Capítulo XIV - O pedido e o mal-entendido
No outro dia, acalmados os ânimos, Beowulf ainda tinha uma tarefa a cumprir: pedir Kyrah ao pai dela. Não se arrependera da promessa feita à moça, mas começava a lamentar o que perderia por causa dela - um futuro que parecia ainda mais brilhante quando ele considerava as complicações que teria que enfrentar, discórdia com o clã entre outras coisas, para realizar esse casamento. Além disso, não tinha assim tanta certeza quanto Kyrah de que o pai dela "faria tudo para vê-la feliz". Talvez ele reagisse mal quando Beowulf fosse fazer o pedido.
Mas ele foi. Foi e levou o pai, dando apenas uma ideia do que ia fazer na casa do chefe. O pai tinha que estar presente. Os chefes dos dois clãs precisavam presenciar o acerto do negócio. Depois de bebidas preliminares, o pai de Beowulf disse:
— Bem, honorável chefe, estou aqui porque meu filho deseja pedir-lhe uma coisa que o senhor possui e que lhe é bem cara...
Heric ficou bem contente.
— Nem imagino o que seja! — disse, com ar de galhofa, e riu.
— Pois, sim, senhor — Beowulf tomou a palavra. Só estavam os três homens na sala; mulheres não se metiam nessas coisas, em geral. O urso suava frio, e suas mãos tremiam. Sentir-se-ia mais seguro na frente de um batalhão de eslavos dos piores, mas continuou — Eu ficaria bem feliz se pudesse... ter, em casamento... a mão da sua filha... — gaguejou.
Antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa, Heric atalhou:
— Mas só a mão? Leve-me a filha inteira — e riu. — Seria um acontecimento grandioso, dos melhores! Pois sim, está concedida.
— Não vai nem perguntar o que ela pensa? — Beowulf perguntou, apatetado.
— Para quê? — Heric pareceu um pouco temeroso; baixou a voz e olhou por cima do ombro. — Tenho certeza que ela ficará muito contente. É uma menina obediente, como as outras duas também, embora talvez um pouco teimosa. E se o senhor mesmo quiser contar a ela... quando tiver oportunidade...
— Esse acontecimento merece uma festa! — o Donnerstag pai exclamou. O filho também estava admirado com a facilidade do ajuste.
— Deixemos as comemorações públicas para o casamento e para quando vier o primeiro neto, ahn? — sugeriu Heric, erguendo a caneca. — Mas um pouco de vinho nunca fez mal a ninguém...
E os três ficaram bebendo e conversando ali por um tempo. Depois houve festa na casa dos Donnerstag também. Mas apenas uma palavra, que Heric impediu Beowulf de dizer, poderia ter mudado toda essa disposição festiva: Kyrah. Beowulf tinha por certo que ela seria sua esposa; provavelmente ela já tinha falado com o pai sobre isso - por isso ele não achara necessário perguntar nada a ela, e também por isso ele aceitara tão fácil.
Mas não era assim. Heric e o clã Donnerstag davam por consumado apenas uma coisa que os boatos da aldeia já antecipavam: o casamento de Beowulf Donnerstag com a filha do chefe. A filha mais velha do chefe, Berna, que lhe daria o direito à sucessão do "trono". Por isso ficaram tão felizes - por isso Heric não perguntou se isso era da vontade dela. Ele sabia que não era.
Eles combinaram o casamento para depois do aniversário da noiva. Aí que Beowulf tinha na cabeça uma data e os parentes outra. Um dia Heric passou por Beowulf, isso chegando ao outono, perto do aniversário de Berna, e questionou:
— E aí, já contou a ela? Tá na hora!
— Já contei faz tempo.
— E ela?
— Ficou feliz — isso tirou um peso da consciência do chefe.
Efetivamente, Beowulf contara a Kyrah bem no dia seguinte ao pedido, e ela ficara muito contente. Não dissera a ninguém, porque não era de espalhar esse tipo de coisa. Continuara com Beowulf seus encontros na floresta e, como toda moça solteira daquela época, passava pelo menos uma hora por dia tecendo, na confecção do seu enxoval.
Berna também fazia o seu, embora nem pensasse em casamento. Ninguém dissera nada a ela sobre o ajuste. Seu pai, às vezes, tratava seu casamento com o urso como uma coisa certa, referia-se a ele como consumado, mas Berna não desconfiava; há muito tempo decidira ignorar as insinuações do pai. E depois, tinha mais no que pensar.
