01 - Paixão pelas artes
— Maybelle Walsh Fonseca! — Minha mãe me berra mais uma vez. Que saco! — Você não vai sair desta casa enquanto não ouvir o que eu tenho para dizer, mocinha!
— Mãe, pelo amor de Deus! Será que a senhora quer tanto assim que eu vá embora? Será que eu sou uma filha tão ruim assim? — Dramatizo apenas para tentar que ela me deixe em paz.
— Você sabe que não, minha filha. Eu amo você mais que tudo nesse mundo.
— Então por que quer me levar para outro continente?
— Porque sua tia-avó e minha madrinha está te oferecendo uma oportunidade de ouro! — Reviro mais uma vez os olhos, assim como tenho feito todas as vezes desde que completei 15 anos, há 2 meses.
Acontece que minha tia-avó, Elizabeth Walsh, mora em Londres, onde minha mãe nasceu e, desde que eu ingressei no Ensino Médio, ela insiste que minha mãe e eu nos mudemos para lá para que eu possa estudar nas melhores escolas e faculdades que a Europa pode me oferecer. E o seu dinheiro também, é claro.
Minha mãe vem de uma família muito rica. Muito mesmo. Ela morava em Londres até um pouco antes de eu nascer, mas seu coração foi arrebatado por um humilde pintor brasileiro chamado Armando Fonseca, meu pai. Ele faleceu há 3 anos, sofreu um ataque cardíaco fulminante, foi a pior época da minha vida, mas Deus me deu forças para me reerguer um pouco mais cada dia. Eu herdei o amor pelas artes dele. Assim como o gênio forte e algumas peculiaridades. Só a minha aparência que é parecida com a da minha mãe. Quer dizer, tenho a mesma cor de cabelo e olhos, mas estou longe de ser a lady que minha mãe é. Muito longe.
— Mãe, a gente não tinha combinado de que eu pensaria nisso depois? De que terminaria o Ensino Médio aqui e a senhora acertaria todas as pendências da galeria?
Meu pai tinha uma galeria que até que é bem popular e nossa fonte de renda. Minha mãe já o ajudava antes, mas assumiu tudo depois de sua morte. Tivemos uma maré de problemas financeiros e ela teve que pegar um empréstimo bancário, o que deixou a galeria em maus lençóis, já que a mesma era a garantia dessa tramoia. Minha mãe já conseguia arcar com boa parte de tudo, mas ainda resta um caminho para se trilhar e eu não quero ir para outro continente sabendo que ela terá que lidar com tudo sozinha até conseguir ir se mudar comigo. Fora que ainda tem o Isaque, eu não quero ficar longe dele de jeito nenhum.
Isaque é o meu melhor amigo. Quer dizer, ele está na minha vida desde sempre. Não consigo me lembrar de nenhum episódio importante da minha história de vida em que ele não seja um personagem. Principal ainda. Tia Suelen, sua mãe, foi a primeira amiga que minha mãe fez ao chegar no Brasil, ela foi e ainda é muito importante para a inglesa perdida em solo brasileiro que é a dona Susan. Tia Elizabeth não aceitou muito bem o namoro dela com meu pai, então ele a propôs casamento que a trouxe para cá. Minha mãe contou que minha tia era a única pessoa que ela tinha de família, seus pais morreram cedo e ela ficou com a irmã de sua mãe e sua madrinha, depois que ela resolveu vir para o Brasil, tia Beth — ela odeia ser chamada assim — quis cortar relações e disse que a tiraria do seu testamento também. Como eu disse, minha mãe vem de uma família muito rica e, o que minha tia tem de dinheiro, tem de arrogância. E eu já disse que ela é muito rica? Pois é.
Enfim, minha mãe veio para o Brasil, casou-se 3 meses depois, se bem me lembro, eles namoraram cerca de 1 ano na Inglaterra, meu pai tinha recebido uma bolsa de estudos para a UAL, University of the Arts London, e, em um dos seus passeios, os dois se esbarraram e tiveram aquele lance de amor à primeira vista. Minha tia ficou doida quando minha mãe recuou um cara milionário para se aventurar com um pintor pelo Brasil, mas minha mãe foi firme em sua decisão. Ela disse que ficou 2 anos sem contato com a tia Beth, mas então ela engravidou de mim e minha tia exigiu que ela fosse para Londres, pelo menos para ter o gosto de ver o nascimento da sua sobrinha-neta. Bom, ela foi e eu nasci lá também, mas fiquei só até um pouco depois da minha festa de 1 ano e meus pais voltaram para cá. Fui algumas vezes para visitar minha tia, mas não sou muito fã da mansão que ela tem ou até mesmo dela, porque todas as vezes que ela me vê cisma em querer domar meu cabelo ruivo e armado e me tornar a princesa que ela diz que eu sou. Sendo que de princesa eu tenho talvez a semelhança com a Merida, uma pena que não sei usar um arco e flecha como ela...
