Epílogo
Eu tive um sonho em que eu consegui tudo o eu que queria.
- Billie Eilish.
14 de Agosto de 2022
Agradeço ao rapaz gentil que me entregou o chocolate quente mais maravilhoso que já provei, e minha mente não deixa de pensar nele, o garoto da Summer Escape que roubou meu coração há alguns anos.
É incrível lembrar de todas as coisas que aconteceram enquanto eu morava aqui, em Toronto. Conheci pessoas incríveis e pessoas que me levaram à beira do precipício — literalmente.
Ainda tenho lembranças daquele dia em que Flynn morreu. Como ficamos devastados, em choque, cheios de traumas. Eu tinha dezessete anos, leal aos amigos, inconsequente. Jacob sempre teve razão ao dizer que adolescentes são idiotas que não ligam para as consequências de seus atos.
Lembro-me que Scarlett foi morar com a avó por estar amedrontada demais sobre o seu futuro. Michelle não suportou a pressão e culpa pelo que aconteceu, indo embora também. Lisa foi transferida para um hospital psiquiátrico, já que seu advogado conseguiu provar que a garota tinha problemas psicológicos muito além do alimentar. Zayn foi inocentado e se mudou para o Colorado, não mantendo contato com ninguém daqui e construindo uma nova vida.
Tom, eu e Jacob continuamos na cidade. Todos saímos do Red, que teve suas portas fechadas depois de seis meses — os Leblanc 's processaram e levaram a causa —. Hoje em dia o que era o colégio se tornou um centro de reabilitação, uma grande ironia.
Terminei o ensino médio em uma escola comum junto com outros brasileiros intercambistas e foi incrível. As pessoas me entendiam, gostavam das mesmas coisas que eu e eram receptivas. Conheci outros jovens de diversos países também, claro, e fiquei me perguntando se as coisas teriam sido assim desde o início. Obviamente ainda havia pessoas olhando torto e praticando diversos preconceitos, incluindo racismo e xenofobia, mas foi mais suportável por não me sentir sozinha.
Tom terminou o ensino médio em um colégio caro parecido com o Red devido à pressão dos pais, mas assim que saiu foi aceito em Oxford e se mudou para a Inglaterra — o que fez com que assaltássemos a adega do seu velho e comemorássemos até não aguentar mais —. Ainda mantemos contato hoje em dia, mas infelizmente fomos para lugares diferentes e isso quebrou um pouco nosso vínculo.
Nunca tocamos no assunto daquela tarde no penhasco, nem em como Tom se sentia com tudo aquilo, ou qualquer um de nós. É como se ali, diante daquele cenário caótico, tivéssemos feito um acordo: que ninguém jamais falaria no que aconteceu.
Tom conseguiu provar que Flynn era o culpado de forma anônima e semanas depois um pescador encontrou seu corpo. A bala em sua cabeça levantou suspeitas de que alguém o tivesse matado, mas as autoridades decidiram acreditar que o garoto havia descoberto que tinham provas contra ele e decidiu se suicidar.
Os únicos que chegaram a questionar foram o senhor e senhora Leblanc, devastados pela perda dos seus dois únicos filhos em tão pouco tempo. Soube que a senhora Leblanc sofreu um infarto no ano passado e não resistiu.
Jacob foi o mais afetado por tudo. Sua mãe morreu pouco depois da formatura dele e ele não aguentou, indo para o Texas. As coisas nunca foram fáceis para o garoto e não havia restado ninguém da sua família, apenas parentes distantes.
Ele vendeu a mansão e foi embora, mudou para a casa de campo que tinha e disse que viveria lá com a poupança deixada pelos pais até se curar.
Nós até tentamos manter contato, mas relacionamentos a distância nunca dão certo e o nosso terminou. Ele disse que precisava esfriar a cabeça, que queria se libertar e se curar primeiro, para depois unir a vida à de outra pessoa.
Lembro-me de suas palavras como se fossem proferidas agora pouco.
"Eu te amo, Ana, e é por esse motivo que preciso ir embora e deixar você ir também. Não vou fazer bem para você, nós dois sabemos disso."
Fiquei devastada com essa despedida, mas já imaginava que aconteceria uma hora ou outra. Terminamos o último ano na mesma escola, nos formamos juntos, mas desde aquele dia em que Flynn morreu, uma parte de Jacob se apagou.
Jamais o culpei por qualquer coisa que aconteceu, muito pelo contrário, fiquei ao seu lado até o último momento de resistência.
— Não brinca! — Ouço alguém exclamar e desvio o olhar da minha bebida.