A moça tomara a seu cargo copiar as Escrituras que chegavam à aldeia para o grupo de cristãos dali. Gastava nisso a maior parte do seu tempo e todo pedaço de pergaminho em que lograva pôr as mãos. O grupo era pequeno, consistia de quinze pessoas, isso numa aldeia com cerca de 50 clãs, cada um com aproximadamente 100 ou 200 pessoas. Na realidade o que eles chamavam de Aldeia era uma junção de quatro aldeias, que formava uma tribo. Na sua aldeia propriamente dita havia apenas 15 clãs: clã Brandeburg, clã Donnerstag, clã Trüppendorf, clã Grillnborst, clã Zrymeheim, clã Gulltoppr, clã Walaskialf, entre outros. Havia alguns remanescentes do clã dos Skidbladnir, e Falkenbach pai e filho. O clã do Tímido, o dos Tanfana e o do marido de Brunhild eram das aldeias vizinhas, quase coladas, que tinham uma grande praça comum onde se realizavam reuniões, assembleias, e havia ali um altar de sacrifício.
Nessa praça Berna passava bastante tempo, agora, conversando com Jolie. Gabrielle se interessara também pelo Deus dos cristãos e pelas Escrituras, e todo o dia as duas liam um trecho delas e discutiam sobre ele. Jolie ensinava a Berna um pouco da língua franca, e essas discussões eram feitas em franco e godo misturados, com as citações das Escrituras na língua original, hebraico. Isso impedia que os passantes entendessem qualquer coisa.
Elas também falavam do seu Cristo a qualquer um que parecesse incomodado com a situação em que vivia a tribo - guerras constantes, pouca paz. Foi assim que trouxeram Brunhild, e em seguida o marido dela, para a nova fé. Ambas estavam empolgadas nesse trabalho, que as distraía de suas próprias dificuldades, a saber, o desprezo de Olaf e "os verdes" do pai de Berna. Quase esqueciam também a situação em que a aldeia se encontrava, que, absolutamente, não era das melhores.
Uma tribo de gauleses desgarrados de sua nação, e que tinha vindo morar perto da Aldeia, estava mostrando hostilidade. Tinham colocado fogo na seara dos godos - por sorte só restava lá trigo para mais um dia de colheita. Agora ambas as tribos preparavam-se para a guerra. Tudo começara com um bardo que rodava por aquelas áreas e contava, em uma das suas músicas, uma história de uma vitória dos godos sobre os gauleses. Estes, virando zombaria entre os vizinhos, queriam se vingar. A verdade mesmo é que eles cobiçavam as terras dos godos.
Os homens da aldeia estavam em treinamento e conselho intensivos. A casa de Heric estava sempre cheia agora. Não atrapalhar os planos dos homens era uma desculpa que Berna arranjava para ir para a praça, conversar. Estava lá, encostada a uma casa, ouvindo Gabrielle contar que Olaf estava em vias de noivar com Gertrude Walaskialf, quando Tristan passou por ali, com os homens que comandava. Havia algum tempo que eles não se viam. Ele se aproximou de onde as moças estavam.
— Boa tarde — disse. Elas responderam. Ficaram um pouco em silêncio. Jolie se levantou em seguida.
— Preciso ir que logo Olaf está em casa e vai querer o jantar pronto — disse, num tom entre magoado e irritado. — Tchau.
— Tchau.
Tristan ocupou o lugar dela.
— Se o Tímido largá-la, Geri Tanfana vai querer casar com ela — disse.
— Ah, é? — fez Berna, num tom de "E é só você quem sabe disso..." — Vai treinar de novo amanhã? — ela perguntou.
— Provavelmente. Por quê? — ele retrucou. Ela desviou o olhar.
— Queria convidá-lo para ir a um encontro dos cristãos.
— Um encontro dos cristãos? — o tom dele não era irônico ou desdenhoso como ela temia, mas até respeitoso, e ela o encarou novamente. — Onde? — ele questionou.
— Numa casa pros lados do campo — ela respondeu. — Acontece semanalmente. Quando você puder... quiser ir... é só falar comigo — houve novo silêncio. — Vocês estão treinando tanto... — ela comentou, para quebrar o silêncio incômodo — O problema com os gauleses é assim tão sério?
— Na verdade não. Derrotá-los não será difícil.
— Vai haver guerra, então?
— Sim. Aquele dia de colheita que foi queimado nos fará falta no inverno, então eles precisam de uma lição para não fazer de novo.
— Tristan, você gosta de matar? — Berna perguntou, lembrando-se de um comentário que Kyrah fizera um tempo atrás. Ele a encarou.
— Não — respondeu. — Não gosto nem um pouco, mas mato quando é necessário, e reconheço que às vezes é.
— Às vezes quando?
— Às vezes... Quando alguém ataca sua aldeia, ou sua casa... precisamos defender nossas famílias. Ou quando alguém quer impedir que muitas pessoas tenham uma vida digna para aumentar seu conforto pessoal.
— Um grande senhor de escravos, por exemplo?
— Mais ou menos.
— Eu não concordo — ela afirmou.
— Por quê?
— Porque a morte só traz tristeza, então a morte é má, e nada que é mau é necessário — Berna explicou. Tristan sorriu.
— Sua teoria está perfeita, mas na prática é diferente. Eu também acredito na bondade das pessoas, mas... — ele bocejou e se recostou na parede. — Não quero discutir isso agora, Berna, estou cansado. Como estão as coisas aqui na aldeia? O que você tem feito?
— Copiado as Escrituras, tecido, conversado com a Jolie... escutado os resmungos do papai.
— Seu pai continua querendo atrelar você a um monte de músculos com nome e sem cérebro? — ele perguntou, irônico.
— Em linguagem vulgar é isso mesmo — ela disse.
— Por que não escolhe logo um dos seus pretendentes para ele parar de te incomodar? — o tom do rapaz tinha algo de impaciência e despeito.
Berna deu uma gargalhada amarga.
— Que pretendentes? Eu não tenho nenhum; quem tem é o cargo de chefe do meu pai — ela respondeu, bruscamente.
— Então não vai casar nunca? — apesar do tom casual, podia-se perceber alguma ansiedade na forma como Tristan perguntou isso. O mesmo vale para a resposta de Berna:
— Só se alguém for capaz de renunciar ao cargo por mim.
— Não deveria ser difícil — ele murmurou, em tom quase inaudível.
— Ahn? O quê? — ela perguntou, confusa. Tristan corou.
— Ah, eu só disse que não deveria ser difícil. Quero dizer, uma pessoa vale mais que uma posição social idiota — ele atalhou.
— É. Pena que a maioria não pensa assim — ela retrucou, desanimada. — Eu e essa droga de cargo somos inseparáveis e inconciliáveis. Eu jamais poderia gostar de alguém que gostasse dele. Mas quem não gosta dele, como vai querer se associar a alguém que carregue essa porcaria como apêndice de si?
Desta vez, Tristan se manteve prudentemente quieto. Houve mais um silêncio, agora quebrado pelo rapaz.
— Berna — ele chamou. Ela o olhou. Ele hesitou. — Ah... Se você sugerisse uma estratégia de guerra para o seu pai, ele te escutaria?
— Já aconteceu. Por quê?
— Bom, porque ele não escutaria a mim, ainda mais numa guerra contra os gauleses. Ele têm simplesmente me ignorado nos últimos conselhos. Sabe, eu acho que quase todo mundo nessa aldeia me odeia — ele disse isso num tom um pouco surpreso e um pouco chateado por essa constatação momentânea. Berna ergueu as sobrancelhas, espantada com o jeito dele. Não sabia o que dizer para consolá-lo.
— Também não é assim... Eles apenas não te entendem — ela disse, por fim. — Suas ideias são muito radicais. Mas afinal, onde é que você quer chegar com essa ladainha dramática? — ele hesitou um pouco.
— Eu ia pedir que você dissesse ao seu pai para atrair os gauleses para o vale. A gente pode estocar provisões e esconder homens nas cavernas dos morros circundantes. Eles nos seguirão para lá, pensando que somos poucos, e ficarão encurralados — ele terminou a exposição, apressado. — Faz isso pra mim?
— Não sei não, Tristan. Não gosto de guerras — ela disse. — Você também não devia, quase morreu na última — ela levantou.
