Capítulo dezoito
Eva
Esperei por dias, semanas, talvez meses. Até que a temporada de tosquia chegou sem avisar e de repente estávamos novamente em Carmelo, em um dos banquetes extravagantes de Nabal. Como de costume, as tarefas triplicaram, sobrando para mim algumas delas, inclusive não apropriadas à uma dama de companhia, mas que vinham muito a calhar, uma vez que eu odiava compartilhar o mesmo teto que o senhor Nabal.
Atravessei o campo coberto por uma grama verde e molhada, resultado das últimas chuvas da estação, carregando comigo um vaso de barro. Eu buscava o poço para enchê-lo de água, esta seria usada na cozinha que estava em euforia. Novilhos em grande quantidade estavam sendo preparados este ano e servidos aos tosquiadores de Nabal. Este, não escondia sua satisfação ao ver a produtividade em grande escala de seus negócios.
Em todo o caminho até o poço eu mirava as nuvens cinzentas que tapavam o sol, pensando no porquê. Por que, afinal, Yaweh permite que homens tão maus, quanto Nabal, prosperem como as árvores da primavera. Tal sentimento atenuava ainda mais minha sede por justiça.
Limpei o suor da testa com o dorso da mão e deixei o vaso ao pé do poço, o qual acabara de chegar. Depois de enrolar os cabelos para trás, tomei o recipiente que estava em cima do parapeito do poço, amarrado em uma corda e quando me preparava para lançá-lo ao poço, senti uma mão segurar meu pulso.
Assustei-me, levantando os olhos de imediato e surpreendi-me com os olhos de Gael sobre mim, tão acinzentados quanto as nuvens do céu. Os dedos dele no meu pulso queimavam tanto quanto seu olhar melancólico. Foi como ser levada de volta àquele estábulo, onde ele me prometera voltar.
Lembrei-me de ter passado cada dia e cada noite à espera de Gael. Sem dormir, sem comer, sem viver. Apenas esperei, do alvorecer ao crepúsculo. Por vezes observava uma silhueta se aproximar ao longe, da janela do quarto de minha senhora e ficava imaginando que poderia ser ele. Mas não era. Nunca era. Até que desisti de esperar e me dei conta de que estava vivendo uma irracionalidade, sonhando com um rapaz. Chegava a ser inapropriado. Todavia, o tempo da “não espera” fora absolutamente menor e cá estava eu, pousando novamente os meus olhos em Gael.
— Deixe-me ajudá-la — ouvir sua voz grave e consideravelmente baixa, fez-me estacar por um instante, enquanto ele tirava o recipiente de minhas mãos e o lançava no poço. Mas a paralisia logo passou, ao lembrar-me da mágoa inconscientemente guardada.
— Não, eu posso fazer isso. Obrigada.— puxei a corda com aspereza, mas ele não a soltou.
— Não seja teimosa, sabe que não tem força.— Eu bufei. Antes inconscientes, agora a mágoa e indignação eram latentes.
— Isso não é de sua responsabilidade. Deixe-me fazer o meu serviço e não me atrapalhe. — É incrível o que a determinação pode fazer com uma pessoa, pois os meus braços, outrora fracos, puxaram o balde de madeira cheio de água em tempo hábil, sob o olhar surpreso de Gael que mantinha um braço sobre o pequeno muro de tijolos, enquanto olhava de mim para a corda com suas sobrancelhas levantadas. Pousei o recipiente em cima do parapeito, fitando com satisfação seus olhos prateados.
— Parabéns! — achincalhou — mas isso não é bom para sua asma.
— Que asma?
— Esta que te faz ofegar, feito um burro no deserto — bufei, incrédula, tentando recobrar o ar que nem notei que havia me escapado.
— Como pode tripudiar, uma vez que me deixou esperando como uma árvore plantada, depois de ter prometido voltar!? — emiti, num sussurro gritado e ainda ofegante, enquanto via sua expressão transmutar-se para melancolia novamente.
— Eva…
— Não! — cortei-o, apertando os olhos e estendendo a palma da mão para ele. Joguei a água no vaso de barro aos meus pés, deixando quase a metade ir ao chão.— Ai… mas que…— levei uma mão à testa, esfregando um ponto que já começava a doer. Num instante de distração, Gael roubou o recipiente das minhas mãos, escondendo-o atrás de suas costas. — devolva-me isto já, Gael! — Atalhei, entredentes.
— Só devolvo se me ouvir, Eva. Eu posso explicar. — Retrucou, num tom tão melancólico quanto as sobrancelhas içadas. Os cabelos escuros brigavam com os seus olhos e num gesto impaciente ele os jogou para trás. — Eu lhe disse que voltaria depois que conseguisse conversar com os soldados de Davi. Eu precisava de um plano concreto, não poderia simplesmente… levá-la. Mas eles não voltaram. — Gael analisou minhas expressões, em busca de alguma fé, mas eu apenas cruzei os braços.
— Estou ouvindo.— Devolvi mordaz. Ele precisaria de mais para me convencer.
— Eva, escute — estendeu a mão livre, enquanto gesticulava — Aaron e outros homens de Davi, vieram ter comigo. Passaram meses a fio patrulhando em volta de nossos pastos, ajudando a mim e a outros pastores defendermos nossas ovelhas. Estavam acampados no deserto de Maom, ao sul de Jesimom. Mas não estão mais. Eles simplesmente desapareceram, Eva. Eu juro! Pelo Senhor, eu juro!
