Capítulo XVI - Berna pede socorro
É oportuno interromper a narrativa aqui para localizar Kyrah. Ela estava no acampamento dos saxões. Assistira uma batalha deles com uma tribo vizinha e pudera atestar a informação de Maküsh. Eles eram terríveis, até mesmo ela achou demais, e poderia ter ficado enojada se durasse tempo suficiente. Mas não durou. Nada durava muito tempo nas mãos deles.
Kyrah assistiu à guerra de camarote, junto a duas "amigas" saxãs de Maküsh. Isso a aborreceu, mas não foi o motivo que a mandou de volta para casa. Acontece que ela reconheceu a trajetória dos saxões. Eles iam direto para a sua aldeia natal! Ela pediu um cavalo a Maküsh e correu na frente deles. Chegou na antevéspera do sacrifício.
Na antevéspera do sacrifício também apareceu na aldeia um séquito estranho. Heric recebeu-os em sua casa, um bando de homens morenos e altos, com cabelos encaracolados, negros e lustrosos. Eram árabes, comerciantes. Vinham pedir permissão ao "xá" para instalar seu acampamento ali perto. Pensando em proteção contra vândalos, gauleses e esses outros inimigos que viviam por ali, Heric permitiu. Ganhou presentes dos árabes, e também Una os ganhou. Deram-lhe uma atenção meticulosa, inclusive, e à Kyrah, que não teve sucesso em comunicar seu recado. Mas vê-la sã e salva deliciou Beowulf.
Tudo parecia ter serenado, na antevéspera do sacrifício. E, ainda assim, Berna pulou a janela naquela noite, envolta em uma capa, e encontrou o velho que iria ajudar a salvar a menininha. Recebeu-a de um dos guardas, que a tirou da cabana guardada por sentinelas, arriscando a própria vida. Berna levou-a até uma caverna, de onde alguém deveria levá-la para longe quando fosse seguro. Era sobre isso que ela conversava com o tal velho ao entrar na aldeia, quando rompia a alvorada.
— ... até lá ela ficará bem, pois está sob a proteção de Cristo. A paz do Senhor seja contigo, irmão – despediu-se, dirigindo-se para casa.
— Amém – murmurou o outro, seguindo na direção contrária.
A casa de Ingra Donnerstag ficava precisamente nessa parte da orla da floresta. Seu pai, Hati, estava lavando o rosto no quintal quando os dois vultos encapuzados saíram por ali, e ouviu essa parte da conversa. Não conseguiu reconhecer o outro, que fora na direção contrária, mas reconheceu a voz de Berna e postou-se no caminho dela com um sorriso cruel, quando ela passou por ali para ir para casa.
— Cristo, Srta. Von Brandeburg? – ele perguntou, sibilante, assustando-a ao sair de trás da casa para frente dela. O sangue de Berna gelou nas veias. Não respondeu.
— Eu poderia pensar que estou sonhando! A filha obediente do chefe, que está trancada no seu quarto de castigo de repente me aparece aqui na rua, caminhando livremente e falando coisas de uma religião pagã... Quer fazer o favor de me beliscar? – ele estendeu o braço para que Berna o fizesse. Ela permaneceu imóvel e impassível, então ele próprio se beliscou. – Ai! – exclamou. – É, parece que eu não estou sonhando... mas que é que um beliscão prova, não é mesmo? Quando eu acordar amanhã e souber por seu pai que você decidiu casar o mais rápido possível com meu sobrinho, saberei que essa menina tão dócil não seria capaz de tamanha blasfêmia...
O coração de Berna batia disparado e a palidez em seu rosto denunciava o medo que ela não declarava porque não conseguia falar. Hati Donnerstag abandonou a dissimulação das ameaças e botou a coisa às claras.
— Ouvi dizer que os cristãos não negam sua fé nem mesmo se ameaçados de morte – disse, num tom entre curioso e ameaçador. – Isso é verdade, Srta. Von Brandeburg? Vamos fazer o teste: você é cristã?
