Capítulo 5
A noite foi longa, e confesso que não consegui dormir nada. É a primeira vez que escuto um confronto como o da noite passada. Parecia que os tiros estavam aqui dentro de casa. Confesso que pensei várias vezes em desistir de tudo e voltar para o conforto do meu lar, mas não posso desfocar agora; não na minha primeira provação. Por isso, decidi levantar cedo e andar até o mercadinho para falar com Steph a respeito do emprego.
O seu Zé é uma pessoa muito simpática e fez questão de me apresentar todo o conceito de trabalhar num mercado. Ele disse que gostou muito de mim e resolveu me dar uma chance, mas que primeiramente eu ficaria no meio dos setores, trabalhando na reposição de produtos, uma vez que nunca havia trabalhado como operadora de caixa. Com o tempo e com o meu desempenho, ele poderia me dar uma oportunidade de crescimento.
Repor mercadorias exige bastante atenção, habilidade e acima de tudo paciência. Algo que não tenho. É irritante ver o quanto as pessoas são displicentes na questão de educação e organização. É fácil! Tirou algo do lugar, devolve para o bendito lugar, não coloque no corredor que não tem nada a ver com o produto.
— Isso é um saco né, miga? — Steph fala conforme recolho as mercadorias que ficam no descarte do caixa. — Detesto trabalhar na reposição.
— Confesso que achava ser menos irritante! — respondo emburrada. Pego dois tipos de molho de tomate, de marcas diferentes, no balcão e solto: — Aaaaah! Por que pegar dois tipos e não levar nenhum?
— A pessoa levou o terceiro! — ela ri e dá de ombros, como se isso fosse frequente. — E era de uma marca bem pior... — gargalhamos ao mesmo tempo.
— Sério, você precisa ser condecorada! — refiro-me ao seu trabalho no mercado.
— Ah, vai dizer que nunca pensou em levar alguma coisa para casa e deixar as outras por que não tinha de onde tirar dinheiro? — fala enquanto continua gargalhando, e penso no fato de jamais ter entrado num mercado, a fim de fazer as compras do mês, antes de vir morar na comunidade.
— Verdade! — desconverso.
— Tu ouviu o confronto de ontem? — comenta baixinho. — A coisa tava preta!
— E tinha como não ouvir? Foi a polícia entrando?
— Foi retaliação de outra facção, menina. Aquelas tralhas só aparecem pra pegar propina...
— Aaahh... — Noto em como ela se referiu aos policiais.
— Dizem que o Hades confrontou a Coruja por causa da morte do Gianecchini, e mais de cinquenta homens morreram aí... — a corto:
— Gianecchini? — Meu coração bate aceleradamente. — Essa Coruja é uma favela? — Ela faz que sim com a cabeça e afasto as lágrimas que teimam em querer descer. — Eles armaram para ele, então?
— Vai saber! Essa treta tá longe de ser descoberta, mana! A coisa é pior do que parece, pode ter certeza! Mas aqui não é lugar para falar disso. — Ela aponta com a cabeça para um rapaz aleatório que entra no mercado, e eu volto para o meu posto enquanto ela retorna para o dela.
+++
Como todo verão, chove em uma das tardes da semana. Chove, não. Desmorona água e terra pelas ruas da comunidade. Como moro na parte alta do morro, a chuva não atinge a minha casa, mas vários moradores estão subindo a rua a fim de se abrigar. Da minha janela, vejo Hades, Coringa e outros homens ajudando alguns moradores e, como uma equipe, eles guiam crianças, mulheres e idosos até o galpão, que as vezes serve de palco para alguns grupos de pagodes. Observo Nath seguir a rua, segurando a mão de uma criança que deve ter no máximo seis anos de idade. Saio de casa rapidamente, esquecendo inclusive do guarda-chuva, molhando toda a minha roupa no caminho.
— Nath! — grito, e vejo minha amiga e Hades olharem na minha direção. — Fica aqui em casa.
— Ah, amiga, bem que eu queria, mas tem uma penca lá em casa. Esse é o Brian, o meu sobrinho. — O menino sorri para mim e mostra a janelinha que abriu no lugar do dente. Sorrio, tentando me lembrar aonde já vi esse mesmo sorriso.
— Anda logo, Nath, tira o Brian da rua, tá chovendo muito. — Hades fala como se eu fosse uma pessoa que nunca admitiria alguém entrar na minha casa. Que cara ridículo!
O ignoro.
— Podem vir todos e quem você quiser, amiga! Mi casa é su casa!
— Sério? Porque tem o meu irmão e minha mãe ainda.
— É claro que sim. — falo enquanto abro o portão para eles saírem o quanto antes da chuva.