— Mas já que ela está aí não vamos perdê-la, certo? Eu não quero que os gauleses matem meus amigos e sequestrem minha amigas — disse "o Gaulês". — Precisamos espantá-los daqui. Fala com ele. Você vai falar, não vai?
— Vou ver o que posso fazer — ela resmungou, se afastando.
— Berna!
— Tá, tá, eu falo. Tchau. Bom treinamento.
— Tchau.
Berna não estava muito a fim de sugerir nada para o pai. Ele lhe daria uma bronca enorme, diria que mulher não devia se meter em guerra. E ia falar por duas horas sobre o honroso dever de procriar guerreiros. Ia seguir o conselho, mas a bronca viria, e ela detestava levar bronca. Mas ela acabava sempre fazendo o que Tristan pedia, ainda que de má vontade. Odiava-se por isso, mas não conseguia evitar.
E a guerra veio, quando os gauleses sequestraram Gertrude, a noiva de Olaf. O clã dele se mobilizou, os outros apoiaram, e os guerreiros da aldeia seguiram para o vale, atraindo os gauleses. Ficaram lá por muitos dias. Acabaram vencendo os gauleses, mas não foi assim tão fácil. Heric foi ferido na perna, sentiu a morte de perto. Quando eles voltaram para casa, já havia passado o aniversário de Berna. Heric nunca vira tão urgente a necessidade de um sucessor. Depois de todas as providências relativas à vitória terem sido tomadas, ele chamou os principais do clã Donnerstag para um banquete em sua casa.
Correu o vinho e correu a conversa sobre a batalha. Reviam golpes, lances mais emocionantes, e Heric referiu o ferimento.
— Assim que a gente percebe que está ficando velho. Eu ainda quero deixar essas meninas encaminhadas — ele disse carinhosamente, acariciando o queixo de Una. — Ainda bem que minha Berna já está garantida - ela estivera até então calada, e ergueu os olhos com espanto. Kyrah também fez cara de que não tinha entendido — Por falar nisso — ele se virou para os Donnerstag — é bom marcarmos o casamento logo. Que tal para daqui a duas semanas? — Beowulf franziu as sobrancelhas.
— Mas o senhor não disse que ia ser só depois do aniversário dela? — questionou.
— O aniversário dela foi na semana passada — disse Heric.
— Não... será só daqui a três meses... — Beowulf disse, lentamente.
— De quem você está falando? — disse Heric, impaciente.
— De Kyrah... o senhor a deu em casamento para mim — lembrou o Urso.
Houve um escarcéu. Todos falavam ao mesmo tempo; a voz de Heric sobrepunha-se às outras, irada.
— Mas como? Que ousadia! Ofereço-lhe uma filha e ele quer levar-me a outra!
O pai de Beowulf interveio.
— Deve haver algum mal entendido. Nosso clã pediu-lhe sua filha mais velha, e é com ela que meu filho se casará, isso eu garanto. Ele que ouse se revoltar! — o Donnerstag pai era maior que o filho, só para dar uma ideia.
— Não será dito que os Donnerstag não cumprem a palavra dada — garantiu o tio de Beowulf, furioso. O Urso bufava, controlando-se com dificuldade. Kyrah levantou-se impetuosamente e saiu da sala, mordendo os lábios.
— Então fica para a próxima semana — decidiu Heric, acalmando-se um pouco.
— Para a próxima semana o quê? — disse Berna, com chispas nos olhos. — Se estão achando que eu vou prender minha vida a esse daí — ela indicou Beowulf — está na hora de tirar essa ideia da mente. Com ele eu não me caso nem que o céu caia sobre a minha cabeça — ela gritou. Ondina, a mãe, chorava.
— Mas que menina atrevida! — gritou o pai de Beowulf, vermelho.
— Ponha-se no seu lugar, você é apenas uma mulher! — apoiou o tio.
— Mas deixem que hei de domá-la — Heric berrou.
— Não conte com isso — Berna falou, desdenhosamente.
— Vá para o seu quarto. Só há de sair de lá casada, e com quem eu quiser — o pai determinou. Berna se ergueu e se dirigiu para a porta, altiva. No caminho ele agarrou o braço dela e rosnou, baixinho — E está terminantemente proibida de ver aquele maldito gaulês, está ouvindo?
Berna ignorou-o e trancou-se no quarto, batendo a porta.
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