— Eu sou – ela respondeu, num fio de voz.
— Ai, ai, isso é muito ruim... para você. Nossos deuses estão furiosos com alguém, você tem visto as desgraças que caíram sobre nós nos últimos tempos. E você, além de causar tudo isso, ainda rouba o sacrifício que íamos oferecer para aplacar sua fúria... tsc, tsc... a maioria das pessoas desta aldeia ficaria justamente indignada com essa atitude mesquinha... se soubessem quem é o causador, haveriam de querer eliminá-lo... E depende de você que eles saibam. Tem vinte e quatro horas para me dizer se vai usar branco para um casamento ou para um sacrifício depois de amanhã. Pense bem, senhorita Berna, na desgraça que causaria para o seu clã se tivesse que ser sacrificada por paganismo, e que está nas suas mãos evitar. Tenha uma boa noite. Talvez eu esteja sonhando tudo isso, de qualquer forma. Cabe a você me dizer, lembre-se – e ele entrou em casa, satisfeito.
Berna passou mal no caminho para casa. Recolhendo-se ao claustro, orou por um longo tempo, pedindo orientação. "Ah, meu Deus", ela murmurava, "Eu não quero me vender, Pai. De qualquer forma, seria como negar a fé. Não temo exatamente morrer pelo teu nome, o problema é ter meu sangue derramado no altar dos ídolos, para louvor deles. O que é que eu faço?" Ela pensava e pensava. Durante todo aquele dia de prazo, ficou deitada na cama, matutando escapatórias, pensando se devia procurar alguém e quem. Mas muitas coisas acontecem em um dia.
Kyrah, como foi dito, chegara no dia anterior. Mas, como seu pai estava resolvendo a questão da permissão do acampamento dos comerciantes árabes, a única atenção que lhe deram foi no sentido de lhe prepararem banho, comida e cama (depois de afogarem-na em saudações). As questões e conversas ficaram para o dia seguinte, que é este de que tratamos agora. O pai de Kyrah chamou-a logo cedo.
— Onde você estava? – questionou, em tom bem severo.
— Por aí – respondeu ela, vagamente.
— Pois ninguém foi capaz de te achar "por aí" – retrucou Heric, irônico. Kyrah achou prudente não dizer mais nada. Sabia que Heric estava a ponto de explodir, o que realmente aconteceu – Quem você pensa que é, garota? Quem te deu toda essa liberdade de sair "por aí" a hora que quiser e voltar somente uma semana depois? Sabe como ficamos preocupados? Você quase matou a mim e a sua mãe! Garotinha mimada e inconsequente! Não passa de uma criança e acha que conhece o mundo! E que loucura é aquela de querer casar-se com o noivo da sua irmã?! Parece que eu tenho mesmo dado liberdade demais a essas pequenas! Mas ainda é tempo de corrigir, por todos os deuses! Hei de colocar vocês no eixo – ele bradou, acalmando-se um pouco depois disso.
— Vocês aqui não me tratam dignamente, isso sim – ela respondeu, exaltada. – Eu nem voltaria, se não tivesse algo a avisar.
— Quem avisa aqui sou eu. Aviso que você está de castigo agora, e só não te coloco trancada no quarto com aquela sua irmã porque sabe-se lá o que vocês inventariam de conspirar contra mim. Mas não você vai ver ninguém, terá que andar com Una para onde ela quiser, parece que essa é a única filha que me saiu direita...
— Porque o senhor nunca a colocou contra a parede... – resmungou Kyrah.
— ...nem o noivo da sua irmã, e muito menos aquele bardo afeminado com quem você anda, está ouvindo? – concluiu Heric, ignorando-a.
Kyrah foi para a varanda, cheia de raiva. Agora não daria mais seu aviso, queria mais que aquela maldita aldeia se danasse, ela e todos os que moravam nela. Limpava com irritação as lágrimas que lhe caíam pelo rosto. Jolie chegou perto dela, vinha feliz e saltitante, contrastando com seu comportamento dos dias anteriores, e estranhou ver Kyrah triste, como essa estranhou vê-la feliz.
— Qual é o motivo de tanta alegria? – perguntou, sarcástica e amargurada, a filha do chefe. Jolie respondeu, travessa:
— Acontece que o Banzo teve suas expectativas matrimoniais frustradas. Não conseguiram trazer a tal Gertrude de volta, porque ela fugiu com um guerreiro gaulês – Jolie disse isso sem conseguir disfarçar sua satisfação. – Parece que isso já aconteceu antes.
— Também, tolo, quando arranja uma mulher decente não a quer – disse Kyrah. – Todos os homens são assim, idiotas – atalhou, revoltada.
— Não é verdade – disse Gabrielle. – O seu Urso ficou como doido quando você não estava aqui, já te disseram? – contou, baixando a voz.
— Bem, que me adianta? Papai me proibiu de vê-lo, e a Bragi, também – ela reclamou. – Que droga!
— Mas nós podemos arranjar um jeito de vocês conversarem. Se quiser eu sirvo de mensageira.
— Eu não sei. Penso que vou obedecer meu pai e ficar reclusa aqui. Humanos não me entendem, de qualquer forma. Só meu Lauren, mesmo, para fazer valer a pena eu ter voltado – ela resmungou.
— Bem, eu agora tenho que ir tecer. Mas logo passo aí pra te ver de novo. Se anime, Kyrah, vai dar tudo certo.
— Humpf!
E Gabrielle se afastou. Kyrah foi pegar Lauren e ficou brincando com ele até o crepúsculo, ali na varanda. Ela gostava desse bichinho mais do que de muitas pessoas. O amava ainda mais porque ele lembrava bons momentos com Beowulf. Kyrah acabou esquecendo da urgência do que vinha comunicar. Ficou interessada em saber mais sobre aqueles árabes que a tinham presenteado tão generosamente no dia anterior.
E, enquanto isso, as vinte e quatro horas do prazo de Berna passavam, e ela continuava deitada na cama sem saber o que fazer. A aldeia já estava toda adormecida e ainda ela cismava, no seu dilema interior.
"Se eu for pedir socorro aos irmãos, posso botá-los em risco. Não sei se ele colocou alguém pra me seguir", pensou. "Na verdade, boto qualquer um em risco. Mas eu preciso contar a alguém! Quem, meu Deus, quem?" Ela olhou para Lauren, que dormia no poleiro com o rosto escondido sob uma das asinhas brancas.
— Tristan! – exclamou, baixinho.
Berna levantou-se silenciosamente. Envolveu-se numa capa, calçou as botas e saiu sorrateiramente pela janela.
A noite não estava exatamente enluarada, mas às vezes a lua saía de detrás das nuvens, e Berna andou colada às paredes das cabanas, como uma precaução. Tristan morava consideravelmente longe, quase do outro lado da aldeia, e Berna fez todo esse caminho com o coração na mão. Chegando à casa dele, não sabia o que fazer. Chamar na porta da frente seria imprudente. Ela precisava chamar baixinho, e talvez não ouvissem; também não tinha interesse em acordar toda a família dele. Rodou em volta da cabana, tentando calcular qual seria a janela do quarto dele, sob a qual ele dormia. Ouviu uns roncos vindo de uma na lateral direita da choupana e apostou nessa.
— Tristan – chamou, quase inaudivelmente. Não houve reação – Tristan! – ela insistiu, um pouco mais alto.
— Que é, mãe?... Já vou... – ele resmungou, provavelmente virando para o lado em seguida e continuando a dormir e roncar.
— Tristan! – ela insistiu, alteando perigosamente a voz, estrangulada pelo nervoso. – Aqui na janela, puxa!
O rapaz sentou na cama de um impulso, os olhos arregalados. Assim que associou as ideias, abriu a janela. Deu com o semblante pálido e apavorado de Berna fitando-o por sob o capuz. Assustou-se.
