16.2
Quando você olha para si mesmo, você é um homem ou um monstro?
- Sam Tinnesz
O reflexo das sirenes em minha visão periférica ainda estão bem recentes em minha mente. Os murmurinhos. As suposições. E então... as imagens que vi quando corri em busca de Ana ao descobrir que dois assassinatos aconteceram nesta noite.
Ainda posso sentir o suor se acumulando em minha testa, as mãos frias, o coração tão acelerado e a mesma sensação que senti quando eles morreram. Ao parar em frente ao banheiro feminino e sentir meus sapatos pisando em algo molhado minha circulação se esvaiu, especialmente ao olhar para baixo e constatar a água com sangue diluído.
Quando entrei no banheiro e vi aquela cena, tudo desmoronou tão depressa que ainda me assusta. O vestido de Ana manchado de sangue, a arma em suas mãos também ensanguentadas, ela olhando fixamente para o corpo no chão. Ao seu lado estava Lisa, com as vestes ainda piores e sangue respingado em seu rosto, também focando na figura do chão.
Ao olhar para baixo e encontrar o cadáver de Evangeline com sua garganta cortada precisei me beliscar para ter certeza de que não estava sonhando. Precisava acordar daquele pesadelo e não sabia o que pensar. Ainda posso sentir o toque gélido de Ana em meu braço, garantindo que poderia explicar a situação, que não era o que eu estava pensando.
A questão era: o que eu estava pensando? Tudo sumiu, os pensamentos se esvaíram e eu só queria sumir.
Evangeline era, sem dúvidas, a pior pessoa que já conheci, mas seu fim deveria ter sido na cadeia e não de uma forma tão... surreal.
Depois que saí daquele lugar e retornei à quadra, os policiais fardados passaram por mim e em questão de minutos levaram as duas jovens algemadas. Depois disso, tudo desandou.
— Senhor Campbell!
Minha mente volta para essa sala de interrogatório e o detetive sentado à mesa em minha frente. Olho o copo com água na minha mão e bebo um gole.
— Compreendo que esteja em choque dado os últimos acontecimentos, mas precisamos completar seu depoimento.
Concordo com a cabeça, sem saber o que dizer.
— Acredita que Ana McRae e Lisa Moore sejam as assassinas da vítima?
— Não — respondo, firme.
Inúmeras vezes presente nessa mesma cadeira me ensinaram uma coisa: mesmo que tenha dúvida de seu depoimento, jamais demonstre isso.
— Mesmo tendo visto as duas em situação extremamente incriminadora?
— Conheci Evangeline o suficiente para acreditar que ela seria capaz de armar a própria morte.
— Está afirmando que a senhorita Leblanc arquitetou a própria morte para acusar Lisa e Ana?
— Estou afirmando que Evangeline Leblanc tinha sérios problemas mentais, não que eu soubesse de algum diagnóstico médico, mas a família deve ter mais informações do que eu — argumento, batendo a perna no chão freneticamente.
— Sobre o desaparecimento de Tom Fields, o que sabe sobre isso?
— Tudo o que sei é que Tom estava investigando o possível envolvimento de Evangeline nos assassinatos que aconteceram. Ele deve ter descoberto algo e ela deve ter o matado, depois sumido com o corpo.
Os dois policiais trocam olhares com o detetive, que fecha a câmera onde gravou tudo o que falei. Ele se levanta e eu faço o mesmo.
— Terminamos por aqui, mas peço que não vá embora ainda.
Concordo com a cabeça, saindo da sala o mais rápido que consigo e vendo Zayn passar por mim. Com certeza o próximo interrogado. Antes que ele entre na sala que acabei de sair, seguro em seu braço.
— Se você sabe de algo, acho melhor contar antes que a verdade apareça.
Ele abaixa a cabeça e segue sala a dentro. Sento-me em uma das cadeiras, tentando entender como tudo chegou a esse nível e vejo Flynn encolhido perto do bebedouro. Decido fazer companhia para ele, que está completamente perdido, o que não era para menos já que perdeu a irmã e o garoto que gostava no mesmo dia.
Sento-me no chão ao seu lado, sem me importar com a sujeira e ele ergue a cabeça, que estava enterrada nos braços.
