I
<<<
DANTE folheava o jornal quando recebeu a ligação:
– Meu amigo, preciso de você!
Não precisou perguntar do que se tratava. A resposta estava estampada na quinta página do jornal às suas mãos.
"Morre Dona Neuza, aos 81 anos.
Causa da morte não foi divulgada.
Drama familiar: a cozinheira best-seller morre apenas quinze dias após o neto, de nove anos."
– Em minutos chego aí, Éder – respondeu, em tom afável. – Enquanto isso, procure não sair de casa.
Ouviu-se um soluço do outro lado da linha e a ligação foi encerrada.
Dante fechou os olhos e, inspirando profundamente, permitiu-se alguns segundos de conturbada emoção; por fim, tomado de vigor pragmático, saltou da poltrona e apanhou a chave do carro.
Lá fora, a cidade estava em festa, indiferente às manchetes dos jornais, pelo menos às da terceira página em diante. Aquele ruidoso mar verde e amarelo, ondulando frenético pelas ruas, bradando cânticos tão fortes quanto o bater de ondas tempestuosas contra as rochas, reverberava a única notícia realmente importante, estampada naquele momento nas capas de todos os jornais do país:
"Brasil é Hexacampeão!"
>>>
QUEM atendeu a porta foi o próprio Éder.
Era um homem que ainda preservava a face da juventude. Tinha pouco mais de trinta anos, mas aparentava ter vinte. Seus olhos, outrora de um castanho vívido, estavam completamente opacos, como se as lágrimas, agora secas, tivessem levado consigo o brilho que ali habitara.
– Eu sinto muito, meu amigo – disse Dante, abraçando-o. Recebeu de volta um abraço trêmulo, mas efusivo.
– Obrigado, Dante. Mas, meu irmão, não te chamei para chorar em seus ombros – disse, engolindo o choro. – Preciso, na verdade, do seu socorro. Antes que eles venham.
Dante franziu o cenho.
– Eles quem?
Éder deu uma espiada nos dois lados da rua deserta e então, trancando o portão, conduziu Dante pelo interior da casa.
Era uma bela e imponente mansão, adquirida ao longo de dez anos das bem-sucedidas carreiras jurídicas de seus donos. Éder era um magistrado, notório pela sensibilidade e distinção, e sua bela esposa, Lúcia, era sócia de um grande escritório de advocacia do estado.
– Lúcia está? – perguntou Dante, vendo que sua pergunta anterior ser ignorada.
Mas Éder apenas gemeu. Cruzaram a sala de estar, passaram por alguns corredores e desembocaram enfim na biblioteca, muito bem conhecida por Dante, pois ali ele, o amigo e Lúcia já tinham se sentado várias vezes, em longas prosas literárias ao sabor de vinhos suaves.
Éder abriu as cortinas de uma janela, deixando a pálida luz da manhã invadir o recinto, e então jogou-se numa cadeira, apontando a outra para o convidado.
– Ah, Dante! – exclamou, tapando as faces com a mão. – Quantas tragédias! Quanto mais um homem pode suportar? Primeiro meu filho, agora minha mãe... E o pior... O pior... – a voz dele se apagou, completamente embargada.
Dante adiantou-se e pôs a mão no ombro do amigo:
– Diga, Éder.
– Logo eles estarão aqui, e não suportarei ver a cena...
– Eles quem, bom amigo?
Éder ergueu os olhos desesperado.
– Eles virão buscá-la. O mandado de prisão deve estar sendo expedido nesse instante.
O coração de Dante se apertou, compreendendo tudo.
– Lúcia?
– S-sim. Meu amigo – e agora Éder pressionou, fortemente, os braços de Dante. – Preciso que você prove que ela não teve nada a ver com isso. Lúcia não matou minha mãe! Não pode ter sido ela!
<<<
DANTE se levantou e fechou a janela, tentando barrar o barulho quase imoral das ruas festivas, que invadia a biblioteca e tornava, por vezes, impossível ouvir as palavras atropeladas e desconexas do desolado Éder.
– O que te faz crer que virão atrás de Lúcia? – perguntou, ligando um dos abajures. – O que faz com que ela pareça culpada?
– Bom... É meio difícil explicar...
– Tente, meu amigo. Ou não conseguirei te ajudar.
– Você precisa! Dante, você é uma das criaturas mais inteligentes que já pisou a face dessa Terra e, se tem alguém que pode ver um sentido nessa história e inocentar minha Lúcia, é você.
– Mas pra ver sentido, preciso conhecer a história. Vamos, Éder. Rápido. Antes que eles venham.
Aquilo deu um novo fôlego ao pobre juiz, e então, um pouco mais conexo, contou:
– Tudo começou duas semanas atrás, com... com...
– A morte de Álisson.
– Sim... Foi Lúcia quem o encontrou, aqui mesmo, nessa biblioteca, caído ao pé de uma das estantes. A escada ainda ao lado. Estava tentando pegar um dos livros no topo – apontou para uma estante de quase quatro metros, recostada na parede. – Desequilibrou-se e, ao cair, bateu a cabeça numa quina. Não chegou a sofrer.
Éder voltou a enterrar o rosto entre as mãos e, de lá, continuou a falar:
– Ah, os gritos de Lúcia! Eu estava no jardim quando os escutei e, naquele instante, entendi que só podiam ter um significado. Quando corri pela casa e entrei na biblioteca, já sabia o que encontraria.
– Eu realmente sinto muito, meu amigo.
– O-obrigado... Bom, o fato é que, depois daquele dia, Lúcia nunca mais foi a mesma. O que é perfeitamente natural. Eu não sou mais o mesmo! Mas ela... bom, a razão parece ter-lhe fugido.
– Como?
– É como se a mente dela tivesse sido tirado do lugar e colocada de volta, só que de maneira.... desordenada.
– É o que o luto faz.
– Você não está entendendo. Ela tem dificuldade de se orientar pela casa! Choca-se contra paredes e móveis, erra degraus, confunde portas, troca coisas de posição o tempo todo...
– Ah.
– Pensei, a princípio, que esses sintomas fossem inofensivos e que, com o tempo, sumiriam. Até a morte de Tom.
– Tom, o gato?
– Sim. Como sabe, temos, tínhamos, dois gatos. Tom e Tina. Tom tinha muitas alergias alimentares. Seu organismo rejeitava a maioria das rações. Por isso, sempre foi alimentado à parte. Pois, uns dez dias atrás, Lúcia inverteu a alimentação deles. O pobre Tom se esbaldou de comer da tigela que era de Tina.
– Um erro que qualquer um pode cometer, especialmente num momento tão conturbado.
– Sim... O problema é que Lúcia nunca reconheceu ter cometido um erro. Ela garante que Tina é quem tem alergias, não Tom. Diz que sempre foi assim.
– Ah.
– Agora entende como podem achar que Lúcia matou minha mãe?
– Não, Éder, pois ainda não sei o que aconteceu. No jornal, não está explicada a causa da morte de Dona Neuza.
– Minha mãe morreu ontem, no jardim, engasgada no próprio vômito. Não teve ninguém para socorrê-la. Lúcia e eu assistíamos, na sala, a final da Copa. Estávamos em silêncio, mas a vizinhança fazia tanto barulho quanto agora. Talvez por isso nenhum de nós percebeu que, lá no jardim, minha boa mãe se estrebuchava, em forte reação ao chocolate quente com amendoim que Lúcia lhe levara. Minha sempre foi terrivelmente alérgica a amendoim.
– Ah – Dante fechou os olhos.
************
Palavras: 1.121
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro