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Capítulo dois

- Estou com pena dessa ovelha- e de fato estava. dei um sorriso de esgar, mirando Eva ao meu lado que carregava uma delas no colo, enquanto caminhávamos rumo a casa de Nabal. Por sorte, naquele dia, eu pastoreava apenas dez ovelhas, pois a maioria tinha sido levada para a tosquia. Apenas havia sobrado as crias recentes, tão pequenas que cabiam no colo delgado de Eva.

- Então, vai me dizer o que está acontecendo entre você e Nabal?- despejou, direto ao ponto, como costumava ser.

- Não é entre mim e Nabal- retruquei, enquanto guiava as ovelhas com um cajado - mas é melhor você não saber. Quanto mais souber, mais arriscado será.

- Ai não faça isso comigo!- exclamou, socando o meu braço, com uma mão livre- vai me matar de curiosidade!

- As pessoas não morrem de curiosidade - retruquei sorrindo diante do gesto, que de alguma forma me remeteu à uma antiga amizade. Yarin costumava socar meu braço daquela forma, quando se enfezava. Porém, naquela época, o gesto era realmente doloroso. Mas agora, eu mal sentia a mão em punho de Eva, que ao chocar meu braço não gerava efeito algum. Ao menos, não em mim. Ao passo que ela, sacudia a mão com um silencioso 'au', voltando a escondê-la debaixo da lã da ovelha em seu colo - as pessoas morrem - ergui um dedo em sua direção - por saberem demais.- emendei, vendo-a bufar.

- Você não tem mesmo palavra. Prometeu que me contaria no caminho. Se é perigoso saber ou não, me deixe decidir isto, hm? Não quero ser uma ignorante naquela casa, debaixo do mesmo teto que Nabal, sem saber do que ele é capaz!- Atalhou, quase que num fôlego só. Puxei uma lufada de ar e soltei, percebendo que ela não me deixaria caminhar em paz.

- Estamos em meio a um reino dividido - soltei enfim, ganhando a atenção de seus olhos espertos- Davi fugiu de Saul, arrastando com ele boa parte dos homens. E agora, ouvi falar que está em Adulão, aceitando mais homens para fazer parte do exército dele. E não só - ergui um dedo enfático - para fazer parte do exército - fitei os olhos curiosos de Eva, que mantia as sombrancelhas erguidas- ele os está constituindo chefes sobre eles.- Eva parecia ponderar os pensamentos mirando o nada a sua frente.

- Mas que Davi havia fugido e que poderá ser o sucessor de Saul, todo mundo já sabe. Mas o que isso tem a ver com você e Nabal?- inquiriu confusa.

- Aí é que está - dei um leve sorriso de esguelha, levantando outra vez o indicador, como um mestre ensinando uma aprendiz - dizem que ele está aceitando todo o tipo de homem, inclusive, endividados, insatisfeitos e problemáticos - enumerei com os dedos.

- Oh! O sumiço dos servos!- pôs uma mão, com os dedos esticados à boca. Estalei os dedos, apontando o indicador para ela em seguida.

- Pegou rápido! - anuí, vendo-a sorrir - As condições de trabalho impostas por Nabal, há tempos, não têm sido nada atraentes. E ele sabe disso. Por isso esse banquete. Ele quer os pastores e tosquiadores debaixo dos olhos dele, comendo da mão dele.- trinquei os dentes.

- Faz sentido. Ele dá com uma mão e toma com a outra.

- Exatamente. Por isso esses banquetes tem se tornado tão frequentes em época de tosquia. O problema é que ao invés de nos pagar um valor justo, nos retribuir na mesma proporção de nosso trabalho, ele nos paga uma miséria e nos bajula com comida. Os espertos que perceberam isso, estão em Adulão com Davi agora.

- E você também quer ir...- emitiu, não em uma pergunta. Parecia mais uma constatação, num tom melancólico. Puxei e soltei o ar, fitando as ovelhas de Nabal à minha frente.

- O que eu quero...não, o que eu sempre quis, foi ser independente. Ter a minha própria terra, minhas próprias ovelhas. Muitos pastores, de senhores menos ricos por aí, conseguem isso. Nabal é desonesto. Todo e qualquer servo que trabalha para ele, tem suas asas cortadas, como as de um pássaro doméstico- olhei para Eva, que esboçou um olhar cabisbaixo.

- Então você vai embora...

- Na primeira oportunidade - respondi de pronto, fitando-a. As sombrancelhas juntas, num olhar preocupado.

- E nos deixar aqui? A mercê de Nabal?

- Não posso levá-las agora, não sei como é a vida em Adulão.

- Mas e quanto a minha irmã? Vai desistir dela? - ergueu uma sombrancelha e o tom preocupado, ganhou notas de zombaria. Bufei, esticando os lábios num meio sorriso, enquanto meneava a cabeça de um lado a outro- afinal você gosta dela, ou não gosta?- inquiriu.