— Pare de jurar pelo Senhor, Gael. Tenha pelo menos temor, já que não tem palavra. Agora devolva-me o balde — estendi a mão, mexendo os dedos com impaciência.
— Não acredita em mim?! — arguiu.
— Não — retorqui, secamente, evitando seu olhar.
— Eva…
— Aaron havia me dito que Davi estava em Zife, no deserto de Horesa — tornei a cruzar os braços e encará-lo fixamente.
— Eles fugiram de lá. Naquela mesma época, Saul os perseguiu, depois de ter sido avisado por pessoas da cidade de Zife. Por isso eles desceram para Maom, eu digo a verdade! — articulou exasperado — Eva…— deu um passo em minha direção. Seu olhar era tão cortante, quanto neve de inverno, suas sobrancelhas grossas uniram-se e seus lábios se entreabriram ofegantes. Evitei olhar para o caos que eram suas feições e dei um passo para trás. Por mais refrescante fosse olhar em seus olhos, o calor era intenso, não só pelo verão e tempo abafado, mas por sua proximidade descabida. — Eva… me preocupei com você. Nabal voltou a lhe importunar?
— Nabal está louco. — Sorri amargamente — Todos têm medo dele. Certo dia, ele deu um tapa na senhora Abigail. Nem sequer deu-se ao trabalho de saber se estava sendo observado. Minha senhora está murchando, como uma rosa no deserto. E quanto aos servos, bem, nós evitamos até respirar perto dele. — Fitei Gael, ainda ressentida — Mas não precisa fingir que se importa comigo. Não atentou-se nem mesmo em me avisar para não mais esperá-lo.
— Eva, perdoe-me…
— Não… — estendi novamente a palma da mão — não precisa. É como eu sempre lhe digo: não é sua a responsabilidade.
— Eva, não seja cruel! não sei se te passou pela cabeça, mas também sou apenas um criado! Trabalho feito um burro de carga. Tive que apacentar mais de cem ovelhas de uma vez nesse último ano. Só estou aqui agora, porque elas foram levadas para a tosquia. Não sei como Nabal prosperou tanto. Mas eu sei que tentei te ver, mas não consegui. Perdoe-me!
— Então pare de prometer o que não pode cumprir. — Ele me fitou por instantes intermináveis. Apenas ouvíamos os sons dos pássaros fugindo de uma iminente tempestade, então não poderia dizer que o silêncio era constrangedor, mas sim o olhar de quem quer dizer mais do que diz.
— Eva…
— Basta, Gael. — soltei ar pelas narinas — não foi você que me rechaçou outro dia, argumentando que era inapropriado? Que eu era apenas uma ingênua e inconsequente. Ou até mesmo uma qualquer…
— Ei! eu nunca disse isto!
— Mas pensou. — Retorqui, vendo-o bufar em incredulidade.
— Não coloque palavras na minha boca. E quanto ao resto, eu deveria ter ganhado um prêmio por ter te tolerado! Uma garota insubmissa que não sabe o seu lugar…— Meu queixo caiu diante de tamanha presunção e eu soltei uma lufada de ar.
— Se tivesse mesmo um prêmio, eu que teria ganhado ao ter que lidar com um ranzinza esquisito!
— Ah que ótimo, o seu lado insolente. Obrigado por me lembrar dele. — escarneceu, num sorriso de esguelha.
— Insolente?— sorri, num tom de escárnio — sabe, em algum momento lembro-me de Aaron me contar que vc estava quase chorando quando eu desmaiei.
— O quê!? Eu não chorei, que ridículo — cuspiu.
— Eu disse quase…— insisti, com uma sobrancelha arqueada.
— Céus! Tudo bem, eu posso ter ficado apreensivo de certa forma, porque… Por todos os profetas, você sai desmaiando por aí como uma bêbada, sempre que fica com medo…
— Eu havia acabado de ser atacada, acha pouco?
— Não foi por falta de aviso…
— Arg! Eu o odeio, Gael! Devolva logo o meu balde, para que possa voltar!
— Odeia? que eu saiba, foi você a me procurar querendo aulas de espada…
— Ah, por favor… foi uma troca! Você queria a minha irmã e nem terminou de me ensinar. Logo me rechaçou como se faz a um cão!
— Ah… a irmã. Ela sempre tem que meter a irmã. Mas é claro! — Gael trincou o maxilar e de repente percebi a cólera saltar de seus olhos. E o que viera a seguir, fora como a chuva que começava a cair sobre nossas cabeças — Eu deveria gostar dela, ela é charmosa e linda e uma ótima pretendente! Mas estou aqui, completamente louco por uma… aventureira, selvagem, metida a vingadora e aspirante a assassina de filisteus! Que o senhor me defenda! — engoli em seco com as palavras que saíram de sua boca como enxurrada. “Louco por uma…? Foi o que eu ouvi?” meu coração se descompassou, ao passo que minha boca secava e eu me tornava como gelo.
— Você está completamente louco, o que está querendo dizer…— emiti num fio de voz — O que está querendo dizer? — repeti, ao vê-lo hesitar.
— Maldição… — disse, apertando os olhos enquanto respirava fundo, até que voltou seus olhos para os meus e prosseguiu — Eu não gosto da sua irmã, eu gosto de você! Eu a amo na verdade.
O quê?
Cambaleei para trás ao ouvir tais palavras de Gael. Por um instante tentei pensar se não estava ouvindo errado, mas ele fora bem incisivo em suas palavras, não deixando-me dúvida.
— Gael… o que você disse…— balbuciei, novamente num fio de voz.
— Exatamente o que você ouviu.
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