— Sinto muito pelas suas perdas.
— Sente mesmo? — Ele questiona, com desdém.
Franzo a testa, respirando fundo.
— Você e toda aquela escola odiavam a minha irmã. Sei muito bem que ela não era nenhuma santa, mas não merecia morrer daquela forma.
— Olha, cara, eu sei o que você está sentindo — murmuro, suspirando. — Perdi meu pai e meu irmão no mesmo dia. Meu pai era um desgraçado de merda e meu irmão um homem bom. Mesmo que meu pai tenha feito o que fez, senti o impacto de sua perda. O que quero que você entenda é que a culpa não é nossa. Não escolhemos nossa família e nem somos os responsáveis pelas decisões de quem amamos, mas infelizmente somos os mais afetados pelas suas consequências.
Flynn balança a cabeça positivamente, com o rosto molhado e eu o puxo para um abraço, que aceita de bom grado. Ele é um bom garoto e não deveria estar passando por tudo isso, na verdade, ninguém deveria passar por isso sendo tão jovem.
— Eu só queria que tudo tivesse sido diferente. — Ele soluça.
— Eu também...
A verdade é que nada na vida é fácil e as coisas que vem fácil, também vão fácil. Vivendo um dia de cada vez, ainda me pergunto qual é o propósito de tudo isso. Por que somos atirados nesta merda de mundo sem nenhum manual de instruções? Sem avisos do que nos aguarda?
Vejo Ana saindo da sala de interrogatório massageando os pulsos que estavam algemados e me levanto, caminhando ao seu encontro. Quando ela me vê, corre para me abraçar aliviada e eu retribuo seu abraço, apertando-a.
O fato é que mesmo que me doa, mesmo que ela tenha matado Evangeline, não consigo a odiar ou sentir repulsa por ela.
— Lisa assumiu toda a culpa e a versão que contou para o delegado foi assustadora.
Seus olhos estão cheios de pânico e o coração tão acelerado. Apenas balanço a cabeça, ainda incrédulo.
— Você foi liberada?
— Por enquanto sim. Eles vão averiguar direito o caso, mas ainda sou suspeita.
Balanço a cabeça em concordância e então tudo parece estar em câmera lenta. Vejo Lisa algemada, ainda com o vestido manchado do baile, sendo guiada para fora da delegacia. Em seguida é a vez de Zayn, também algemado.
Saio da delegacia com Ana e vemos o exato momento em que os dois entram em uma viatura.
— Eles serão levados para um presídio até o julgamento — alguém diz.
Que merda está acontecendo?
Balanço a cabeça, precisando de um cigarro para terminar esse dia desastroso.
Os policiais ligam a sirene e por um momento minha mente me leva de volta até aquele fatídico dia:
08 de Outubro de 2017
Ação de graças
Estaciono em frente a minha casa, ansioso para contar para Chris que consegui. Meu primeiro ano do ensino médio está sendo um sucesso, diferente do que eu achava. Ele estava certo, mas é do meu irmão que estamos falando, ele sempre está certo, menos quando me diz que meus amigos não prestam. Qual foi, ele nem deu uma chance para conhecê-los.
Desligo o motor e saio do carro, travando o alarme. Passo pela enorme sala, estranhando não sentir o cheiro do nosso famoso jantar de ação de graças. Minha mãe sempre amou cozinhar nessas datas, um dos motivos para dar folga a todos os funcionários.
Ouço um barulho de choro, mas não qualquer choro, um desesperado. Com o coração acelerado esperando o pior, caminho a passos lentos até o escritório de onde o som está vindo.
— Chris? — Pergunto, engolindo em seco.
A última vez que a casa estava tão quieta foi quando meu pai deu uma surra em Christian por dizer que jamais traria uma namorada em casa, porque não gostava desse gênero. Aquele dia foi o pior da minha vida, ajudá-lo com as feridas, com o psicológico abalado, aquilo o destruiu, mas ele nunca deixou transparecer.
— Christian? — Grito e abro as portas do escritório.
Arregalo os olhos, com o peito doendo e o corpo paralisado. Sangue. Há sangue por toda a parte. O corpo do meu irmão mais velho está estirado no chão e sua cabeça no colo da nossa mãe, que chora compulsivamente, em estado de choque.