— Hades, manda o Gui vir direto para cá quando ele passar com a mamãe.
— Nath, vai lá pra casa! — Hades grita autoritário conforme fecho o portão com um sorriso triunfal em meu rosto. — Vocês ficarão mais protegidos comigo. — franzo a testa, tentando entender toda a sua preocupação com eles. Será que ele e a Nath...?
— O Brian estará melhor com o pai dele! — Hades rebate.
— E ele vai vir, não é? — Nath retruca gritando da minha varanda: — Gui, estamos aqui!
Meus olhos procuram a pessoa com quem ela está falando, e noto um rapaz da mesma altura de Hades vir em nossa direção, debaixo de um guarda-chuva, conforme os meus cabelos colam em meu rosto e a água da chuva escorre pela minha pele. Uma senhora o segue, segurando um guarda-chuva maior ainda. Abro o portão de casa enquanto observo, assustada, as feições do tal do Gui, notando que me lembram as feições do próprio dono do morro. Ele passa por mim com um sorriso jocoso, e seus olhos negros não fogem dos meus. Sua mãe entra em seguida e me abraça amigavelmente depois de beijar a bochecha de Hades.
— Entra, princesa, vai pegar uma pneumonia! — O rei do submundo gira sob os calcanhares, após dizer essas palavras de forma grosseira, e segue o seu caminho parecendo irritado e ao mesmo tempo aliviado.
Assim que entro em casa, vejo os meus convidados tão encharcados quanto eu, mesmo protegidos da chuva. Pego as poucas toalhas limpas que possuo, e noto que Gui está com uma mochila grande nas costas.
— Trouxe roupas secas — ele diz olhando nos meus olhos e mostrando a mochila. Ele é grande como Hades, mas não tão musculoso. Seus cabelos são mais cheios também e possuem cachos que caem sobre os olhos. — O que aquele viadinho, queria? — ele indaga à irmã e logo depois pergunta para mim se poderia usar o banheiro. Digo que sim e franzo a testa ao vê-lo seguir com o filho para o pequeno cômodo e questiono mentalmente o fato dele saber exatamente onde ficava.
O chuveiro é ligado, e a luz da casa torna-se fraca, como sempre, quando isso acontece.
— Ele queria que a gente ficasse lá. — Nath grita. — Você sabe como ele fica quando chove assim.
— Ele tem a casa dele e a vida dele, precisa deixar a nossa em paz. — Gui grita de volta do banheiro, e tento assimilar a conversa sem fazer muitas perguntas. Parecendo solidária a mim, por estar fora do assunto, a mãe de Nath comenta baixinho:
— Aquele ingrato é meu filho, menina.
— Aaah! Obrigada por explicar. — sorrio, e ela me segue no sorriso conforme Guilherme e Brian saem do banheiro limpos e mais secos.
— Posso? — Ela aponta para o banheiro, e faço que sim com a cabeça.
— Obrigada, mana, sabia que podia te considerar... — Nath diz conforme tenta secar os cabelos negros com a ajuda de uma toalha.
— Eu sei que caso fosse o contrário, você faria o mesmo.
Nath troca de lugar com a mãe dela, um tempo depois, enquanto espero a minha vez de tomar um banho. A senhorinha me entrega sua toalha e estendo-a em um varal de chão.
— Aqui já foi mais bonitinho, mas ainda tá jeitoso. — Ela olha em volta. — A propósito, meu nome é Joana, esse é meu filho Guilherme, e a Nath, você já conhece. O Brian é meu neto, e o João... não preciso mais apresentar.
— João? — questiono, sem entender.
— Oh! Claro! Hades nem sempre teve esse nome, minha jovem, ele já foi um garoto como o meu Gui. — Ela olha com orgulho para o filho. — João Pedro é meu primogênito, e rezo todos os dias para que não seja o primeiro dos meus filhos a morrer também. — Ela suspira pesado. — Não que eu queira que os outros.... Você me entendeu! — Faço que sim com a cabeça, percebendo a sua aflição. — Esse mundo que ele escolheu...
— Pior que entendo bem. — Deixo escapar. — João Pedro é um nome muito bonito.
— Melhor do que Hades. — Gui gargalha, e eu faço o mesmo.
— Pare de implicar com o seu irmão. — Joana comenta, em tom de brincadeira, e completa: — Eles estão sempre implicando uns com os outros...
— O Hades esqueceu que tem família, mãe! — Nath fala ao sair do banheiro e, por fim, eu entro pensando no jantar e no quanto essa senhorinha deve sofrer por causa do filho mais velho. O barulho da chuva aumenta conforme retiro as minhas roupas.
Acho que teremos uma noite longa pela frente.
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