01 | O garoto da Summer Escape
Aí vem o sol e eu digo: "está tudo bem."
- The Beatles
3 meses antes...
O cheiro da maresia invade as minhas narinas, dando-me a oportunidade de sentir esse aroma tão agradável. A brisa dessa tarde de outono sopra com voracidade os meus cabelos castanhos e encaracolados, como em uma dança silenciosa.
Sento-me à beira do penhasco, um pouco afastada da margem para não correr riscos de cair. Passo as mãos pela grama úmida e sinto o seu cheiro. Eu amo este lugar que, com toda certeza, é o melhor lugar do Canadá.
Seguro o meu caderno de anotações contra o peito e fecho os olhos, buscando a inspiração que eu preciso para terminar este capítulo. Sem me dar conta, começo a viajar pelos meus próprios pensamentos.
Estamos no final de setembro, a época em que os governos canadenses escolheram para iniciar as aulas, ou melhor, o tormento dos jovens estudantes. Principalmente de imigrantes, como eu. Sei que olhares julgadores aumentarão, que as pessoas se afastando com repulsa serão mais comuns do que eu gostaria e que me encaixar será quase impossível.
Ser negra, ter quase 17 anos e morar em um país que não é o seu, não é fácil. Digamos que é uma tarefa complexa e que requer muita autoconfiança, — o que eu raramente tenho — principalmente se o seu cabelo for volumoso e considerado afro. Alguns acham lindo, outros acham ridículo, e outros dizem que é estranho. Já tiveram até pessoas que achavam desrespeitoso.
Na maioria das vezes me sinto deslocada, como se eu fosse a aberração que todos dizem que eu sou. Isso não é culpa minha, eu sei, mas às vezes as pessoas fazem parecer que sim, que é minha culpa. Também não acho justo me culpar quando o verdadeiro culpado dessa discriminação toda são os padrões estabelecidos pela sociedade.
Padrões esses que afirmam que a mulher só é bonita se tiver um corpo belo e curvilíneo, cabelos lambidos e enormes. E claro, o padrão que eu mais odeio, o padrão que parece ser o principal: ser branca. Ser branca parece ser um padrão seguido em todos os lugares do mundo. As pessoas não discriminam os brancos, bom, a não ser que eles tenham alguma mancha na pele ou deficiência, mas não pela cor.
O pior dessa história é que isso não é de hoje, isso é desde sempre. O ser humano sempre gostou de diminuir qualquer um diferente dos padrões. Em pensar que muitas pessoas acharam que com o passar dos séculos tudo seria diferente...
Nunca foi fácil me orgulhar da minha origem, da minha cor, dos meus antepassados paternos, mas o meu pai sempre me incentiva a ter orgulho e determinação como a minha bisavó teve. Ela era indígena e negra, sofrendo preconceitos e discriminações desde que era um bebê, pelos seus antepassados terem sido escravos na época da escravidão.
Um acontecimento trágico, mas que é um pouco cômico de se pensar, é que os antepassados da minha mãe escravizaram os antepassados do meu pai. É estranho pensar que tenho o sangue dos dois lados desses fatos históricos correndo por entre minhas veias.
De qualquer forma, no Rio era mais fácil de se viver, já aqui em Toronto recebo mais olhares julgadores, como se eu fosse um pedaço de carne podre, do que olhares comuns. E os olhares doem no fundo da minha alma.
Além dos olhares, as ações também machucam, como no dia em que eu estava na fila de um supermercado no centro e uma mãe afastou a filha pequena, que achou meu cabelo interessante, de perto de mim. Ouvi ela murmurando algo como eu ser diferente delas e aquilo me deixou mal por semanas.
Abro os olhos e tudo o que vejo é uma vasta imensidão azul. As ondas vêm com velocidade até a margem, batendo na base do penhasco e voltando, como se nada tivesse acontecido. É assim que eu me sinto, como uma onda, que vai com intensidade até um certo ponto, mas que de qualquer forma retorna para onde surgiu.
