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Capítulo Único

— Mas por quê, mamãe? – perguntava Kyrah, pela décima vez naquela manhã. 

Novamente, mamãe não a escutou; simplesmente colocou um pão com mel na frente dela. Mania de a mãe pensar que toda vez que ela reclamava era porque estava com fome. Ela não era mais bebê, já sabia falar! Não que fosse adiantar muito naquela cozinha cheia de mulheres tagarelando ao mesmo tempo. Kyrah virou os olhinhos para o teto. Mulheres irritantes.

— Mas por quê, mamãe? – ela insistiu, novamente sem receber resposta. 

Berna olhou pra ela severamente e pôs o dedo sobre os lábios, mandando-a ficar quieta. Kyrah botou a língua para ela. Olhou para mamãe, pronta para repetir a pergunta. Desistiu: a mãe continuava correndo atrás de Una, tentando fazê-la comer alguma coisa, ao mesmo tempo em que respondia a uma indagação da vizinha; qualquer coisa sobre se deviam usar água ou óleo fervente. Kyrah franziu as sobrancelhas. Pra quê? "Espero que a mamãe não esteja querendo fazer peixe; é uma eca".

—Vamos, Kyrah, venha, vou arrumar seu cabelo – disse uma prima de mamãe, do clã dos Gulltoppr. Kyrah foi batendo o pé. Que coisa, ela nem tinha terminado seu pão. E ninguém se dava ao trabalho de explicar-lhe porque raios ela precisava acordar antes do sol nascer, arrumar-se toda e... sei lá o que viria depois.

Mulheres chegavam a cada segundo, e pelos ruídos, havia dezenas de crianças sonolentas lá fora, tão perplexas quanto Kyrah. Também os bardos tinham sido convocados, aqueles que estavam na aldeia. As mães davam as últimas instruções aos seus pequenos, entregavam-lhes farnéis com o almoço, e faziam recomendações aos bardos também, que não estavam exatamente felizes por ter lhes restado essa função de babá. O que os outros diriam quando voltassem da guerra – era preciso assistir as façanhas dos guerreiros para saber cantá-las – eles nem queriam saber.

—Aqui estão elas, Oleg – disse Ondina, saindo da casa e aproximando-se do bardo mais velho com as filhas. As gêmeas Una e Kyrah tinham os cabelos cacheados presos no alto da cabeça para não atrapalhar as brincadeiras; quanto à Berna, mamãe estava terminando a trança do lado esquerdo. – Pra onde vocês vão?

—Pretendemos levá-los para a clareira perto do riacho, no canto norte da floresta. Tem um espaço grande para eles brincarem lá e como é aberto vamos conseguir manter os olhos neles.

—Sim, é uma ótima ideia. A distância é boa também; qualquer emergência e vocês podem levá-los para mais longe.

—Os grandinhos vão ficar aqui? – questionou o bardo, querendo ter certeza se recebera as instruções corretas.

—Uhum; as mulheres decidiram que oito anos já é uma boa idade para aprenderem a se defender. Não sei se concordo; de qualquer forma, nenhuma das minhas tem essa idade. Pelo que você tem visto, as crianças estão levando comida suficiente?

—Talvez tenhamos que caçar, se precisarmos ficar lá mais tempo que o previsto. Mas isso será uma diversão para os pequenos. De qualquer forma, nós estamos levando uma carroça com o estoque que tínhamos em nossa tenda.

—Vocês sempre prestativos... Nossos ancestrais tiveram razão em acolher tantos bardos. Bem, muito obrigada, Oleg. Acho que estão todos aqui – disse Ondina, olhando em volta – é melhor você ir agora.

— Certo, senhora – disse o bardo, fazendo uma reverência à pequena mulher do chefe. Esperou Ondina se despedir das filhas e pegou as mãos das gêmeas, chamando Berna para que o acompanhasse também.

Como todas as outras crianças ali, as filhas dos chefes usavam capinhas – pois era um frio outono aquele – e carregavam bolsas de comida. Cercados por um bando de uns vinte pirralhos meio adormecidos, além dos doze bebês de zero a três anos que vinham em cestos na carroça, os bardos não tiveram muito trabalho para controlá-los na primeira parte do caminho por dentro da floresta. O problema é que vento gelado no rosto é um dos melhores despertadores que já foram inventados...

—Vamos fingir que nós somos guerreiros indo pra uma batalha? – sugeriu Alfes Beidablick, um garoto loirinho que estava entre os maiores da turma, com sete anos. A ideia foi acolhida com entusiasmo por parte dos garotos, que eram maioria no grupo.

—Tá, mas eu vou ser o chefe – disse Aelfric Donnerstag, um menino gordinho e grandalhão com a mesma idade.

—Por que você, se fui eu que dei a ideia? – reclamou Alfes, cruzando os braços. 

Aelfric encarou-o.

—Porque eu sou mais forte, então sou mais parecido com o chefe – disse.

—Se for por aí, eu sou o mais inteligente, então eu devia ser o chefe – disse Gorki Hofvarpnir, um garoto também com sete anos mas de proporções bem menores que os outros. Se ele fosse mesmo o mais inteligente, não se envolveria nessa disputa.

—Repete isso se for homem! – disse o Donnerstagzinho, puxando ameaçadoramente seu machado de brinquedo.

—Na verdade, eu não sou homem, sou menino... – ia dizendo Gorki, mas não teve muito tempo para isso antes dos "candidatos rivais" partirem para cima dele, lançando-o numa moita à beira do caminho e socando-o como a uma massa de pão.

Sem dar muita importância para isso, os outros garotos haviam iniciado a brincadeira de soldado, e marchavam com as arminhas de brinquedo nos ombros, e os joelhos subindo bem alto.

Hey, hey, guerreiro eu sou! Hey, hey, pra guerra eu vou! – cantarolavam, com suas vozezinhas nada másculas. Una e Kyrah postaram-se no fim do esquadrão, despercebidas, onde marchavam cantando a mesma coisa.

— Você não pode ser guerreiro numa tropa goda, Trüppendorf! – berrou um menino de sete anos alto e quase albino, chamado Asgard Gulltoppr, empurrando o pequeno que marchava ao seu lado. – Meu pai disse que você é gaulês!

