma compaixão que tocou-a por dentro. Podia perceber suas mágoas indo embora apenas por ver o amor de Gilbert por ela tão explicitamente exposto naquele momento de sua confissão tão dolorida.
Ele a abraçou com força e disse por entre os cabelos dela, fazendo Anne suspirar com o contato de suas peles nuas:
-Nunca mais quero ouvi-la dizer algo assim de novo, pois eu não poderia viver sem você.
-Eu não tenho mais motivos para pensar nisso, porque você tem me feito feliz desde o dia em que me trouxe para cá. - Anne respondeu, e Gilbert a afastou um pouco de seus braços para confessar mais uma vez:
-Eu amo você. Isso é tudo o que quero que pense sempre.
-Eu sei que me ama, e eu também amo você. - Anne falou, acariciando o rosto do rapaz, antes de colar sua boca na dele.
Suas línguas colidiram por alguns minutos, enquanto a alegria de estarem juntos invadia seus corações. Havia tanto amor entre aqueles dois, que o mundo todo poderia desaparecer que eles estariam assim, apaixonados, unidos e completamente felizes.
Quando se separaram, seus sorrisos se misturaram, e Anne perguntou ainda envolvida naquele círculo de proteção tão reconfortante:
-Podemos tomar nosso café da manhã? Estou morrendo de fome.
-Eu também. Vamos voltar para a aldeia, e depois tenho uma surpresa para você. - Gilbert disse, se levantando e começando a se vestir. Felizmente, Nuvem de Primavera deixara uma muda de roupa para ele e Anne no dia anterior, assim não teriam que sair dali com as roupas do casamento.
-Que surpresa?- Anne perguntou, colocando um vestido azul de algodão que costurara com as próprias mãos.
-Se te contar, deixa de ser surpresa. - Gilbert respondeu com um sorriso. - Pronta?
-Estou sim.- Anne respondeu, segurando na mão de Gilbert e saindo da tenda quase que imediatamente.
Eles caminharam de mãos dadas até a aldeia, e quando chegaram lá, receberam muitos sorrisos de boas vindas, fazendo com que Anne sentisse que finalmente estava no lugar certo. Se sentia mais em casa no meio daquele povo nativo, que se sentira em sua pequena moradia em Toronto.
Gilbert a levou até a tenda de ambos, e Anne ficou surpresa que um café da manhã tinha sido preparado ali para os dois.
Quando levou à boca um pedaço de broa de milho foi que Anne percebeu que estava com mais fome do que imaginara.
Gilbert a estava servindo com café preto quando a anciã entrou, e Anne pôde ver em seu rosto bondoso que ela estava feliz pelos dois.
-Como estão meus dois netos?
-Estamos bem, avó. Quer tomar café conosco?- Anne perguntou, dando uma mordida em uma rosquinha que se assemelhava a sequilho.
-Não, neta. Tomei café quando amanheceu. Meu dia começa cedo como devem saber.- ela respondeu, observando Anne devorar três rosquinhas, e comentou:- Então, a neta tem um fraco por doces.
-Sim, me desculpem. - Anne respondeu, corando por ter sido pega comendo doces demais.
-Pode comer, filha. Continua magrinha como quando chegou aqui. Acho que meu neto vai gostar que tenha mais curvas.- a boa senhora disse, fazendo Anne corar ainda mais. As mulheres dali falavam abertamente sobre coisas que para ela sempre haviam sido tabus.Mas ainda assim,gostava da franqueza que existiam nas palavras, pois a hipocrisia não tinha espaço por ali, e isso era algo que deixava Anne maravilhada.
-Vou deixar vocês sozinhos e cuidar dos meus afazeres. Se precisarem, estou na horta.
-Obrigado.- Gilbert agradeceu, e assim que a anciã saiu, ele segurou na mão de Anne e disse: - Você é linda exatamente como é. Perdoe a avó, ela está acostumada com as mulheres robustas da aldeia. Você é uma novidade por aqui.