Arregalo os olhos, surpresa demais para dizer qualquer coisa. Lisa está parada bem na minha frente, com um sorriso no rosto e uma expressão surpresa. Seus sedosos cabelos loiros agora estão curtíssimos, o famoso corte joãozinho, e seus olhos azuis carregam um brilho diferente... vivo. Não deixo de notar que ela também ganhou alguns quilos a mais, com o corpo não tão magro quanto no ensino médio.
Levanto-me, ainda sem acreditar que é ela mesmo, e caminho em sua direção, dando-lhe um abraço apertado que logo é retribuído.
— Minha nossa! Faz quanto tempo? Quatro anos?
Sorrio, voltando para o meu lugar e ela me acompanha, sentando-se na cadeira de frente para a minha.
— Três — respondo, sorrindo. — E você está ótima!
— Ah! Obrigada. É estranho dizer isso, mas, todos aqueles anos no hospital psiquiátrico me fizeram muito bem. Tive excelentes médicos e minha melhora foi bem evidente, há alguns meses, meu advogado conseguiu que eu fosse liberta para passar por um período de teste em como me sairia convivendo entre a sociedade outra vez, acredita?
Maneio com a cabeça, extremamente feliz por ela finalmente estar conseguindo um pouco de normalidade depois de tanta turbulência.
— E como você está se saindo?
— Bem melhor do que eu imaginei. Já não fico assustada pensando que vou ver Evangeline ou Flynn por aí, que algo ruim vai acontecer a qualquer momento ou que qualquer resquício de felicidade será sugado. Acredito que estou em paz depois de tanto tempo, McRae — ela explica, sorrindo, mas ainda sendo a mesma de sempre.
— Isso é ótimo! Nosso último ano no ensino médio foi cheio de incertezas mesmo, Evangeline e Flynn trouxeram muito caos e traumas.
— Às vezes me pego pensando se aquilo realmente aconteceu ou foi delírio nosso — ela sussurra, fitando um ponto na mesa e sacudindo a cabeça depois, como se isso espantasse os pensamentos ruins. — E você, está tão chique, faz tempo que não tenho notícias suas.
Bebo mais um pouco do meu chocolate quente, suspirando.
— Me mudei para a Califórnia e curso direito em Stanford, voltei pra visitar meu pai agora que estou de férias — explico e ela sorri.
— Direito? Sempre pensei que você fosse para o lado da escrita, talvez jornalista — ela confessa, confusa.
— Essa era a praia do Tom. Ainda escrevo algumas coisas, mas quis cursar direito para tentar dar mais voz a pessoas como eu. Quando fui aceita nessa universidade soube que algo grande esperava por mim, sabe?
— Sim, sinto a mesma coisa com a música. Agora posso me dedicar unicamente a isso, não que eu seja uma Taylor Swift da vida algum dia, até porque as indústrias musicais não gostam de pessoas com históricos como os meus, mas estou confiante que posso ajudar de alguma forma.
— As coisas estão mudando bastante ultimamente, o importante é não desistir — conforto-a.
Ela sorri e concorda com a cabeça.
— Já foi ver o Jacob? — Ela pergunta e meu coração dá um solavanco.
— Ele não está no Texas?
Ela morde o lábio inferior e nega com a cabeça.
— Faz um tempo que ele voltou pra cá, achei que você soubesse.
Tento me lembrar de quando foi a última vez que conversamos e nada me vem à mente. A última conversa que me recordo foi quando ele me desejou parabéns no meu aniversário que foi há... Quatro meses.
— Eu e Jacob nos distanciamos depois do ensino médio também.
— Sinto muito, não sabia.
— Não sinta, foi até melhor assim. Éramos muito novos, havia muitos traumas, talvez não fosse para dar certo. — Dou de ombros.
Lisa me fita com seu olhar indecifrável e me sinto aliviada por ver que uma parte dela — talvez boa — que conheci, ainda está ali.
— Acho que você deveria vê-lo de qualquer forma. Não para voltar com o relacionamento, é mais para colocar um ponto final nessa história, ou pelo menos tentar — ela sugere e percebo que Lisa sabe mais do que deixa passar.
Com certeza a amizade entre ela e Jacob continuou com o passar dos anos e ele deve ter contado para ela o que aconteceu conosco, a distância que ele colocou entre nós, como eu também fiquei mais... aérea.
Suspiro.
— Vou pensar nisso — garanto e ela sorri.
Lisa se levanta da cadeira, arrumando as sacolas em seu antebraço.