— Sou gaulês uma ova! – gritou o outro menino, ficando vermelho até o capacete. Levantou e correu a devolver o empurrão. – Eu sou godo!

Tristan Gaulês, o que você fez? Encontra um romano e perde a vez! – um dos garotos começou. Logo quase todos os outros se juntaram ao refrão e, fazendo uma rodinha, dançavam em volta do garoto, zombando. Depois de tentar bater neles sem sucesso, porque se desviavam, o rapazinho deixou penderem os braços e parecia prestes a cair no choro.

— Parem com isso! – disse outro garoto, mais alto que Tristan e com a pele bronzeada. Ele avançou para dar um soco no loiro que fazia caretas para o lacrimoso "gaulês".

— Ora, mas se não é o Huno que está defendendo! – vaiou outro menino no grupinho. – Você também não pode fazer parte da tropa.

 Angus, o Huno, achou que era tribuno e ficou com pena do Vercingetórix! as crianças saíram-se com mais uma musiquinha. O defensor perturbou-se ao ser atacado.

— Seus idiotas, deixem esses meninos em paz! – gritou uma vozinha aguda, e uma menina gorducha e sardenta precipitou-se para cima da ciranda de zombadores. 

Era Ingra Donnerstag, irmã de Aelfric. O primo deles, um garoto também gordinho chamado Beowulf, veio ajudá-la, e, apesar de ser chamado de bola de sebo e barril, não recuou. A tropa assim aumentada deu coragem a Tristan e Angus, que voltaram a enfrentar seus atacantes, e a coisa tomou proporções medonhas, com crianças socando-se pelo caminho.

Berna puxou a manga do bardo que a levava pela mão.

— Vocês não vão fazer nada? – perguntou, apontando o aglomerado.

— Não podemos – disse o rapaz, encolhendo os ombros. – Os pais desses meninos querem que eles sejam guerreiros valentes, brigariam conosco se interferíssemos. Então os deixamos se matar.

A menina arregalou os olhos.

— Eu não vou ser guerreiro! – ouviu, então, e olhou em volta até encontrar o autor da fala: era o menino que estava na outra mão do bardo.– Vou ser bardo. Mas não conte pra ninguém; porque papai ficaria decepcionado. É um segredo só meu e do tio. E agora seu também. Né, tio?

E ele ergueu dois enormes olhos azuis saltados para o rapaz que os guiava, que confirmou. Virou-se, então, para a menina.

— Não vai contar? – ele perguntou, repentinamente preocupado.

Berna fez que não com a cabeça.

— Ufa! Meu nome é Bjorn Zrymeheim – apresentou-se o garoto. Berna abria a boca para responder, mas ele a interrompeu. – Eu sei quem você é. Todo mundo sabe quem você é. Você é filha do chefe. E essas duas ali também – ele disse, apontando para Una e Kyrah, que caminhavam na frente deles, contidas com dificuldade por Oleg. – Mas você é mais velha. Viu como eu sei? Fui na sua festa de aniversário mês passado. A minha vai ser na semana que vem, na minha casa. Vou fazer cinco anos. Você quer ir?

— Sim – respondeu Berna, aproveitando a pausa que Bjorn fizera para respirar. – Mas eu não sei onde é a sua casa.

— Ah, não tem problema, meu tio vai buscar você.

— Minhas irmãs podem ir também? – Berna questionou.

— Claro! Vai ter muuuita comida. E nós vamos brincar de dança dos fardos.

— Eu não tenho certeza se sei brincar disso.

— É bem fácil. O tio toca uma música, e tem uns fardos pequenos de trigo no chão, então todo mundo fica rodando em volta dos fardos até que...

— Atenção crianças, vamos acampar nesta clareira! – a voz forte e bonita de Oleg interrompeu a conversa. – Deixem seus farnéis e capas perto deste olmo grande. Nós vamos ficar aqui e vocês podem ir brincar, mas não muito longe. Qualquer coisa, já sabem onde nos procurar.

Respirando aliviado ao ouvir o tropel de passinhos que se afastavam, Oleg voltou-se para a carroça, que seus três colegas terminavam de trazer para a clareira. Depois de verificar se nenhum bebê tinha engolido algo danoso, ou a orelha do seu coleguinha, jogou-se no chão junto aos outros e, como eles, pôs-se a verificar a afinação de seu instrumento placidamente, trabalho pontuado por conversas esparsas.

Já vários metros adiante, as crianças pararam. Geri Tanfana – menino de seis anos e cara comum – tinha ganhado a corrida. Agora eles precisavam de outra brincadeira. Ofegantes, puseram-se a discutir sobre isso.

— Eu acho que a gente devia brincar de tocaia – disse um dos meninos menores, loirinho de cabelos lisos. Chamava-se Fialar Von Skidbladnir.

— É? E nós vamos ficar de tocaia pra quem, seu bobão? – retrucou o irmão mais velho dele, Wotan, dando um tapa na nuca do irmãozinho. Era parecido com Fialar, mas mais alto e de cabelos cacheados.

— Então vamos montar armadilhas – sugeriu uma menina também loira, porém sem parentesco com os Skidbladnir. – Eu quero pegar um coelhinho pra ser meu bichinho de estimação! – disse Brunhild Beidablick, fazendo um gesto gracioso. Sua mãe era irmã do chefe, e ela sempre brincava com suas primas. Kyrah abanou a cabeça para ela; depois da explosão sobre o coelho, ninguém mais deu atenção às sugestões da loirinha.

— Vamos brincar de cavalgada! – tentou impor Aelfric Donnerstag. – Você vai ser o meu cavalo – completou, apontando para um garotinho pequeno e tímido que estava enrolado na capa até o capuz, e escondido atrás de Beowulf. Ninguém aceitou. A discussão permaneceu por mais alguns minutos, até que Ingrid Tanfana, menina magrinha de pele morena, saiu-se com essa:

— É melhor brincarmos de caçada. Alguns são os javalis, e outros os caçadores. Depois troca.

De tudo o que fora sugerido até ali, isso parecia o mais razoável. Era divertido, porque misturava corrida e esconderijo. Seriam cinco caçadores e quinze animais. Os meninos não queriam deixar nenhuma menina ser caçadora, porque, afinal, elas estavam em minoria, mas após uma disputa, decidiram resolver isso pela sorte. E Kyrah Von Brandeburg conseguiu uma vaga entre os cinco, para sua grande felicidade. Além dela: Alfes Beidablick, Tristan Von Trüppendorf, Gorki Hofvarpnir e o pequeno menino da capa, que se chamava Rincewald Tanfana. Para Rincewald, parecia igualmente ruim ser caça ou caçador, mas ele queria brincar com as outras crianças mesmo assim.

Os caçadores esconderam os olhos nos braços, apoiando-se em árvores, e contaram por um tempo, enquanto os outros tinham liberdade de correr para os melhores esconderijos, fossem estes aqui ou ali, no alto de uma árvore ou debaixo de um tapete de folhas secas — estavam em pleno outono, e havia muitos desses. Chegando ao fim da contagem, os caçadores se viraram; deviam trabalhar em equipe, como faziam os caçadores de verdade da aldeia: assim, a chance de terminar o trabalho mais rápido aumentava. Mas aquele que pegasse mais "javalis" poderia, como prêmio, escolher a próxima brincadeira. Esse era o combinado.

Depois de um rápido colóquio, eles se dividiram.

Tristan, o pequeno que chamavam de gaulês, ganhou a esquerda como seu terreno de caça. Assumindo um ar sério, ele empunhou sua espada de brinquedo e estreitou os olhos para as moitas em frente. 

A três passos havia um arbusto de amieiro. Ele avançou para lá precipitadamente. Nada. Com o canto do olho, percebeu que, mais adiante, quase encostado a um alto teixo, havia um arbusto da mesma espécie. Podia ser impressão, mas ele achava que tinha visto uma pontinha castanha sobressaindo-se sob a moita. Ele foi até lá pé ante pé e...

— Te peguei! – rosnou, puxando quem quer que fosse pelo cabelo.

— Ai! – gemeu Berna, não de dor, mas de decepção por que tinha sido pega tão rápido. – Ah, menino, me dá uma chance! Eu vou ter que esperar um tempão até começar outra rodada... – ela sussurrou, de mãos juntas. – Não deu tempo de me esconder direito...

O garoto olhava do rosto dela para a trança em sua mão, não muito disposto a atender o pedido. Soergueu-se, pronto a arrastá-la para fora dali, em direção à bétula onde deviam ficar os capturados.

— Por favor... – implorou a menina, com os olhos marejados. 

Tristan bufou, soltando a trança dela.

— Tá bom, foge logo antes que eu mude de ideia! – resmungou. – E vê se arranja um lugar melhor pra se esconder.

— 'Brigada! – ela exclamou, dando um beijo no rosto dele antes de correr abaixada por entre as árvores mais para dentro da floresta.

— Ei, Tristan, o que você achou aí? – perguntou Gorki, que procurava ali perto. O outro levantou, ainda com o rosto corado e os olhos espantados.

— N-nada... – balbuciou. – Pensei que fosse alguém, mas era só o rabo de um esquilo – mentiu.

— Ah... – fez Gorki, sem prestar atenção, jogando uma pedra no alto de uma árvore. Wotan Von Skidbladnir tombou de lá, mas saiu em disparada antes que Gorki tivesse tempo de agarrá-lo. – Me ajuda aqui! – este gritou para Tristan, e ambos saíram em perseguição a Wotan.

Enquanto isso Kyrah, no lado oposto da clareira, tinha aceitado o tímido Rincewald na sua equipe, e não se arrependera, porque apesar de não muito valente, ele tinha uma visão de águia, e, assim, eles capturaram Ingrid, Ingra, Geri, Bjorn e mesmo o selvagem e enorme Aelfric, que deu bastante trabalho para os dois, e no fim não queria aceitar sua captura –como a maioria das crianças, na verdade – e acabou discutindo com Rincewald e partindo para cima dele.

— Solta ele! – gritou Kyrah, com sua vozinha aguda, assustada ao ver que Aelfric estava estrangulando Rincewald de verdade. 

Olhou em volta: as crianças, longe, estavam todas entretidas na brincadeira. Com os bardos não podia contar. Que remédio? Ela pulou nas costas do garoto! Arranhava-o com toda a fúria que seus quatro anos permitiam, mas não estava dando resultado. Aelfric parecia não se incomodar com o peso em suas costas, e Rincewald já estava ficando azul. 

Com uma careta de nojo, Kyrah resolveu apelar, e mordeu a orelha do Donnerstag como morderia um pedaço suculento de carne de javali. Ele gritou e soltou Rincewald, voltando-se furiosamente para Kyrah. Se foi o olhar frio e desafiador da menina ou o fato de ela ser filha do chefe não importa, o fato é que o menino parou de resistir à captura, e deixou-se levar para a bétula fatal.

Mesmo assim, ele tinha sido um dos últimos cinco a serem capturados, e integrou a turma de caçadores da segunda rodada. Eles jogaram aquele jogo por mais umas três rodadas, até que a barriga dos bardos começou a roncar; então, um dos músicos procurou um ponto em que o céu estivesse mais visível para verificar a posição do sol, e decidiu que já era hora do almoço. 

As crianças foram reunidas em torno dos seus farnéis, e os homens acenderam uma fogueira para esquentar a comida de quem aguentasse esperar. Um deles foi encarregado de encher dezenas de cantis no riacho a um passo dali, e as crianças juntaram-se em grupos para comer o que quer que suas mães tivessem mandado, regado a água cristalina.

Havia três grupos. No primeiro e maior – dos machões independentes que resolveram se sentar mais longe dos bardos – estavam Alfes, Aelfric, Aerick Towarish, Asgard, Gorki, Geri, Wotan e, por extensão, seu irmão Fialar. A meio caminho, perto da fogueira, sentavam-se Angus, Tristan, Beowulf e Rincewald. Ingra ficou primeiro com o irmão; depois se aborreceu com os valentões amigos dele e foi sentar com o primo Beowulf, levando sua amiga Frida Walaskialf, que era a menina mais nova ali. Por fim havia o último grupo, sentado perto da carroça: as filhas do chefe, sua prima Brunhild, a amiga Ingrid, e Bjorn, que Berna convidou para comer com elas.

— O que você trouxe? – perguntou Brunhild, curiosa, ao ver o sobrinho do bardo se aproximando. Apesar de magrinha, ela era bastante comilona.