-Eu não me importo com isso. Sofri muito com minha aparência quando era criança. Por ser muito magra e ruiva, as outras pessoas zombavam de mim. Depois que cresci, entendi que Deus me deu esse corpo forte e saudável e por isso eu deveria sentir orgulho dele.- Anne respondeu, terminando de comer.
-Essas pessoas que zombavam de você, nunca se preocuparam em saber quem você é de verdade. A sua beleza, Anne, vai além da física, pois seu coração é ainda mais lindo.- Gilbert disse de forma apaixonada.
Anne nunca ia se acostumar com a forma como ele deixava tão claro que a amava. Ainda custava a acreditar que aquilo estava acontecendo. Depois da vida que tivera em Toronto sem absolutamente ninguém para se importar com ela, e seu casamento horrendo com Roy, que apenas usara seu corpo sem se preocupar com seus sentimentos, ganhar declarações assim daquele guerreiro incrível com quem tivera seus melhores sonhos, era ainda uma novidade muito prazerosa.
-Obrigada. - Anne disse, deixando um beijo na palma da mão do rapaz. - E a minha surpresa?- ela perguntou animada.
-Depois. Agora quero caminhar um pouco com você pela aldeia, para que todos possam reconhecê-la como minha mulher de uma vez por todas.- Gilbert disse, e Anne sorriu.
Não fazia questão nenhuma daquilo, mas entendia o que Gilbert queria com aquela atitude. Ele desejava que todos ali passassem a respeitá-la como mulher legítima do líder deles, e nenhuma atitude contrária àquela seria tolerada.
Eles andaram de mãos dadas pela aldeia mais uma vez, enquanto vários nativos os cumprimentavam, e sorriam para Anne com bastante admiração, fazendo-a compreender que ela finalmente era parte daquela aldeia, e a protegeriam contra qualquer mal que pudesse atingi-la.
Em um canto, tentando passar despercebida, Pérola Negra observava o casal feliz, e se sentia atingida por grande sofrimento. Ela não conseguia seguir em frente ou deixar seu sonho juvenil de lado. Estava apaixonada por Estrela da Manhã e não aceitava que a ruiva estivesse ao lado do guerreiro como líder daquela aldeia.
Nunca questionara antes sobre os caminhos que o destino apontava. Como uma nativa acreditava, que tudo tinha um significado, mas naquele caso não conseguia se conformar. Não era possível que os deuses tivessem tirado dela o rapaz que amava desde de criança.
Seu irmão a tinha aconselhado a esquecer, e Kak'wet fizera o mesmo. Mas Pérola Negra continuava a odiar a mulher ruiva que arrancava dos lábios de Estrela da Manhã aquele sorriso apaixonado. Pisando duro, ela se afastou dali, levando em seu coração o gosto amargo da vingança.
Após caminharem por alguns momentos pela aldeia, Gilbert resolveu levar Anne para receber a surpresa que prometera. Porém, antes de saírem dali, ela perguntou:
-Não vai falar com seu avô?
-Agora não. Ele está em seu momento de meditação e não gosta de ser perturbado. Talvez mais tarde possamos falar com ele.
-Então, vou saber agora qual é a surpresa?- Anne perguntou cheia de expectativa, fazendo Gilbert rir ao ver os olhos azuis dela brilharem como se fosse uma garotinha a quem fora oferecido um chocolate.
-Sim, e acho que vai gostar.- Gilbert respondeu, passando as mãos pelos ombros dela.
Eles caminharam cerca de quinze minutos, e quando estavam próximos do local para onde Gilbert estava levando Anne, o coração dele começou a bater forte. Ele fizera o máximo para que tudo fosse como Anne desejava, e agora tinha medo que ela não gostasse.
O casal parou em frente da construção recém terminada, e surpresa, Anne olhou para Gilbert e disse:
-Essa é....
-Nossa casa. - Gilbert completou, observando o rosto de Anne se iluminar, enquanto sussurrava.
-Nossa casa. Não acredito.
-Quer conhecer lá dentro?- Gilbert perguntou, deixando-se relaxar enquanto pensava que pelo menos ela não havia odiado.
-Quero muito.- Anne concordou, sorrindo ao observar a construção charmosa de madeira envernizada. Como poderia imaginar que teria um lar como aquele no meio de uma aldeia indígena?
Quando Gilbert abriu a porta para que Anne entrasse na casa, ela olhou ao redor assombrada com tanta perfeição. Ele mobiliara cada cômodo com objetos feitos de madeira, e tudo aquilo deveria ter sido trabalhoso para Gilbert, sem contar que a janela da cozinha tinha uma visão incrível do lago, onde ela e Gilbert nadaram algumas vezes juntos e era lindo demais.
Ele a levou até uma sala especial onde ela poderia usar como escritório, e em uma estante envernizada de canto, havia vários livros de literatura conhecida. Como Gilbert tinha conseguido aquilo, Anne nem sequer podia adivinhar, mas isso realmente não importava, pois o que ele fizera ali a deixava mil vezes emocionada com tal gesto.
-Você fez tudo isso para mim?- ela perguntou, encarando o rapaz a sua frente com todo o amor do mundo em seus olhos.
-Achei que você poderia ter um canto só seu para ler ou corrigir as tarefas escolares dos alunos.- Gilbert respondeu, sorrindo ao ver o brilho nos olhos dela se expandir.
-É a coisa mais linda que alguém já fez para mim.Olha só para essa casa. Ela é completamente maravilhosa.- ela afirmou suspirando.
-Eu sei que nem se compara com o luxo que você merece, mas espero que seja feliz aqui.- Gilbert acrescentou, abraçando-a pela cintura.
-Eu não me importo com luxo, Gilbert. O que realmente toca meu coração é como tudo o que foi feito aqui declara seu amor por mim. Não vejo a hora de me mudar para cá.- ela disse, abraçando-o pelo pescoço.
-Podemos nos mudar amanhã. O que acha?
-Perfeito.- Anne respondeu, beijando-o apaixonadamente, pois queria encher aquela casa de lembranças lindas dos dois, e achava que daquela forma era um excelente começo.
Quando desgrudaram seus lábios, Gilbert deixou um beijo na ponta do nariz dela e Anne disse:
-Quero ver nossos filhos crescendo aqui, livres e felizes.
-Você quer um filho meu?- ele perguntou surpreso. Nunca tinham falado sobre isso, e era a primeira vez que Anne abordava aquele assunto.
-Sim, é o que mais quero, principalmente agora. Você não?
-Eu também quero ter filhos, mas não pensei que você os desejasse também. Não iria se importar por seu filho ser um mestiço?- ele perguntou, e o sentido da pergunta chocou Anne, porque ela percebeu o quanto aquele termo que os brancos usavam para qualificar o filho de uma mulher branca e um índio deveria magoar Gilbert, porque com certeza, ele passara a vida ouvindo as pessoas chamá-lo assim por todos os cantos.
-Eu vou sentir o maior orgulho que meu filho seja como o pai dele, nobre, forte e leal. Essas são qualidades para se orgulhar mais do que qualquer outra. E também farei com que ele se orgulhe de você, e que também entenda que a herança de sangue que vai deixar para ele é o maior presente que você poderia lhe dar. Seu povo é lindo, Estrela da Manhã, assim como você, e muito obrigada por me permitir ser parte dele.
Gilbert não soube o que responder, pois aquelas palavras de Anne ninguém lhe dissera antes. Sempre fora menosprezado por ser quem era, e visto como subalterno mesmo que sua patente de Sargento mostrasse o contrário. Seu sangue indígena fora sempre sua sentença de submissão, embora Gilbert jamais deixasse que o tratassem assim. Contudo, podia ver nos olhos dos outros homens o ódio e desprezo por ele, como se Gilbert não merecesse estar onde estava. Sua luta não fora apenas por seu povo, mas por respeito a si mesmo.
