⊹⊱1⊰⊹
E cada cidade parece a mesma para mim
Os cinemas e as fábricas
E cada rosto de cada estranho que vejo
Lembram-me de que eu queria estar
No destino de casa
Eu queria estar
No destino de casa
Homeward BoundSimon & Garfunkel
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Olhei para o relógio novamente, eu estava encrencada, sabia disso... minha mãe me mataria. Prometi estar antes do jantar na casa dela, mas as aulas demoraram mais do que o previsto e tive que dar uma passada no grupo de estudos.
Não queria me gabar não, mas sem dúvidas eu era uma ótima astrônoma, motivo esse que me prendia na faculdade muitas vezes até altas horas da noite.
— Désirée, vem com a gente — uma colega de classe me gritou quando me viu passar.
— Hoje eu não posso, desculpa — acenei com a mão e tentei correr um pouco mais rápido até meu carro.
Meu celular tocou, era meu pai... tentei pensar em qualquer desculpa para não atender, mas sabia que a bronca seria ainda maior se eu não o fizesse.
— Désirée, onde você está? Está atrasada, sua mãe está quase ficando careca aqui — a voz grave dele ressoou pelo viva voz do celular.
— Estou indo — falei apressada procurando a chave do carro — tive um problema na faculdade, daqui a pouco eu chego, prometo.
— Ei, toma cuidado no caminho — como sempre, o senhor Angelle fez questão de me lembrar.
— Eu sempre tomo cuidado.
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O caminho até a casa dos meus pais não foi de fato desagradável, mas hora ou outra eu sentia um frio estranho percorrer a espinha que estava me deixando ansiosa.
Quando parei meu carro na garagem, o frio pareceu piorar ainda mais e sem dúvidas não era o ar do Jaguar F-Type azul que meu pai havia me dado de aniversário no ano anterior.
Aquele carro me irritava. Chamava muita atenção e era muito mais do que eu precisava e queria, mesmo assim, meu pai não precisava saber disso.
Respirei fundo, aquele frio não era comum. Fechei o carro e fiquei escutando a voz animada da minha mãe conversando com o meu pai.
A senhorita Mei, conheceu o senhor Pierre ainda na faculdade. A senhorita Mei, Taoísta fervorosa, mulher que falava com os espíritos e ajudava suas almas a encontrarem o caminho para a reencarnação, precisou fazer uma escolha difícil ao ficar com o meu pai. Exilada da própria família, encontrou no senhor Pierre uma felicidade que nunca havia experimentado antes e que é perceptível mesmo após anos de casados. O senhor Pierre por sua vez, um francês que costumo chamar de francês às avessas, uma brincadeira interna pelos estereótipos dos franceses pelo mundo e por ser um dos homens mais higiênicos que eu já conheci, era desordeiro e só acreditava naquilo que seus olhos podiam ver. Ta bom, ta bom, não sei como são os costumes na França, nunca estive lá e meu pai tem uma certa aversão sobre assuntos que envolvam o seu passado.
Mas se minha mãe é chinesa e meu pai francês e eu não conheço nenhum dos dois países, então, de onde eu sou? Talvez não seja uma pergunta que tenha te passado pela mente, mas vou contar mesmo assim:
Nasci na Grécia, mas especificamente em Athenas. Não me encaixo aqui, pois assim como a minha mãe, vejo os espíritos e para que não me olhassem de maneira estranha, eu simplesmente deixei de falar sobre essas coisas com o passar do tempo.
Subi as escadas de maneira lenta, tentando conseguir uma melhor desculpa do que só "me empolguei com o grupo de estudos e esqueci da minha janta de aniversário de vinte anos", não consegui.
Assim que passei pela porta, o frio pareceu ficar mais intenso e precisei cruzar os braços para tentar fazer entrar calor no corpo.
— Désirée Yu Angelle — minha mãe cruzou os braços ao me ver.
Ela tinha a cara fechada e claramente chateada. Além disso, ela me chamou pelo nome completo... sorri de maneira tensa.
— Me desculpa, eu...
— Nem tente inventar desculpas, mocinha — ela bufou — a comida já está fria.
Ela me fuzilou com aqueles olhos pequenos dela e depois suspirou, deixando a expressão mais suave.
— Venha — ela me puxou para um abraço inesperado, minha mãe nunca abraçava ninguém, nem mesmo eu — Feliz aniversário, minha pequena Yu.
— Mãe, está tudo bem? — perguntei estranhando sua reação.
— Você irá embora — meu pai falou de maneira triste trazendo uma mala com todas as minhas coisas.
— De novo? — falei baixo já entendendo a situação.
— Eu sinto muito — os olhos da minha mãe se encheram de lágrimas.
— Quanto tempo temos? — perguntei para ela.
— Precisamos sair agora mesmo — ela falou baixo — Consegui uma casa para você nas imediações do Épiro.
Épiro, onde está localizado o rio Aqueronte, ou como havia sido conhecido: o rio do infortúnio. Acreditava-se que fosse um afluente do Rio Estige, este localizado no Mundo Inferior. Nele supostamente se encontra Caronte, o barqueiro que leva as almas recém-chegadas ao outro lado do rio, às portas do Hades, onde o Cérbero os aguarda.
Péssima escolha.
— Por que para lá? — perguntei sentindo a ansiedade aumentar — De acordo com os estudos, ali próximo está uma das entradas para o submundo.
Meu pai estalou a língua, as vezes era difícil para ele acreditar naquelas coisas e segundo a minha mãe, ele demorou alguns bons anos para acreditar que não era esquizofrênico e aceitar que ele só podia ver os espíritos quando eu estava por perto, já que eu era um suposto catalisador para esse tipo de coisa.
Quando eu nasci, minha mãe previu o meu destino e desde então, fugimos dele, mas nos últimos dois anos, as coisas ficaram mais difíceis, eu tinha a sensação de que não poderia fugir para sempre, mesmo assim, me recusava a somente me sentar e esperar que acontecesse.
— Não conseguimos outro lugar, mas conseguimos pessoas para me ajudar a colocar os amuletos ao redor da casa para te camuflar e proteger, será uma medida temporária, só até conseguirmos sair do país.
Sair do país... meu estômago embrulhou. Não me sentia bem na Grécia, era uma verdade incontestável, mas de repente sair dali me pareceu algo ainda mais terrível. Sair da única realidade que eu conhecia me apavorou naquele momento, mas eu apenas acenei. Não sabia o que pensar.
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A viagem foi feita em um silêncio tenso, como todas as outras vezes, minha mãe se fechou no seu silêncio meditativo, enquanto meu pai puxava as cutículas da unha de maneira nervosa e ansiosa.
Pousei minha mão na mão do meu pai e tentei sorrir.
— Vai dar tudo certo — falei para acalmá-lo e ele me devolveu um sorriso tenso também, enquanto acenava levemente com a cabeça.
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Quando chegamos na casa, não pude conter a admiração. A casa sem dúvidas era impressionante. Cobria uma área aproximadamente de 120 metros quadrados, área que eu medi ao olhômetro somente, então eu poderia estar bem errada. A área era bonita e tinha uma vitalidade vigorosa.
A fachada era pintada de um amarelo vibrante, ostentando detalhes em azul celeste que realçavam as janelas e a porta principal. Uma trepadeira florida se entrelaçava pela treliça ao lado da porta, criando um ambiente acolhedor e convidativo.
Com o coração palpitando, subi os degraus da varanda e abri a porta. Fui recebida por uma sala ampla e iluminada, com piso de madeira clara e móveis modernos. Um sofá em tons de cinza e azul ocupava o centro do ambiente. À direita, uma estante repleta de livros e objetos decorativos criava um clima aconchegante. Quem quer que fosse o dono da casa, sem dúvidas tinha um bom gosto.