- E que diferença faz? Não tenho o que é preciso, nem para pedir uma mulher em casamento. Trabalho para Nabal desde os 13 anos de idade, e não consegui comprar nem uma tenda decente- constatei endurecendo os lábios, formando uma linha de insatisfação.

- Que você é pobre, eu sei. Perguntei se gosta dela - ergueu uma de suas sobrancelhas, arteiras. Ponderei suas palavras, lembrando-me de que já gostara de uma pessoa uma vez, mas me declarar a ela, só fez afastá-la. Então decidi que nunca mais expressaria sentimentos a uma mulher novamente. Pensando bem, Yarin tinha toda a razão de me rechaçar. Eu era patético demais. Porém, depois surgiram as três no meu caminho e lembro-me bem de não ter tirado os olhos de Laís nenhum instante, quando a vi pela primeira vez. No entanto, os anos se passaram e eu não tive a mínima coragem de me posicionar. Como poderia, dada a minha condição? Então ela passara a se tornar alguém inalcançável, rodeada pelas paredes de pedra da enorme casa de Nabal.

- Defina gostar.- respondi, tentado distraí-la.

- Gostar...- ponderou, alisando a lã da ovelha em seus braços, enquanto esboçava um pequeno sorriso- gostar, é quando você pensa na pessoa o tempo todo- suspirou, olhando o nada- e quando está com ela, não consegue prestar atenção em nada além dela. E quando os seus olhos se encontram - olhou para mim, apontando dois dedos zombeteiros em direção aos meus olhos- ocorre um vínculo instantâneo!- emendou em tom brincalhão. Olhei para ela, prendendo o lábio inferior, para conter a risada iminente. Sem sucesso. Ela repetiu o gesto, rindo tanto que a ovelha pulou de seu colo.

- Não me diz que é isso o que tem aprendido como dama de companhia - retruquei, contendo a risada enquanto a fitava. Ela exibia uma fileira de dentes brancos num sorriso brincalhão - Sarah e Keren têm sido péssimas companhias para você - emendei, estalando a língua enquanto meneava a cabeça de um lado para o outro.

- Ahhh- respirou novamente- quem quer vir com a mamãe?- bateu uma palma na outra, perseguindo novamente as ovelhas.

- Ah não faz isso! Vai espalhá-las! Dá trabalho para juntá-las novamente! - Ralhei, mas ela não obedeceu, puxando uma pobre ovelha para os braços, contra a sua vontade.

- Agora é a sua vez Bete!

- Bete?- inquiri sem acreditar, enquanto a fitava alisar o pobre animal em seus braços.

- Uhum...- respondeu despreocupada- a outra era Abel, essa é a Bete. Aquela...- apontou, mas eu não segui o seu dedo, continuava encarando-a. Incredulidade apossou-se de mim, ao notar que em poucos minutos as dez ovelhas já tinham nomes em ordem alfabética. Soltei um bufar meneando a cabeça em negativa.

- Eu quero ver quando você estiver comendo e notar que a Alfa e a Beta estão no seu prato- atalhei, vendo-a entortar o canto dos lábios, exibindo os dentes trincados.

- Ai, não diga uma coisa dessas! - ergueu o punho para me bater, mas o encolheu de volta, desistindo da ação- eu jamais comeria você, Bete querida- apertou a ovelha em seus braços e eu jurei tê-la visto pedir socorro.

- Uhum! Cuidado, quando estiver comendo não ouvir um béééé... eu sou a Béééééte, não me coma por favor!- Imitei em uma voz esganiçada, fitando-a conter o sorriso, enquanto me repreendia.

***

- Você ainda não me disse se gosta mesmo da minha irmã - "ela não deixa passar nada", pensei, enquanto guiava as ovelhas para dentro do cercado. Já estávamos bem próximos da casa de Nabal e de longe, podia notar a movimentação dos servos. Fitei-a novamente, debruçada ao cercado enquanto erguia as sobrancelhas e piscava uma longa vez em minha direção.

- Se eu gosto ou não, não faz diferença.

- Arg, é claro que faz!- atalhou. fechei o cercado e caminhei em direção a ela.

- Da para você ser menos...você?- apoiei um cotovelo no cercado.

- E como é ser eu?- sorriu.

- impertinente, irritante e obstinada!- Atalhei, fitando-a revirar os olhos.

- Ai... é só uma pergunta Gael. Não faz mal em responder- retorquiu, arqueando uma sobrancelha. Deixei a cerca e comecei a caminhar em direção a casa de Nabal, não sem percebê-la tentando acompanhar minhas passadas.

- A sua irmã é um bom partido. Uma mulher para casar. Resignada, tem bons modos, além de ser muito bonita.

- Hmmm- estapeou meu braço, enquanto sorria- então já posso lhe chamar de cunhado- eu sorri de volta, balançando a cabeça de um lado a outro- não. Acima de tudo ela é inalcançável. Principalmente para mim.