Minha tia, então, estabeleceu que precisamos ir lá pelo menos uma vez por ano. Eu sei que sou herdeira dela e tenho uma conta bancária com muito dinheiro que ela deposita mensalmente para os meus estudos, mas meus pais nunca mexeram lá. Meu pai se estabeleceu bem na galeria e nunca precisamos pedir dinheiro nenhum para a minha tia. Minha mãe só teve esse problema financeiro depois da morte do meu pai porque o ex-sócio dele passou a perna e sumiu pelo mundo, mas nem nesse momento minha mãe recorreu à tia Beth, só que eu sei que ela se preocupa muito com a minha educação. Desde que minha tia pediu para que ela me deixasse estudar lá, ela vive dizendo que ela tem muitos cursos que eu posso fazer na área de artes e também posso estudar em faculdades muito boas, é só eu escolher qual eu quiser. Tia Beth tem 70 anos e parece de ferro. Mamãe acha que é uma boa passarmos um tempo com ela e a ideia é eu que eu vá primeiro e ela vá assim que resolver sobre as dívidas da galeria. Ela até já pensou em tudo e disse que tia Suelen se encarregaria de cuidar de tudo enquanto não voltássemos. É uma boa ideia, mas e o Isaque e eu em tudo isso?
Sempre foi uma tortura quando eu ia para a Inglaterra e ele ficava. Sempre fomos inseparáveis e querem nos separar? Ninguém pensa em nós? Eu já disse para minha mãe esperar, afinal, Isaque pode fazer faculdade em Londres comigo. Tia Suelen ia adorar, com certeza. E eu sei que o seu Leandro, seu pai, adoraria jogar na cara de quem quer que fosse que seu filho estuda na Europa. Ele sempre foi o oposto da tia Suelen em simpatia e parece que idolatra o dinheiro. A diferença entre minha tia e ele é que ela realmente tem uma fortuna, ele apenas sonha em ter uma.
— Filha, por favor, seja razoável. Você pode ter um currículo acadêmico excelente e ainda pode começar agora em Setembro o Ensino Médio de lá. Já vai sair pronta para a faculdade.
— Mas, mãe. Eu não quero deixar o Isaque. Custa esperar pelo menos 2 anos? — Faço um beicinho e junto às mãos em uma prece para que ela me deixa em paz sobre esse assunto.
— Com tanta tecnologia que tem hoje em dia, duvido que fiquem realmente separados. E ele sempre poderá ir passar as férias com você.
— A senhora sabe que não é a mesma coisa.
— Bom, você que sabe. Se você quer atrasar sua vida e desperdiçar seu cérebro brilhante com o estudo medíocre que o Ensino Médio brasileiro oferece só para não se separar fisicamente do seu amigo, que seja! — Ela ergue as mãos para o alto e volta para a cozinha.
Sei que ganhei mais essa batalha, mas conhecendo a minha mãe como eu conheço, duvido muito que essa guerra tenha acabado.
Pego a minha mochila no sofá e corro para a escola. Afinal, comparado ao estudo inglês, o brasileiro é realmente medíocre, mas é o que temos para hoje, não?
•••
— Mayão! Levou um choque antes de vir para a escola? — Diogo, o garoto mais implicante que existe na face da Terra, diz assim que eu chego no pátio da escola.
— Ah, não. Eu devo ter levado um susto quando vi um Raio-X da sua cabeça oca. — Respondo e sorrio para ele. Risadas dominam o grupo de pessoas que estão entre nós.
Aliás, Mayão é um apelido tosco que me deram. Odeio isso, mas já me cansei de tentar impedir que falem o que quiser. Como eu disse, eu sou ruiva e o meu cabelo é bem armado. E longo. Ou seja, ouço muitas vezes que ele se parece com uma juba de leão. Eu não me importo, na verdade. Tenho preguiça de pentear o cabelo e nunca mexi nele, é completamente natural. E não tenho intenção nenhuma de mudar o que não me incomoda para agradar ninguém. Sou feliz demais com o meu cabelo assim, obrigada.