Curiosa, explorei os outros cômodos. O quarto principal tinha paredes brancas e detalhes em tons de verde. Uma cama king-size com lençóis macios que me chamaram a atenção na mesma hora por conta do corpo cansado. No banheiro, azulejos azuis e brancos criavam um ambiente clean e relaxante, enquanto a banheira de hidromassagem me prometia momentos de tranquilidade.
Eu sonhei com o paraíso e ali estava ele. Sorri de maneira aberta, esquecendo minha real situação.
Cada canto da casa revelava um novo detalhe encantador, desde os quadros com pinturas gregas pendurados nas paredes até os vasos de flores estrategicamente posicionados. Era evidente que aquele lugar fora decorado com amor e cuidado, criando um ambiente acolhedor e cheio de personalidade.
Enquanto me familiarizava com o "meu novo lar", senti uma onda de felicidade estranha me invadir. Tive a sensação de que aquela casa era mais do que apenas um lugar para morar, era um refúgio, um santuário, um lugar onde eu poderia ser eu mesma, uma sensação que nunca havia tido na vida. Aquela felicidade repentina me assustou.
Tomei banho rapidamente e me deitei, sendo tomada quase instantaneamente pelo cansaço.
Acordei com o aroma delicioso de bolo fresco e me deixei ser guiada até a cozinha, como se fosse aqueles desenhos infantis onde raptam os personagens pelo cheiro. Quando cheguei, encontrei uma mesa redonda de madeira rústica, cercada por cadeiras de vime. Uma jarra de flores silvestres adornava o centro da mesa e na frente de uma das cadeiras, havia um bolo de aniversário.
Sorri de maneira aberta e sincera ao ver minha mãe e meu pai esperando, por mim.
— Sinto muito que tudo tenha acontecido assim em um dia como hoje — meu pai me abraçou de maneira carinhosa — Feliz aniversário, meu amor.
Comemos de maneira animada, eles me falaram sobre o dono da casa, um homem chamado Alexander e que também era um monge taoísta. Segundo minha mãe, ele era bem conhecido por sua generosidade e tanto minha mãe como meu pai me garantiram que eu poderia ficar ali tranquilamente até eles conseguirem um novo lugar. Eles teriam que voltar para Athenas, para finalizarem seus negócios antes de me encontrarem de novo.
Deixamos o assunto morrer, para que pudéssemos falar de coisas mais animadas e após comermos, arrumamos minhas coisas e eu me despedi deles.
Era incrível como a saudade dos dois sempre vinha de maneira imediata assim que os perdia de vista, mas fazia mais de um ano que eu morava sozinha, então, aqueles momentos solitários não eram incomuns para mim.
Tranquei a casa e fui até o quarto de novo. A escuridão da noite invadiu o ambiente me deixando novamente com sono, me movi até a janela, mas ao invés de fechá-la, a abri um pouco mais para a luz do luar entrar.
Ainda com a mesma felicidade estranha e com um sorriso nos lábios, fui até uma das poucas malas que eu ainda não tinha desfeito e escolhi uma camisola longa e verde. O tecido macio deslizou pelas minhas mãos, antes de deslizar pelo meu corpo formando uma cascata verde que me envolveu como um abraço.
Me deitei sentindo o colchão macio acolher meu corpo. A camisola verde se ajustava às minhas curvas, criando uma sensação de segurança e paz, outra sensação que não estava acostumada a sentir nunca.
Fechei meus olhos e deixei a escuridão me envolver. A brisa suave da noite entrava pela janela, acariciando meu rosto.
Dormi rapidamente.
Acordei no meio da noite com o som de água caindo, tateei a cômoda ao lado da minha cama, mas não achei meu celular. O som de água vinha do banheiro e um frio terrível envolveu novamente meu corpo me fazendo arrepiar.
Com o coração acelerado, acendi rapidamente o abajur do meu lado e instantaneamente o som de água parou.