— Uhm... Nada de muito bom. Carne de cabra, leite de cabra, queijo de cabra... Se cabras botassem ovos, com certeza minha mãe teria posto alguns aqui – disse o menino, fazendo as garotas rirem. – E você, o que tem?

— Muitas coisas – disse Brunhild, com a boca cheia, apontando para o seu pacote que, de fato, estava bem pesado, repleto de guloseimas as mais variadas. – O que acham da gente trocar?

— Muito legal! – disse Una, batendo palmas. Em seguida, pegou sua própria capinha e estendeu-a no chão, começando a esvaziar seu farnel ali. As outras meninas e o garoto fizeram o mesmo. Tiveram, assim, um almoço variado, que incluía desde mel até pão de aveia e frutas secas.

— Um esquilo me mordeu mais cedo, enquanto eu caçava – contou Kyrah, pegando um bolinho de trigo recheado com amoras. – Devia ter pegado ele para assar, e teríamos mais um prato.

— Que horror, Kyrah! – disse Una, com uma careta. – Você não pode ser tão malvada – Kyrah deu de ombros.

— Liga não, princesa! –Bjorn riu. – Eu bem que ia gostar de um esquilinho de vez em quando; não posso mais ver cabra. Acho que quando eu for velhinho vou morrer escoiceado por um bode.

— Você não quer morrer na guerra? – Kyrah perguntou, erguendo as sobrancelhas para ele com pasmo.

— Meus vizinhos, os Hofvarpnir, também são pastores de cabras – disse Brunhild, sem dar tempo para Bjorn responder a Kyrah. – Ai, eu detesto o filho deles, aquele menino ali, ó – ela cochichou, apontando para Gorki, no grupo mais distante. – Ele diz que eu tenho voz de cabrito. E ele diz isso de você também, Una.

— Manda ele vir dizer na minha cara – falou Una, cuja voz era de fato irritante para quem não estava acostumado.

 Antes que ela tivesse tempo de continuar, ouviu-se um choro alto. Elas olharam para Berna, que estava com a mão na boca e uma maçã na outra mão.

— O que aconteceu? – perguntou Brunhild, ao lado dela.

— Meu dente! – exclamou Berna. Não que ele estivesse doendo, só não estava mais na boca dela, e sim pregado na maçã.

— Ai! – fez Kyrah, com uma careta que podia ser de pena.

— Fica tranquila, Berna. Isso já aconteceu com meu primo; minha tia disse que enquanto a gente é pequeno não faz mal perder os dentes que cresce outro no lugar – disse Ingrid.

— Acontece que já é o segundo, e o buraco tá aumentando! – disse Berna, tirando a mão do rosto para mostrar do que estava falando. – Só quero ver o tamanho do dente que vai ter que nascer pra tampar tudo se continuar assim. Eu não quero ficar dentuça! – ela choramingou.

— Irc, tá sangrando! – constatou Bjorn, botando um dedinho no lábio da garota sentada ao lado e saindo com a ponta dele vermelha. Berna arregalou os olhos, pronta para chorar novamente com um "Eu vou morrer!" estampado na cara. – Toma aqui, limpa – disse o garoto, cavalheiro, oferecendo a manga da sua blusa para a amiga.

Berna aceitou o oferecimento, o que foi motivo para ela ser uma das vítimas de um corinho puxado pelo louro Wotan, que vira o gesto:

 O Coruja namora a princesa! O Coruja namora a princesa! Oferece o bracinho, que bonitinho! O Coruja namora a princesaaaa!

— Bobocas... – exclamou Kyrah, girando os olhinhos para o alto.

— Não namoro não, seus idiotas! – disse o menino, pulando de pé, vermelho. – Não namoro não, eu já disse! Parem, parem!!! – ele gritou, mais alto, realmente irritado, mas agora já estavam todos zombando. Vendo que o sobrinho estava prestes a perder a compostura, o bardo Zrymeheim interferiu:

— E se ele namorasse, seria um garoto de sorte, porque quem ficar com a princesa Berna vai ser o próximo chefe, se ela não tiver mais nenhum irmãozinho – relatou. Isso fez as crianças emudecerem por um instante.

— Então você quer namorar comigo? – uma voz atingiu Berna antes de ela ver o garoto gorduchinho que a olhava ansiosamente de cima. – Pode ser só de nome, eu deixo você ficar com o Coruja escondida – propôs Beowulf.

— Sai daí, baleia, você nunca vai ser chefe! – disse Asgard. – Um chefe precisa de músculos, e você é pura banha.

— Até porque, eu é que serei – disse Geri.

— Não, eu, é claro – falou Gorki.

— Eu!

— Eu!

E, esquecendo totalmente a parte sobre Berna, os meninos brigavam para ver quem seria o próximo chefe, como se eles precisassem de um para amanhã. Isso deixou os menores confusos, e a pequena Una veio cutucar o braço de Oleg com os olhinhos cheios de lágrimas.

— Meu pai morreu? – ela perguntou.

— Não... eu acho – começou o bardo, confuso. 

Não devia ter acrescentado a segunda parte: Una disparou como uma sirene. Vendo a irmã chorando por causa do pai, Kyrah pôs-se a chorar também, embora mais quietamente, escondendo o rosto nos braços. Brunhild começou a soluçar "Meu titiozinho! Tão fofucho! Parecia de pelúcia!" e aquilo estava virando um caos. Oleg fulminou o tio de Bjorn com um olhar, enquanto os bebês, assustados com a barulheira, davam sua contribuição de berros e lágrimas.

Foi um trabalho miserável pôr ordem naquilo. Levou mais ou menos meia hora para acalmar todos, depois do que, os bardos tiveram que arrumar a bagunça que as crianças tinham deixado, pois não recolheram os destroços do almoço antes de ir brincar. O humor deles não estava no ponto alto, e Zrymeheim tio procurava sabiamente ficar fora do campo de visão de Oleg.

Enjoados já da caçada, os pequenos resolveram brincar de guerra: esta era, de longe, a brincadeira favorita da maioria daquelas crianças. Mas ela estava vedada às meninas, que não conseguiram ser aceitas nem no time dos inimigos.

— Guerra não é lugar pra meninas! – respondiam os garotos, aos protestos enfáticos das pequenas fêmeas.

— É; vão pegar uns bichinhos e finjam que são bebês – sugeriu um menino, tentando ajudá-las a ter algo para fazer.

— Isso não tem graça – disse Ingra, cruzando os braços.

— Queremos lutaaar! – choramingou Kyrah, pela décima vez.

— Tá, mas nós não podemos fazer nada – outro garoto deu de ombros, diplomaticamente. – Não é conosco, é só que vocês não podem, porque são mulheres. Não existem mulheres guerreiras.

— É. Vocês já viram alguma mulher lutando?

— Já – disse Berna, triunfante. – Hoje mesmo. Vocês não sabem por que nós estamos aqui, não é? Nossas mães ficaram na aldeia lu-tan-do. Ha!

O silêncio que se seguiu a isso fê-la considerar se não havia falado demais.

— É mentira – disse Angus, então, meio em dúvida.

— Não é não – Berna tinha que defender seu argumento. – Ontem o seu pai – e ela apontou para Aerick Towarish, menino pequeno, de sete anos, filho do mensageiro – foi na minha casa entregar uma mensagem, quando já estava todo mundo dormindo. O papai tinha mandado a mamãe preparar as mulheres pra se defender e protegerem as nossas casas. Por isso que a mamãe mandou os bardos trazerem a gente pra cá, para a gente não atrapalhar.

— E como é que você sabe? – perguntou o Gaulês, ressabiado. – Sua mãe não contaria isso pra você.

— Eu acordei de noite precisando ir lá fora – explicou a menina. – Então ouvi a conversa.

As crianças permaneceram olhando para ela. Não parecia estar mentindo; encarava-os sem piscar, mexer as sobrancelhas, ou sorrir, e não tinha cara de quem ia dizer "Peguei vocês, bobões!" a qualquer momento.

— A mamãe vai morrer!... – Aelfric (sim, ele mesmo) começou a chorar. – Não quero que ela morra!...

Outras expressões de desespero ouviram-se de outras bocas, enquanto Ingra corria a acalmar o irmão.

— Para, seu bobo! Mamãe sabe lidar com um facão. Enquanto ela tiver um por perto não há vândalo que possa com ela – afirmou a menina, acariciando carinhosamente o ombro do garoto.

— E nós, vamos ficar aqui parados? – perguntou Beowulf.

— O que quer dizer? – questionou Rincewald.

— Eu concordo com o gordinho – disse Geri Tanfana, entendendo. – Nós temos que ajudá-las, temos que fazer alguma coisa.

— Mas eu não quero lutar de verdade – disse Bjorn, com ar de terror.

— É pela sua mãe – falou Angus. – Quantas coisas ela já fez por você que ela com certeza não queria fazer?

— Mas o que nós vamos fazer, nós somos só crianças? – disse Brunhild, com ar desolado.

— Bem, por isso mesmo – disse o que apelidavam Gaulês. – Ninguém vai esperar que crianças ataquem.

— Tá, mas os bardos estão vigiando a gente – falou Aerick, sensatamente.

— Grande vigilância! – desdenhou Wotan. – Você pode passar cocô na cara deles que esses tontos não vão perceber.

— Ei! – Bjorn franziu o cenho, defendendo o tio.

— Estou dizendo que consigo distraí-los, é a coisa mais fácil; querem apostar? – o menino cruzou os bracinhos. – Se é esse o problema, deixem comigo, logo estaremos longe daqui.

— Não é esse o problema – objetou a jovem, mas sensata Berna.

— Precisamos de armas de verdade – disse Kyrah, olhando com repentino desagrado para sua espada de madeira que ela tanto amava. – Essas porcarias não servem para nada.

— Acho que nós não aguentaríamos carregar armas de verdade – disse Angus.

— Eu aguentaria – falou Beowulf.

— Mas não somos todos você – disse Rincewald.

— A gente resolve o problema das armas quando estivermos na aldeia – disse Asgard Gulltoppr. – O importante agora é chegar lá.

— Eu acho que a gente devia pegar um caminho diferente – opinou Ingra. – O primeiro lugar que os bardos vão procurar a gente vai ser na trilha.

— Você vai ou não vai distrair os bardos? – Tristan perguntou para Wotan, querendo apressar as coisas. Este tamborilava no próprio queixo, como um adulto.

— Sim, só estou pensando como. Bem, primeiro eu preciso que vocês me ajudem a colocar o Fialar em cima de uma árvore bem alta – o menininho arregalou olhos terrificados para o irmão. – É pelo bem da mamãe, Fihl! – Wotan disse a ele, voltando-se em seguida para os outros, novamente. – Ele tem medo de quase tudo, e vai fazer um berreiro tão grande que vai enlouquecer os adultos. Mas eu acho que precisamos de mais alguma distração, porque uma hora vão conseguir tirar ele de lá. Precisamos de alguém bem ágil pra soltar os bebês todos sem ser percebido pelo bardo que fica cuidando deles.

— Eu! Eu! – candidatou-se Una, entusiasmada com a ideia, erguendo a mãozinha bem alto. Kyrah e Berna conheciam a irmã, e apoiaram a candidatura, de modo que logo eles foram botar o plano em prática, combinando de se reunir depois perto da bétula dos capturados.

Wotan agarrou seu irmãozinho, que esperneava, e junto com Aelfric, Beowulf e Alfes, que eram os mais fortes, ergueu o menino até o alto de um carvalho bastante seguro, em cujos galhos o rapazinho pudesse se sentar com folga. Mesmo assim ele ficou histérico, começando imediatamente a chorar e gritar por socorro. Os outros garotos correram dali, enquanto Wotan ia pedir ajuda aos bardos com a cara mais deslavada desse mundo.

Como previsto, eles deixaram um dos músicos tomando conta da carroça, e foi bonito ver o trabalho de Una nessa hora. Seu corpinho minúsculo devia ser de elástico, porque ela se arrastava, se contorcia, escondia-se de pronto quando o bardo olhava para trás, e tinha força o bastante para carregar os bebês e entregá-los a Berna, Ingrid, Ingra e Brunhild, que corriam com os nenês, espalhando-os pela clareira. Às vezes precisavam da ajuda de algum menino para carregar um dos cestos para mais longe. Os bebês não choraram, e alguns deles – maiores – começavam a engatinhar para mais longe. 