— May. — Isaque me chama. Ele é do segundo ano e eu sou do primeiro, mas a gente sempre se encontra entre as aulas. — Está tudo bem? Você demorou a chegar.
— Está. Foi só a minha mãe insistindo de novo para que eu vá para Londres.
— De novo isso? Achei que ela tinha concordado em esperar até a faculdade. — Zac bufa. Ela adora esse assunto tanto quanto eu.
— Eu também. Mas ela acha que se eu fizer o Ensino Médio lá, terei muito mais sucesso no quesito acadêmico.
— Tia Sue está caindo no meu conceito. — Zac cruza só braços e ergue uma sobrancelha como faz sempre que está irritado. Eu começo a rir.
— Ela não faz por mal. Só quer o melhor para mim. E nós dois sabemos que os curso da UAL são simplesmente incríveis.
— Eu sei. Mas a gente tem muito tempo pela frente. Nós temos planos, por que ninguém os respeita?
— Porque somos menores de idade e legalmente impossibilitados de opinar. — Ergo os ombros com claro desdém. Zac revira os olhos.
A verdade é que a gente tem o plano de que eu vou para lá assim que terminar o Ensino Médio e ele, que vai esperar um ano para começar a faculdade, para começarmos juntos.
Zac também é apaixonado pelo mundo das artes e, odeio admitir, mas ele até desenha melhor do que eu. Eu sempre fui melhor na pintura e na criatividade, mas as suas ilustrações são simplesmente espetaculares. O problema é que ele não mostra pra ninguém o seu talento. Quer dizer, meu pai sempre via seus desenhos e eu também vejo. Sempre. Minha mãe e tia Suelen não veem tanto, mas sabem do seu amor, porém, seu Leandro é um convicto de que a arte não dá dinheiro para ninguém e prepara o Isaque desde sempre para seguir os negócios da família. Negócios esses que eu nunca entendi muito bem como funciona, mas sei que tem alguma coisa a ver com aquisição e venda de empresas. Zac não tem pulso firme para enfrentar seu pai e aceita tudo de boa, eu, por outro lado, sempre digo que ele precisa seguir os seus sonhos e não ser um espelho mal feito do seu pai. Seu Leandro e meu pai não eram amigos, meu pai não tinha nada contra ele, mas seu Leandro dizia que meu pai deveria trabalhar de verdade e não ficar pintando como uma criança para sustentar a família. A verdade é que ele não estava interessado em conhecer meu pai ou qualquer um de nós, ele só gostava do fato da tia Suelen ter amizade com uma gringa que tem uma tia rica na Europa. Duvido que ele saiba a proporção da fortuna da minha tia, mas acho que só o fato de ter a Europa no meio já conta. Zac e eu decidimos que ele iria para a Inglaterra dizendo que estudaria administração empresarial como seu pai quer, mas na verdade estudaria artes comigo. A gente não gosta de mentir, mas seria só até ele se mudar e ingressar na faculdade. Depois a gente contaria tudo. Simples, não?
— May, eu preciso ir para a aula, tenho uma pendência no dever de História. Tudo certo para mais tarde?
— Com certeza. — Zac me oferece seu sorriso travesso e sorrio de volta como uma bela cúmplice. Ele vai para sua sala com o Diogo, Guilherme, Joaquim e Nathalia enquanto eu fico com a Leticia, Brenda, Felipe e Evandro para irmos para a nossa sala.
O "mais tarde" em questão significa nosso encontro secreto no antigo estúdio do meu pai para desenharmos. É supersecreto mesmo porque se o seu Leandro descobrir, Isaque vai ficar de castigo até ele se casar. Bom, isso se ele se casar um dia...
Isaque é aquele típico garoto popular. Apesar de não mostrar seu lado artístico pra ninguém, ele é bastante visado na escola e muito cobiçado pelas garotas. Eu cresci com ele e o pensamento de termos um relacionamento romântico nunca se passou pela minha cabeça. Algumas pessoas até já perguntaram sobre isso já que a gente sempre está grudado por aí, mas nosso relacionamento sempre foi fraternal, eu acho.