Eu tinha duas opções ali, ou havia um ladrão na casa, ou havia um fantasma. Para a primeira opção, eu podia tentar bater nele e chamar a polícia, para a segunda, eu só podia tentar ser tão boa quanto a minha mãe para ajudá-lo a achar o caminho antes que ele fosse acorrentado ao mundo mortal.
Me aproximei com o coração acelerado e com o corpo tremendo da porta do banheiro. Cada pisada minha parecia que iria levar minha alma embora do corpo.
— Por favor, que seja só um fantasminha bonzinho e fácil de lidar — repeti várias vezes em voz baixa — e que não queira puxar parte da minha energia como todos os outros.
Olhei para o chão e no vão da porta, havia água escorrendo. Tremi ainda mais. Respirei fundo enquanto novamente repetia a mesma coisa.
— Por favor, só um fantasminha — abri a porta de uma única vez e relaxei o corpo de uma maneira que quase caí e continuei falando — ou uma pia vazando.
Voltei rindo de mim mesma após fechar o registro. Procuraria alguém para arrumar o encanamento no dia seguinte. Fui em direção a cama e me deitei, mas precisei colocar outro cobertor e fechar a janela antes, sem dúvidas estava terrivelmente frio.
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Observações:
Astronomia é uma ciência natural que estuda corpos celestes e fenômenos que se originam fora da atmosfera da Terra. Preocupada com a evolução, a física e a química de objetos celestes, bem como a formação e o desenvolvimento do universo. A astronomia é uma das mais antigas ciências.
O taoismo, também chamado daoismo e tauismo, é uma tradição filosófica e religiosa originária do Leste Asiático que enfatiza a vida em harmonia com o "Tao", a ordem geral do universo, que no chinês significa "caminho" ou "princípio", e no taoismo designa a "fonte" e a força motriz por trás de tudo existente.
O Epiro é uma das 13 regiões modernas da Grécia, localizada no sudoeste da península balcânica. A sua capital é Janina. Historicamente, cobre parte da Grécia e da Albânia. Limita com a Cadeia do Pindo a leste; a grande ilha de Corfu e o mar Jônico a oeste; o golfo ambraciano ao sul; e a Ilíria ao norte.
SOBRENOMES PELO MUNDO
Diferente do que vemos no Brasil, em muitos países, os filhos recebem apenas o sobrenome paterno e isso não era diferente na China (até 2007), onde os chineses, que até então só podiam ter o sobrenome do pai, passaram a ter autorização de também possuir o da mãe, graças a uma reforma que quis reduzir a repetição de nomes entre o 1,3 bilhão de cidadãos do país.
Os franceses por sua vez, possuem três opções na hora de registrar seus filhos: dar à criança o sobrenome paterno, materno ou ainda os dois juntos. Em caso de litígio, os sobrenomes do pai e da mãe deverão ser levados em conta, respeitando-se a ordem alfabética.
Na Grécia eu não encontrei informações sobre isso para a atualidade, onde todos possuem sobrenome (diferente do que era na Grécia Antiga), mas aparentemente usam apenas o sobrenome do pai (posso estar errada).
Apenas para dado de curiosidade, a lei de registros públicos do Brasil não diz nada a respeito da ordem dos sobrenomes, assim, fica a critério dos pais estabelecerem como o registro do nome do filho (a) será realizado, podendo, portanto, ser "Fulano sobrenome do pai/mãe, ou, o tradicional, "Fulano sobrenome da mãe/pai".
Na história eu mantive a personagem Désirée como "Désirée Yu Angelle", sendo Yu sobrenome herdado da mãe e Angelle do pai, contrariando todas as normas vistas acima apenas porque eu gostei da sonoridade de como ficou.
Zagreu, por ser um deus e vir da mitologia da Grécia Antiga, não possui um sobrenome, assim como todos os deuses da mitologia grega ou até mesmo pessoas que viveram na época.
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