Sim, os bardos teriam trabalho.

— Estão todos aqui? – questionou Alfes, uns minutos depois, ao ver a última das meninas correr para perto da bétula. As crianças confirmaram.

— Peraí, quem te elegeu chefe? – reclamou Aelfric.

— Não complica, Donnerstag! – ouviu-se um coro.

— Não vai dar certo essa história de não seguir a trilha – falou Berna, desanimada. – Vamos nos perder.

— Precisamos de um guia – disse Bjorn.

— Eu consigo chegar na aldeia por outro caminho, um que vai dar perto da minha casa – disse Tristan, com bastante segurança. – Eu e meu pai já acampamos aqui – explicou. – Se quiserem, eu posso guiar vocês – ofereceu-se.

Alguns garotos não gostavam da ideia de ter um filhote de gaulesa guiando-os para uma batalha, mas como ninguém deu uma sugestão melhor, lá se foram as crianças.

— Escuta, é muito escuro aqui, então, para a gente não se perder, vocês tem que dar a mão pra quem está na frente e atrás de vocês – a voz de Tristan foi ouvida assim que eles entraram na brenha sombria entre duas árvores. De fato, não dava para enxergar quase nada.

— Dar a mão é coisa de menininha! – alguém se queixou.

— Então se perde, tonto! – respondeu uma garota.

Berna não queria nem pensar em ficar perdida naquele lugar, e logo estendeu as mãos para seus vizinhos: Una que vinha logo atrás e – ela tremeu ao reconhecer – Wotan Von Skidbladnir na frente. Estava feliz que ninguém pudesse ver seu rosto corado naquela negritude, porque ela achava Wotan muito bonitinho.

Seguiu-se uma longa caminhada, que a impaciência infantil tornava ainda mais longa. Eles não sabiam quanto tempo tinha passado, porque não podiam ver o sol, mas tinham certeza de que os bardos não iam encontrá-los ali. 

Tinham também um pouco de medo de que ninguém nunca mais os encontrasse ali.

— O-ou! – veio lá da frente, e Kyrah não percebeu que devia parar a essa exclamação, dando com o nariz na nuca de Una e recebendo igualmente uma narigada nas suas costas.

— O que aconteceu? – perguntou Angus, que vinha fechando a fila, numa voz fanhosa que denunciava que ele também havia dado um golpe de nariz.

— É... uma pedra – respondeu Tristan, consternado. – Eu tinha esquecido que meu pai me carregou por cima dela. Não dá pra passar.

— Ah, isso é que dá confiar em um gaulês! – bufou Aelfric. – Andamos isso tudo à toa! Que droga.

— E se a gente tentasse rolar a pedra pro lado? – disse Aerick Towarish, destacando-se da fila.

— Não dá, ela tá encaixada entre duas árvores – disse Bjorn, que era o terceiro da fila e conseguia ver a rocha. – Só tem espaço pra uma pessoa aqui no cantinho, e ninguém ia aguentar empurrar essa pedra sozinho.

— Só se a gente fosse empurrando ela na nossa frente o resto do caminho – Brunhild falou; ela estava atrás de Bjorn. – Ainda falta muito, Tristan?

— Não muito, mas se formos empurrar a pedra, vai parecer muito mais.

Silêncio. Alguém se destacou da fila lá atrás e veio andando com passos pesados, comprimindo todos os outros nas árvores à esquerda quando passava por eles. Não podiam ver quem era, apenas ouvir os ruídos que fazia ofegando.

— Dá licença? – falou Beowulf a Tristan e outros meninos que tentavam mover o obstáculo. Com o caminho livre, ele se abaixou e entrou na única fenda que havia entre a árvore da direita e a pedra. Rugindo e suando com o esforço, conseguiu afastar a rocha o bastante para que mais dois meninos entrassem com ele na fenda, e, em poucos minutos, o caminho estava desimpedido.

— Nossa! – Kyrah exclamou, impressionada, no meio das aclamações que faziam a Beowulf.

Um instante depois, estavam de novo a caminho, com ânimo renovado. Ao ver a luz aparecer ao longe, dispararam a correr. Foi a vez de Tristan ser louvado e cumprimentado por dezenas de bracinhos. Una, Ingra e Brunhild chegaram mesmo a abraçá-lo, fazendo-o avermelhar.

— Eeei! – Kyrah bateu palmas, para acabar com a festa. – Vocês estão esquecendo porque estamos aqui! – bronqueou.

— Ela tem razão, ainda não fizemos o principal – concordou Bjorn.

— Tá, mas... Onde é que estão os vândalos? – perguntou Rincewald, olhando em volta. A casa de Tristan estava na frente deles; mais adiante a de Aelfric e Ingra; ambas ficavam no fim da aldeia e tudo por ali parecia... extremamente vazio.

— Não tem inimigo nenhum aqui! – exclamou Asgard.

— Menina, se você mentiu para a gente eu te arrebento, não tô nem aí que você é filha do chefe! – ameaçou Aelfric, pegando Berna pela frente da túnica.

— Eu não menti! – protestou a garota, com medo. Algumas crianças correram para soltá-la de Aelfric.

— Então cadê...?

O questionador, quem quer que fosse, parou quieto pelo mesmo motivo que todo mundo: tinham ouvido um ruído baixo de gritos. Se o ruído estava baixo ali, era somente porque vinha de um lugar distante: o outro lado da aldeia.

— Ainda precisamos de armas... – lembrou Rincewald.

— Venham comigo – disse Kyrah, acenando para as outras crianças e tomando o rumo do centro da aldeia.

Seguir uma menina de quatro anos seria bizarro para crianças que tinham atravessado uma floresta seguindo um menino de seis?

— Pra onde está nos levando, Kyrah? – perguntou Berna, alcançando a irmã.

— Depósito de armas – disse a menina, sucinta.

— E você sabe onde fica? – duvidou Berna. – Papai tem medo até que você se fira com a colher da sopa, por que ele te diria?

— Ele não disse. Eu segui ele – falou Kyrah, dando de ombros.

Sem dar mais atenção a perguntas, a gêmea de Una concentrou-se em achar a peculiaridade que distinguia o depósito das outras cabanas: ele não tinha janelas. Nem mesmo uma bem pequenininha. Para que, no caso de invasão, os inimigos não pudessem ver o que havia lá dentro. Assim Heric, o papai, tinha explicado ao homem que tapara todas as fendas da casinha.

— Aqui – ela disse, apontando um barraco bem próximo da praça principal da aldeia. Os gritos se faziam ouvir mais alto agora. Alguns dava para entender: eram pragas jogadas nos vândalos.

— Tá trancado – constatou Brunhild.

— Beowulf? – chamou Tristan, procurando o coleguinha.

O gorducho apresentou-se faceiro. Com ar compenetrado, pediu às crianças que se afastassem, tomou distância, e correu contra a porta. Deu certo; a porta de madeira caiu, e as crianças invadiram o depósito.

Difícil, como Angus previra, foi encontrar armas que aquelas crianças conseguissem carregar. Os maiores até que não tinham tantos problemas, mas havia pequenos ali de quatro anos, que não conseguiam carregar nem mesmo o menorzinho dos martelos.

— Vou levar esse arco – decidiu Kyrah, pegando um instrumento bem pequeno. Não aguentava nem o peso da aljava, então tirou algumas flechas para levar na mão. Alfes olhou para ela com desdém.

— Ah, tá. Até parece que você sabe usar essa coisa – riu.

Como única resposta, recebeu uma flecha que passou ao lado do pescoço dele e cravou-o na parede pela capa.

— Vou fazer cinco anos – ela disse, como se fosse explicação.

— Papai não gosta que a gente mexa com armas – complementou Berna, pegando um pequeno arco ela também e entregando outro a Una – mas disse que precisamos saber nos defender se alguém quiser nos raptar, e começa a nos ensinar arco e flecha assim que completamos quatro anos e meio.

Mas não eram todos os pequenos que sabiam disparar arcos. Resolveu-se esse impasse dividindo as crianças em grupos de quatro, colocando uma desarmada em cada grupo, que seria responsável por levar o escudo da tropa. Isso porque eles tinham descoberto que um escudo bastava para quatro crianças.

Com arcos, martelos, fundas e escudos, a infantaria partiu.

Eles andaram cautelosamente – mas o mais rápido que o peso das armas permitia – em direção aos gritos de batalha. Os brados vinham da ala noroeste da aldeia, e conforme se aproximavam, os miúdos podiam ver rastros de batalha ao longe: fumaça, principalmente. Provavelmente os vândalos tinham ateado fogo em alguma casa da ponta da aldeia.

Não só as vozes das mamães, também as dos papais podiam ser ouvidas – o que significava que a batalha tinha chegado completamente até ali. O medo passou seriamente pelas espinhas daquelas crianças. Algumas tremiam; Brunhild e Rincewald estavam começando a chorar.

Estavam muito perto agora. Mais uma linha de casas e atingiriam o pleno campo de batalha. Eles pararam, escondidos atrás de uma cabana dentro da qual havia atividade.

— Certo – Tristan respirou fundo. – É agora.

— Mas não adianta ir à toa – objetou Berna. – Precisamos de uma estratégia, se não, só vamos atrapalhar. Esses homens são e-nor-mes.

Eles tinham entrevisto um vândalo pouco antes.

— Temos que achar o ponto fraco deles! – disse Wotan, dando um soco na própria mão.

— Eu sei, eu sei! – gritou Una, erguendo a mão e pulando de um pé para o outro. – Porque um dia eu estava brincando de dar cambalhota, e o papai estava sentado ali perto, e eu rolei e sem querer meu pé chutou bem no meio das pernas dele; aí o papai quase desmaiou, ele disse: "Nunca mais faça isso, a menos que você queira ver o seu papai morto. Pegou no meu ponto fraco" – a menina falou, imitando a voz e a postura grave do chefe. – Quem sabe o deles é o mesmo?

— É! Perfeito, é bem na nossa altura! – empolgou-se Gorki, levantando seu martelo e fazendo menção de golpear com ele.

— Então vamos – disse Alfes Beidablick, dando as coordenadas. – A tropa da Kyrah, a do Aelfric e a do Tristan saem pela esquerda da casa. A minha e a da Berna vão pela direita. Rincewald, onde está a concentração dos homens?

O menino imitava a postura que vira algumas vezes em seu pai quando este contava as batalhas. E as expressões também: "concentração dos homens" era um exemplo.

Rincewald estava postado na esquina da casa, espiando.

— A maioria deles está... ao norte – calculou. Berna ergueu a mão.

— Pra que lado é o norte? – perguntou.

— Pra cima – explicou Tristan, cuja tropa estava mais adiante.

— Bem, não importa – disse Alfes. – Nós vamos vê-los. O plano é: correr, gritar e bater. Entendido?

— Sim, senhor! – gritaram todas as crianças, entusiasmadas.

— Quando eu falar já. Prontos? Já!

Aquilo que os vândalos estavam ouvindo não podia ser classificado exatamente como um brado de guerra, porque era agudo demais. Agudo e alto e terrivelmente repentino. Alguns deles foram tirados do estado de berserkers por aquele grito das profundezas. E por mais que olhassem em volta, não conseguiam divisar esse novo inimigo, ocupados que estavam na luta corpo a corpo com os homens e em desviar das mulheres que atiravam muitas coisas neles. Até que um deles sentiu o primeiro golpe, e baixou a cabeça. 

Crianças? Aquilo sim era um golpe baixo. Urrando de dor, ele brandiu a espada em direção aos pequeninos, que fugiram rapidamente; na retaguarda, um menino minúsculo enrolado na capa conteve o golpe com o escudo, antes de acompanhar os colegas.

Mais pancadas e mais gemidos; mais gritos e mais golpes; mais perplexidade a cada segundo. Vencidos pela confusão, atacados por todos os lados, os vândalos tinham sido escorraçados em questão de quinze minutos. 

Enquanto os homens cansados da aldeia (e algumas mulheres também) saiam em perseguição dos últimos, as mamães começaram a olhar para baixo e deparar com aquelas coisinhas que ficavam pra trás, no meio da poeira levantada pelos fugitivos. Expostas à artilharia delas! Algumas desmaiaram; outras queriam estrangular os bardos.