Ele abraçou Anne com força, desejando que ela entendesse que naquele momento, cada batida de seu coração fosse uma forma de agradecimento por ela amá-lo e fazê-lo entender que era digno desse amor.
Quando voltaram para a aldeia naquela manhã, havia uma nova cumplicidade entre eles que brilhava em seus olhos, fazendo-os sorrir um para o outro o tempo todo.
Eles almoçaram com os outros nativos da aldeia, e Anne observou que Kak'wet estava entre eles. A menina não tentara nenhuma aproximação com ela, mas de vez em quando, lhe lançava um sorriso tímido, o que fez Anne pensar que com o tempo talvez viessem a ser grandes amigas.
Após o almoço, Gilbert foi cuidar de alguns afazeres, e Anne tratou de arrumar as coisas de ambos para que pudessem se mudar para a casa nova no dia seguinte, o que a fazia se sentir intimamente feliz, pois sua vida ao lado de seu marido estava apenas começando e sentia que seria permeada por muitos dias assim, leves e cheios de amor.
Quando ficou livre das tarefas que tinha a realizar, ela foi à tenda onde as refeições da aldeia eram preparadas e se voluntariou para ajudar a anciã com quem amava conversar. Havia muita sabedoria naquela mulher que já enfrentara todos os revés da vida e estava eternamente ligava àquele povo pelo sangue e coração.
Assim que a comida já estava em adiantado estado de preparo, a boa mulher convidou Anne para tomar com ela um chá de ervas, e como a ruivinha aceitou, ela pediu que a ruivinha fosse buscar alguma lenha para aquecerem a água.
Anne concordou, e logo que retornou, a bebida foi preparada e ficaram conversando sentadas lado a lado e saboreando o líquido forte, mas delicioso.
Meia hora depois, enquanto ajudava a cuidar dos objetos que foram utilizados para a preparação do almoço, Anne sentiu um forte enjoo, enquanto sua cabeça começava a doer terrivelmente. Ela pediu licença e caminhou até a tenda, sentindo seu corpo pesar a cada passo, sem entender o que estava acontecendo com ela.
A ruivinha se deitou sobre o saco de dormir, e tentou se acalmar, rezando para que aquela sensação ruim passasse logo.
Enquanto isso,Gilbert voltava para a aldeia, e foi até a tenda para falar com Anne e a encontrou deitada, o que o fez estranhar, pois ela nunca dormia àquela hora.
Quando se aproximou do saco de dormir e tocou-a no braço, Anne abriu os olhos, e o terror tomou conta de seu rosto ao ver Roy Gardner à sua frente. Ele a olhava com uma expressão de deboche e quando foi tocá-la, ela gritou cheia de horror:
-Não me toque, seu crápula! Você é mau e eu te odeio!
Espantado com as palavras de Anne, Gilbert observou o rosto dela com atenção. As bochechas estavam coradas, mas os lábios estavam pálidos e os olhos injetados e pesados como se ela não dormisse a dias. Tentando entender o que se passava com ela, o rapaz se aproximou devagar e disse:
-Amor, é Estrela da Manhã. Não precisa ficar com medo. - Mas Anne parecia não ouvi-lo e se encolheu em um canto, balançando a cabeça fortemente em negativa. Preocupado com o estado dela, Gilbert foi a procura da anciã que o seguiu apressadamente até a tenda, onde encontraram Anne na mesma posição que Gilbert a tinha deixado.
-Filha, sou eu.- ela disse, vendo Anne levantar a cabeça e a encarar de forma mais tranquila.- Me dê sua mão. - ela pediu, e Anne obedeceu, enquanto ela observava o rosto da ruivinha que não ousava olhar para Gilbert tamanho era o seu medo, pois em sua cabeça quem estava ali era Roy.
-O que tem de errado com ela?- Gilbert perguntou, terrivelmente preocupado.
-Ela foi envenenada com uma erva alucinógena, e pela maneira como está se comportando, a dose foi grande.- a anciã respondeu, tentando entender como aquilo havia acontecido.- Ela tomou um chá comigo, mas fui eu quem separou a erva, e não creio que cometeria um erro, escolhendo a erva errada. Conheço tudo por aqui com a palma da minha mão.
-É fatal?- Gilbert perguntou com a voz trêmula de medo.
-Se não receber ajuda logo, pode ser fatal sim, mas conheço algo que pode ajudar. Fique com ela, filho que volto logo.
Gilbert assentiu, se sentando ao lado de Anne, que tinha se deitado novamente e parecia dormir, mas estava presa dentro de sua mente cheia de pesadelos, pois virava a cabeça de um lado para outro em estado de agonia.
Cada gemido ou choramingo dela parecia doer no coração do rapaz que sem perceber estava chorando silenciosamente. Nunca se sentira assim, nem mesmo com a morte do pai, e pensar que podia perder Anne para algo que desconhecia o deixava aterrorizado.
Logo a anciã estava de volta, e trazia nas mãos um líquido pardo. Apressadamente, ela pediu a Gilbert:
-A levante por favor. Temos que fazê-la beber isso.
Gilbert levantou Anne devagar, que dessa vez manteve os olhos fechados, enquanto a senhora nativa forçava o líquido pelos lábios dela. Quando terminou, ela disse:
-Fiz o que podia para ajudá-la, agora temos que esperar.- Gilbert assentiu, sem dizer nada, pois estava aflito demais para proferir qualquer palavra.
-Vou deixá-los sozinhos. Volto daqui a pouco para ver como ela está.
E assim começou o martírio de Gilbert que observava sua mulher com extrema atenção, sentindo seu coração se partir cada vez que ela delirava ou seu corpo parecia que iria convulsionar.
Nesses momentos, ele segurava a mão fria dela, falava com Anne baixinho até que ela se acalmasse até a próxima crise.
A anciã voltou como prometera algumas vezes, olhando penalizada para o rapaz que acabara de encontrar sua felicidade e estava a ponto de perdê-la.
Kak'wet apareceu algumas vezes para ficar com Gilbert, Nuvem de Primavera também, tentando fazer com que ele descansasse um pouco, mas ele se recusou a sair do lado de Anne.
Seu almoço foi deixado na tenda e também seu jantar, mas ele não tocou em nada, pois não conseguiria engolir nenhum tipo de alimento enquanto Anne estivesse naquele estado, e prometeu a si mesmo que descobriria quem tinha feito aquilo, pois aos seus olhos não fora um acidente, e sim uma atitude deliberada, embora custasse a acreditar que alguém de sua aldeia fosse capaz de um ato assim tão perverso.
Já era tarde da noite, quando Anne finalmente abriu os olhos, e assim que viu o rosto de sereno de sua mulher, Gilbert sentiu lágrimas quentes rolando por seu rosto que agora eram de alívio.
-Estrela da Manhã. - Anne disse com a voz fraca.- Por que está chorando?- ela tentou se levantar para ficar mais próxima dele, mas seu corpo debilitado não permitiu.
-Não é nada, meu amor. Apenas estou feliz que tenha por fim acordado.- ele respondeu, enxugando as lágrimas com o dorso das mãos.
-O que aconteceu?- ela perguntou, sentindo sua cabeça zonza.
-Depois nós conversamos sobre isso. Agora, me deixa abraçar você para ter certeza que está aqui comigo.
Anne assentiu, e o rapaz se deitou ao lado dela, a puxando para seus braços e deixando um beijo na testa dela. E quando sentiu o coração de Anne batendo contra o seu, foi que ele descobriu que aquele som era o seu preferido.
Olá, pessoal. Peço mil perdões pela demora. Pretendia postar a atualização dessa fic e outra mais cedo essa semana, mas tive um treinamento no trabalho que tomou todo o meu tempo. Ainda assim, espero que gostem desse capítulo e me deixem suas opiniões e votos para incentivar a continuação da história. Beijos e obrigada por lerem.
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