— Foi ótimo rever você, Ana, mas preciso ir agora.
Concordo com a cabeça, levantando-me e dando-lhe um abraço.
— É muito bom ver você bem — conto e ela concorda com a cabeça, aparentemente feliz.
— Vamos marcar algo qualquer dia desses, ainda uso o mesmo número.
— Claro! Mando mensagem e vemos direitinho.
Lisa concorda e sorri, saindo da cafeteria. Respiro fundo. Esse lugar me traz várias lembranças.
Pago a conta e saio pelas portas de vidro, não deixando de notar a mudança dos estabelecimentos nesse tempo que passei fora.
Um pensamento rápido atravessa minha mente e meu estômago se agita com a possibilidade de voltar lá. Depois de tantos anos, será que o penhasco da Summer Escape foi interditado? Ninguém comentava muito, mas era uma área de risco pouco conhecida pelos habitantes de Toronto, especialmente por essas redondezas.
Como se algo estivesse me empurrando, decido fazer a caminhada até lá, já que a cafeteria fica perto. Não consigo impedir as diversas memórias desbloqueadas com esse percurso: todas às vezes em que vim aqui com Jacob, ou sozinha para pensar; o acontecimento com Scarlett; a morte de Flynn. Tudo começou nesse penhasco, afinal, conheci Jacob neste lugar e tenho certeza que me apaixonei por ele aqui também.
Uma parte do meu coração se enche de alívio ao ver que nada mudou, com exceção da grama que cresceu e da placa alertando a área de risco.
Atravesso a placa de "perigo" e encaro o horizonte, quase chorando quando uma rajada de vento me rodeia, trazendo consigo o aroma de lar. Fecho os olhos e me deixo navegar por todas as lembranças, boas e ruins. Depois volto a abri-los, encarando o sol brilhando fortemente e iluminando uma parte do oceano.
O céu tem a coloração de um azul-claro, com partes alaranjadas graças ao sol e as nuvens enfeitam ainda mais o cenário. As ondas estão velozes e fortes como sempre, mas parecem leves, o que é um bom sinal. Sua coloração não é mais cinzenta como fica no inverno, agora que já voltou a refletir o céu de verão.
Ouço passos e meu coração acelera, assim como aconteceu na primeira vez em que soube de sua presença. Não preciso olhar para trás para saber de quem se trata.
— Não vai tentar me ferir com a sua caneta dessa vez?
A voz rouca se mistura ao som das ondas batendo à margem do penhasco, fazendo coisas estranhas com o meu estômago.
— Acabei esquecendo ela em algum lugar, mas tenho uma chave, deve servir — entro na brincadeira e ele sorri.
Jacob continua exatamente como me lembrava, exceto pela sombra de uma barba em seu rosto. Os olhos ainda são tão azuis que me deixam hipnotizados, os cabelos dourados que refletem a luz do sol e algumas tatuagens cheias de significado para um garoto de dezoito anos.
— Que pena. Também esqueci meus fones de ouvidos para ouvir Beatles, vamos ter que improvisar.
Nós dois gargalhamos e o som faz cócegas em meu estômago. Ele se aproxima de mim, analisando-me da mesma forma que eu estava fazendo com ele há alguns minutos e suspiro.
— Senti sua falta, Ana.
A forma como ele pronuncia meu nome ainda mexe comigo e no mesmo momento percebo que, seja lá o que tivemos, nunca cheguei perto de superar.
— Eu também.
E sem me segurar por nem mais um segundo, uno nossos lábios em um beijo repleto de saudades. Jacob não hesita em momento algum, pelo contrário, puxa-me para mais perto de seu corpo, colocando a mão em minha nuca e assumindo o controle.
Quando nossas línguas se acariciam sinto o gosto de casa, percebo que meu lugar sempre foi ao lado dele por mais maluco que as coisas fossem. Jacob nunca saiu da minha mente e espero que jamais saia.
Afastamos um pouco nossos rostos e ficamos em silêncio, apenas encarando um ao outro, nesse lugar marcado por momentos maravilhosos e ruins também.
Sei que temos muito o que conversar e que não será fácil colocar os acontecimentos em dia, mas, acredito que possa dar certo dessa vez.
E de qualquer forma, Flynn estava certo. Na vida real não há finais cem por cento felizes, apenas a constante luta pela sobrevivência e estabilidade mental.
Mas enquanto viver, continuarei lutando por um mundo mais justo e pela minha própria dose de felicidade.
Talvez garotas discriminadas possam ignorar os problemas que as cercam, afinal, nem que seja por alguns minutos.
FIM
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