- Você gosta mesmo dela?- inquiriu, desta vez séria, cruzando os braços e brecando o caminho à minha frente.

- Talvez não da forma que você descreveu "gostar". O que você descreveu, eu nunca senti por ninguém. E espero nunca vir a sentir- despejei, contornando-a para seguir, mas ela interrompeu.

- Nem por Yarin?- Estaquei no mesmo instante, fitando-a em seguida, com a minha boca aberta em estupefação. Ela ergueu as sobrancelhas em resposta e eu fechei os olhos esfregando a barba por fazer.

- Sarah...

- Na verdade, Keren.

- Tanto faz. As duas são farinha do mesmo saco.

- Mas não são mentirosas, não é?- ela repuxou os lábios num sorriso, saboreando me ver encurralado.

- Sim, eu gostava dela.- confessei de pronto, virando as costas para seguir o caminho- mas não passava de uma paixonite infantil.

- Não foi o que eu acabei de presenciar- provocou, seguindo-me. Calei-me, decidido a não dar mais vazão aos seus mexericos. Mas era impossível se desvencilhar dela.

- Me disseram que você até a treinou na espada - ela hesitou por um instante, percebendo o meu silêncio e depois continuou - eu até ouvi rumores de que ela lutou contra um salteador e o matou.

- Ela fez o quê?- sorri. Não. Gargalhei, tentando abafar o som. Ela repetiu o gesto com uma mão na boca.

- O que foi? Não é verdade?

- Você realmente precisa se afastar de Sarah e Keren. Está ficando futriqueira igualzinha a elas, além de dar ouvidos a boatos sem sentido.

- Então, não é verdade que a treinou?

- Era apenas uma brincadeira com espadas de madeira, Eva. Menos por favor.

- Mas você parece não estar brincando com aquela lâmina afiada - apontou para a bolsa de couro, que eu carregava com a alça atravessada sobre meu peito - eu parei num instante e me voltei para ela.

- Direto ao ponto Eva. Rodeios não combina com você- retruquei, sabendo que ela estava rondando demais um assunto só, o que não era do seu feitio. Não sem segundas intenções. Ela se aproximou, as mãos juntas com os dedos cruzados na altura do queixo, os olhos negros brilhando como estrelas à noite e os lábios com um leve repuxar. Eu sabia que ela atiraria uma lança, ainda mais afiada que a de Saul e num instante, arrependi-me de tê-la inquirido.

- Me treine... Por favor- suplicou, em tom melodioso, enquanto piscava várias vezes. Foi impossível conter a risada ruidosa que fugiu de minha garganta. Eu sentia o rosto queimar por inteiro, enquanto fitava o dela, agora sério, enquanto voltava a cruzar os braços.

- O que tem de engraçado?- inquiriu com a sobrancelha arqueada.

- Não é engraçado. É ridículo o que está me pedindo.

- Por quê? Por que sou mulher?

- Porque é uma menina! Uma dama de companhia- Atalhei, sem paciência

- Yarin também era - pousou o peso do corpo em uma perna, pendendo a cabeça para o lado. A expressão de desafio esculpida no rosto.

- Era só o que me faltava - bufei desviando o olhar- Não é, nem de longe, a mesma situação. Yarin e eu brincávamos com espadas quando crianças, como uma alternativa para eu não ter que brincar com suas bonecas de pano.

- Mas não mudou quando cresceram, não é?- insistiu - Não é?

- Nem pensar - voltei a caminhar, deixando-a para trás

- É uma pena pensar que não significo nada para você- articulou, com a voz embargada, o que me fez voltar a atenção para ela novamente. Ela continuou com os olhos lacrimejando e os braços cruzados- eu lamento não ter nem um décimo da estima que você tinha por Yarin- continuou. Uma lágrima descendo por sua bochecha, enquanto ela fugia o olhar e respirava fundo - mas é claro, não passo de uma órfã. Uma dama de companhia, fadada a viver para sempre reclusa naquela casa de pedra. Uma mulher não pode sonhar em aprender a se defender, a não ser que seja uma amiga superestimada, o que nunca fui e nunca serei-

Aproximei-me encarando-a. Estávamos há um palmo de distância, e ela abraçava o próprio corpo, numa expressão melodramática. Olhei bem nos olhos dela, os quais estavam inundados de lágrimas.

- Sabe que sua verdadeira vocação é intérprete, não sabe?- ela bufou, entortando os lábios numa expressão de desgosto, enquanto limpava as lágrimas- quem sabe, ao invés de Adulão, podemos ir ao Egito, para mostrar os seus dons de representação dramática ao próprio Faraó...- provoquei, dando uma gargalhada abafada.

- Ai, mas que impertinente!- Atalhou, mudando a postura para altivez e saindo na frente, enquanto eu a seguia zombando.



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