— Berna, Una, Kyrah... O que vocês estão fazendo aqui? – disse Ondina, apoiando-se no umbral de uma casa, pois ela pertencia ao grupo das que desmaiaram (ou quase).

— Viemos ajudar, mamãe! – disse Kyrah, radiante, indo saltitante para perto da mãe dela e abraçando-a forte. – Viu como eu luto bem?

— S-sim... – a mulher suspirou, ainda com o coração a ponto de saltar pela boca. Una se aproximou.

— Eu também, não é mamãe? Não é?

— Aham...

— Será que o papai também viu a gente? – disse Berna, empolgada.

— Será que ele deixa a gente ir com ele na próxima batalha? – Kyrah já foi mais longe, arregalando os olhos de excitação só em pensar nisso.

— Espero que ele não tenha visto... – disse Ondina, baixinho, abraçando as filhas como se temesse perdê-las.

— Ondina, mas o que é isso? – reclamou Doriana Von Skidbladnir, irritada, trazendo Wotan pela orelha. – Você não tinha mandado os bardos cuidarem das crianças? Num lugar bem longe daqui?

Wotan fazia careta por causa da dor na orelha, mas não deixou de bater a mão na de Una, num cumprimento pelo ótimo trabalho em equipe que tinham feito.

— Eu... eu... – Ondina balbuciou. – Eu mandei. Não sei como...

— Mas o Fialar ainda está lá, mamãe. Então nós só te desobedecemos pela metade – justificou o menino, encolhendo os ombros, e ainda tentando livrar a pobre cartilagem do aperto. A mãe olhou para ele, estreitando os olhos claros num misto de raiva e orgulho.

— Espere só até o seu pai saber... Avise o Oleg que ele está com problemas – ela lançou, para a mulher do chefe, afastando-se com o loirinho.

Mais adiante a mãe de Aelfric dava uns cascudos do encolhido filho, bronqueando-o por ter exposto a irmã daquele jeito. Mas não por ter vindo ele mesmo lutar. E assim, os humores de todas as mães oscilavam entre susto, irritação e muito gosto por seus filhotes serem tão corajosos.

Em poucos minutos, voltavam os primeiros pais. Nem todos eles haviam visto seus filhos pequenos no meio da batalha, mas dos que viram, alguns brigavam com as esposas por permitir aquela loucura (principalmente os pais das meninas); outros ainda não tinham recuperado a fala –nem o fôlego, pra falar a verdade– e simplesmente abanavam as cabeças.

O pai de Angus abraçou o filho com ar assustado, procurando verificar em seguida se não faltava nem um pedaço. O de Rincewald olhava para ele como se perguntando: aquele era mesmo o meu filho? Quanto ao de Bjorn, girava-o no ar, orgulhosíssimo, e o menino tinha uma careta do tipo "Ai, velho, eu não queria te dar falsas esperanças...".

Mas as meninas pararam de prestar atenção nas reações das famílias de seus coleguinhas assim que ouviram passos pesados conhecidos se aproximarem. Como se estivessem combinadas, as três fecharam os olhos com força. Não queriam nem ver aquilo...

— Ai ai ai! – veio a voz grossa e furiosa de Heric. – O que eu faço com essas meninas, hein? – rosnou papai. Berna arriscou abrir um olho e levantá-lo para a figura alta, corpulenta e de bastos cabelos negros que se erguia acima. Ela podia estar imaginando, mas parece que havia um vestígio de sorriso sob a barba. – Estou pensando em colocar três ganchos na parede e pendurar vocês lá pelos cabelos, o que acham da ideia? – tinha os braços cruzados e ar sério.

As garotas olharam-no, aterrorizadas. Ondina estreitou os olhos para o marido, o que queria dizer "Não as assuste tanto". Ele se abaixou.

— Obedecer o pai que é bom, nada, hum? – fez, olhando de uma para a outra.

— Mas você não tinha mandado a gente ficar na aldeia, especificamente – arriscou Kyrah. Heric estendeu a mão e acariciou os cabelos dela.

— Pensei que isso tivesse ficado subentendido quando sua mãe mandou – ele disse, desfazendo o nó da cara. – Argh, vocês três... Contou para elas da batalha, Dine?

— Claro que não! – disse mamãe, exasperada.

— Eu ouvi o mensageiro – confessou Berna, timidamente.

— Ah, então a senhora anda escutando atrás da porta? Que bonito! O que mais faz escondida? Aprende latim? – ele bronqueou, em tom de brincadeira, puxando a menina (que negava efusivamente com ar confuso) para o seu colo. Pegou Kyrah com o outro braço e se levantou, deixando Una, que era a de menor tamanho, para Ondina carregar.

— Não façam mais isso, aparecer no meio de uma batalha – advertiu Heric, muito sério agora. – Vocês desconcentraram os homens e muito mais as mulheres.

— A gente só queria ajudar... – lamentou Una, com carinha de choro.

— Eu sei. Por isso estão desculpadas. Mas não quero ver vocês no meio de uma luta de novo, ou vou mesmo fazer aquilo com os ganchos.

— Tá, papai – as três prometeram, com voz murcha.

— Papai tem muito orgulho de vocês – ele disse, então, beijando o rosto de uma por uma. – Foram muito valentes. Depois quero saber a história toda de como vocês vieram parar aqui. Tenho certeza que lideraram as outras crianças, vocês dariam ótimas chefas; eu confiaria a aldeia a vocês sem piscar, se vocês fossem mais velhas – ele falou, deixando-as radiantes.

— Eu não entendo como vocês escaparam dos bardos... – disse Ondina, que tinha passado boa parte do tempo calada, ainda em choque. E por falar neles, podiam ser vistos chegando agora, pálidos, puxando a carroça e um cantarolante Fialar.

— Ah, isso foi mole! – disse Kyrah, dando de ombros.

— E onde vocês conseguiram armas? – questionou Heric, começando a caminhar com a família para casa.

— A Kyrah levou a gente no depósito – contou Una.

— Escuta papai, sabia que meu dente caiu? – disse Berna, lembrando disso de repente. – Esse aqui, ó!

— É? Não se preocupa não filha, vai crescer outro. Se não crescer, o papai consegue um pra você em algum saque.

— Heric!

— É brincadeira; calma, Ondina, só brincadeira...

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