— O quê...
Ela ergue os olhos até mim e a dor que vejo refletida nas íris azuis dela rasgam meu peito. Chris não pode ter tirado a própria vida, não pode...
— Seu pai... — ela soluça, fazendo os ombros chacoalharem.
— Meu pai fez isso? — consigo perguntar e ela confirma com a cabeça.
Sinto meu corpo começar a tremer de ódio, pura raiva, uma fúria que nunca senti em toda a minha vida e começo a balançar a cabeça em negativa. Ele não pode ter feito isso. Chris e ele tinham uma relação conturbada, mas ele não pode...
Engulo em seco, com as mãos trêmulas e as bochechas molhadas. Pego meu celular, colocando as mãos na cabeça e discando o número da ambulância e a acionando o mais rápido que posso.
Decidido a confrontar o monstro que chamo de pai, pergunto:
— Onde ele está?
— No quarto.
Antes de ir checo a pulsação do meu irmão, que está fraca, mas ainda existe. Seu rosto está quase irreconhecível de tanto que foi espancado. Como alguém pode fazer isso com o próprio filho?!
Corro escada a cima, com a cabeça girando em pensamentos.
— Pai! — Grito, com a voz tremendo de ódio.
Abro a porta do quarto dos meus pais, parando ao ver a segunda cena mais terrível da minha vida. Seu corpo envolto na própria poça de sangue, a arma em cima da cama e um papel com sua caligrafia.
Com as mãos trêmulas pego o papel, que contém uma única frase responsável por destruir a minha vida:
"Sinto muito, mas não conseguiria viver com a culpa."
- J.F Campbell.
Ele não fez isso! Esse homem não fez isso!
Descontrolando-me, pego tudo quebrável que vejo pela frente, jogando contra a parede e gritando como se não houvesse amanhã. Grito com o cadáver no chão, ajoelho-me e por fim me permito chorar.
O som das sirenes, a polícia invadindo a minha casa, entrando no quarto, afastando-me do meu genitor e me perguntando o que aconteceu são as últimas coisas as quais me recordo com coerência.
A seguir foram apenas perguntas, penhasco da Summer Escape, depressão da minha mãe, enterro e todas as merdas que aconteceram.
Tragédias demais para a cabeça de um garoto de dezessete anos.
17 de janeiro de 2019
Delegacia de polícia de Toronto
— Jacob!
Encaro Ana, que está com uma expressão preocupada.
— Oi.
— Você me pareceu distante, achei que nem estivesse aqui.
Confirmo com a cabeça.
— E não estava. Estava no dia em que minha família se destruiu. Acho que toda essa história de delegacia, mortes, a cena que vi, tudo mexeu com a minha cabeça.
— Sinto muito — ela sussurra.
— Shh! Tudo bem. Depois conversamos, ok?
Ana ia revidar, tenho certeza, mas seu pai a chamando a deteve. Olho por cima de seu ombro e beijo sua testa, saindo de perto da brasileira e indo em direção ao meu carro. Quebrei uma promessa nesta noite, o que não acontece com frequência.
Pego a estrada principal, seguindo até o penhasco da Summer Escape, o meu refúgio, onde consigo pensar e refletir. Abro os vidros, deixando com que o ar congelante entre no carro e me faça estremecer. A única forma de saber que estou vivo.
Estaciono no lugar de sempre, retirando o cinto e descendo do veículo, seguindo até a beira onde tudo começou. A luz da lua ilumina um pouco o caminho, assim como um poste aqui perto, mas não posso observar a água, só a ouvir. Tão atraente, chamativa, tentadora.
Dou mais um passo, abrindo os braços, deixando o frio quase me congelar. Dessa vez reconheço que Chris realmente sempre esteve certo. Nunca haverá alguém para nos salvar, porque no fim de tudo somos apenas nós mesmos.
Deixo que o clima leve todas as minhas aflições por um momento, todas as minhas preocupações e respiro fundo.
Olhando para a vasta imensidão escura, mesclando-se ao céu tão escuro quanto, percebo que não é a primeira vez que luto contra a vontade de me jogar daqui.
Seria a solução para todos os problemas que me cercam.
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