— O que você está fazendo aqui a essa hora? Una me disse que estava de castigo – ele perguntou, em meio a um bocejo.
— Preciso falar com você urgente – ela murmurou. Era isso mesmo que a expressão dela demonstrava, por isso Tristan não fez mais perguntas.
— Espere só eu me vestir e já saio.
Berna saiu da janela (que o rapaz fechou) e foi se recostar do lado da porta. Um minuto depois, Tristan saiu por ali, também envolto em uma capa, e os dois dirigiram-se para a floresta.
— Sim, o que houve? – ele perguntou, quando estavam suficientemente distantes da aldeia. A garota respirou fundo. Não sabia como começar.
— Bem, você sabe que querem que eu me case com o Urso Raivoso – Tristan anuiu. – E... você sabe que eu estava trabalhando no salvamento daquela menina... – ele anuiu novamente e ela não sabia como continuar. Respirou fundo de novo – Bem, o pai de Ingra descobriu que eu sou cristã e agora está me chantageando.
O rapaz expressou espanto, e Berna contou toda a história. À medida que ia falando, Berna sentia como se o peso desta situação incômoda fosse diminuindo. Ao terminar, já estava bem mais tranquila.
—...e eu não sei então o que devo fazer – concluiu. Tristan assobiou.
— Bem, a solução mais simples é você se casar com o Beowulf e pronto – disse, num tom forçado de indiferença. Berna suspirou.
— Eu sei... Pensei nisso o dia todo, mas seria me vender, entende? – ela olhou pra ele, com uma expressão sofrida. – Eu estaria estragando a minha vida, a desse rapaz e a da minha irmã, que é apaixonada por ele. Nós cristãos não devemos temer a perseguição e a morte, mas acontece que eu não quero ser sacrificada a outros deuses. Só que também não vou fazer o jogo dele. Seria me acovardar, e por mais medo que eu tenha, a covardia me repugna absolutamente.
— Você tem razão – Tristan concordou, quase efusivamente. – Mesmo que seu pai consiga evitar a execução, viver nessa aldeia vai ser um perigo constante pra você. Todo mundo vai te odiar e te colocar em vigilância... você vai botar todos os seus amigos em risco... seu clã vai ser desprezado... não vai mais poder frequentar as reuniões porque vai ter gente te seguindo...
— Para! Assim você me deixa pior – exclamou Berna, ajeitando a capa, nervosa.
— Perdão. Mas não se preocupe que seu pai não vai te defender – Tristan tinha mesmo um jeito estranho de animar as pessoas. – Ele é um bom político, não fará nada que desagrade o povo. Ele tem outras filhas e um clã para manter em segurança.
— Ainda mais agora que está furioso comigo. Ele me proibiu de te ver, sabia? – Berna contou, distraidamente.
— Una mencionou isso também... – respondeu o rapaz, pensativo. – Fico feliz que eu tenha merecido essa atenção especial.
Houve um silêncio, durante o qual os dois permaneceram imersos em pensamentos. Em seguida Berna ergueu para o rapaz o rosto aflito, e questionou:
— O que é que eu faço, Tristan?
Ele olhou para ela e tomou seu rosto entre as mãos, beijando-a ternamente.
— Acalme-se – murmurou, acariciando os cabelos dela. – Vai dar tudo certo. Vá para sua casa e durma essa noite tranquila. Mantenha sua decisão. Se seu Deus é verdadeiro, ele não vai deixar que nenhum mal te aconteça.
— Certo – perturbada e corada, a garota foi caminhando pela trilha de volta para a aldeia. Deteve-se uns metros adiante e falou para Tristan: – Volte por outro caminho. Alguém pode ter me seguido.
Ela se voltou sem esperar resposta, e foi para casa. Custou a pegar no sono, com a mente dividida entre a preocupação com o dia seguinte e a perturbação pelo beijo surpresa. Mas, finalmente, o cansaço a venceu. Tristan, por sua vez, não voltou para a cama naquela noite.
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