Na real, eu nunca me interessei por garoto nenhum. Eu tenho 15 anos e não acho que preciso de um namorado só porque a maioria das garotas da minha idade têm um. Eu não preciso me encaixar em nenhuma estatística para ser feliz. Eu já ouvi muitos boatos sobre mim, desde pessoas dizendo que conseguiram "me pegar" até outras pessoas que afirmam que eu sou homossexual só porque não estou interessada em participar dessa competição idiota que a sociedade deixa implícita sobre quem vai arrumar um namorado primeiro ou quem vai perder a virgindade mais cedo. Eu tenho princípios. Princípios que são baseados na Bíblia Sagrada e nos ensinamentos dos meus pais. Princípios que eu mesma adquiri pelo que já passei na vida. Eu tenho Deus e não preciso buscar desesperadamente qualquer pingo de atenção ou amor porque eu sei que tenho um oceano inteiro no meu Pai. Isaque, diferentemente de mim, acredita que precisa "experimentar" todas as opções que tem até achar a garota certa. Eu não acredito nisso de pessoa certa. Acredito sim que podemos nos tornar o certo de alguém, assim como alguém se torna o certo para nós. Tudo é uma questão de escolha e espera. Uma questão de confiar em Deus para cuidar do futuro enquanto vivemos o presente.
— Você está quieta demais hoje, Belle. — Letícia fala enquanto esperamos o professor na sala de aula. — Aconteceu alguma coisa?
Letty foi a primeira amiga que eu fiz na escola, estamos juntas desde o Fundamental 1, mas nem mesmo ela sabe sobre minhas origens inglesas. Ninguém sabe, só minha família e a família do Isaque. Até mesmo os professores não sabem, quando perguntam sobre o sobrenome, eu apenas digo que é por parte de mãe e não explico nada e sempre peço para não usarem ele, eu sempre abrevio. Não é que eu não confie na Letty ou algo assim, mas é que eu odeio o fato de me olharem diferente só porque sou parente de Elizabeth Walsh, a mundialmente famosa e podre de rica dona de uma rede de joalherias e shoppings inteiros e que nunca se casou. Eu sou apenas eu, filha de Susan e Armando Fonseca. Simples. O que todos sabem é que eu sonho em estudar na Inglaterra. Só isso.
— Não, só estou pensativa. — Respondo por fim.
— Tem certeza de que não tem nada te incomodando? Sei lá, talvez o fato de que a Marcela declarou publicamente que desse ano não passa que o Isaque vai ser namorado dela...
Letícia me olha bem no fundo dos meus olhos, seus olhos esverdeados estão meio semicerrados e eu sei que está esperando uma reação de desgosto ou indignação da minha parte, mas tudo que eu faço é rir.
— Boa sorte para ela.
— Ah, qual é! Você precisa admitir que sente algo por ele. Não é possível!
Minha amiga acredita veementemente que Isaque e eu estamos apaixonados um pelo outro e não admitimos. Ela não poderia estar mais enganada.
— Letícia Cuoco, coloque na sua cabeça que Isaque e eu somos almas gêmeas, mas não no sentido romântico. Está mais para algo fraternal.
— Pois eu não acredito! — Ela cruza os braços. — Eu sei que você odeia quando a Marcela fica se engraçando para ele.
— Correção. Odeio quando a Marcela se engraça para qualquer um. Ela não tem um pingo de respeito consigo mesma e tenho certeza de que não sabe o real significado de amor próprio.
— O maior prazer da vida dela é te infernizar, amiga. Não se compadeça com sua burrice, ela não merece.
— Ela tenta me infernizar. Você sabe que tentar e conseguir são coisas diferentes. — Sorrio para ela.
— É, eu sei. Você tem muita paciência com todos esses estúpidos da escola. Sério, você tem o meu respeito e admiração. — Ela põe a mão sobre o peito de um modo teatral, eu me divirto com ela.
— Eu só não me importo com o que dizem, as pessoas que importam de verdade são poucas, você sabe. E mais, é só o colégio, quando tudo isso acabar eu sei que vou rir do passado.
— Isso aí, ria mesmo. Linda e bela em Londres. Um sonho de consumo. — Nós duas rimos e logo depois o professor chega, então, não demora muito para que a aula comece.
"Todas as artes contribuem para a maior de todas as artes, a arte de viver. "
Bertold Brecht
E aí meus amores, turu pom?
Saiu o primeiro capítulo. Eeeee. Ainda não estou com muito tempo pra postar mais de um por semana, quem me acompanha aqui sabe que passei por uns maus bocados com a minha família por causa do Coronavírus, mas Deus está no controle e tudo está aliviando. Portanto, segue a programação de capítulo toda segunda, até então.
No mais, espero que gostem da história, comentem, votem, desfrutem.
Que Deus os abençoe ♥️
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