Seguro firmemente na caneta, decidida a dar um final para a minha protagonista. Um final que ninguém lerá, um final que me parece o certo. Um final feliz. Já que na vida real não existem muitos finais felizes, nos livros todos deveriam ser. Pelo menos pessoas imaginárias deveriam ter a chance de serem felizes.
Ouço passos e pego a minha caneta, preparada para o caso de ser algum maluco. Olho para trás, assustada, levantando a caneta como se fosse uma faca e colocando o meu olhar intimidador. Vejo um garoto de cabelos castanhos, quase dourados, olhos de um incrível azul e coberto por tatuagens. Ele está me encarando com curiosidade e os seus olhos brilham com algo como... diversão?
Pelo menos não é nojo.
— Não sei se você conseguiria matar alguém com uma caneta, mas foi uma boa reação — o garoto elogia e eu olho para a caneta, revirando os olhos.
Endireito-me e volto a me concentrar nas palavras, ignorando-o. Se teve uma coisa que eu aprendi é que quando as pessoas são ignoradas, elas vão embora.
Para a minha surpresa, ele se senta um pouco afastado de mim, mas perto o bastante para que eu possa sentir o seu aroma amadeirado se misturando com a maresia. Suspiro e me lembro do Tomaz, um dos meus personagens, que tem quase o mesmo cheiro do garoto misterioso.
Sinto a minha pele queimar com o seu olhar e decido encará-lo, não tendo outra alternativa. Quando os nossos olhares se cruzam, sinto algo diferente crescer em meu interior, mas assim como da primeira vez, ignoro.
Observo a tatuagem em forma de cruz no seu pescoço, também noto que há alguns números tatuados em seus dedos, percebendo que ele não tem nenhuma tatuagem colorida, não até onde posso ver. Depois, reparo em seus fones brancos e ouço batidas. Prestando mais atenção, descobri que ele está ouvindo "Here Comes The Sun" dos Beatles.
— Você gosta dos Beatles? — sua voz rouca pergunta.
Olho para trás, certificando-me de que ele está mesmo falando comigo e a sua risada preenche o ambiente, reverberando por todo o meu corpo, assim como a sua voz fez há alguns segundos.
— Sim. A day in the life é a melhor.
Sei que eu não deveria estar falando com um estranho, mas ainda não notei nada que pareça ser ameaçador nele. E caso ele tente alguma coisa, as inúmeras horas que eu gastei no jiu-jitsu servirão para alguma coisa.
— Acho que eles não têm músicas ruins.
— Verdade — concordo e volto a prestar atenção no caderno, que repousa em meu colo.
— Você é daqui, do Canadá?
— Não, sou do Brasil — respondo, sem parar de escrever.
— Percebi o sotaque — ele se explica e percebo que está sendo cuidadoso com as palavras.
Quando o garoto tatuado percebe que eu não vou falar mais nada, fica calado e começa a batucar em sua perna, cantarolando um trecho e me atrapalhando. Respiro fundo e marco o ponto final com mais força do que o necessário, quase rasgando a folha.
— Cuidado! Suas anotações parecem ser preciosas — ele debocha, com o seu sorriso irritante, que deixaria qualquer garota caidinha por ele. Que bom que eu não sou uma dessas malucas.
— Você está me atrapalhando — admito, um pouco alterada. Ele me encara boquiaberto e com os olhos brilhantes, deixando-me confusa.
— Nossa!
Franzo a testa e continuo encarando aqueles olhos tão azuis quanto as ondas.
— Nossa?
— É. Nossa! Nenhuma garota falaria assim comigo, a maioria normalmente se joga aos meus pés — ele se gaba, parecendo não se orgulhar da sua afirmação, mas sim estar entediado.
— Então bad boys existem? — pergunto, tentando controlar a risada, que está presa em minha garganta. Ele franze a testa e eu explico: — Como os dos livros, sabe? Isolados, não namoram, não tem amigos, no máximo um, e no fim de tudo se fazem de durões, quando na verdade são os mais fofos.
— Você acertou na maioria, então acho que eu não sou 100% bad boy, lamento decepcionar você — ele começa e dá uma risada fraca, olhando para o chão e umedecendo os lábios. Em seguida volta a me encarar. — Tenho um grupo de amigos sim, sou capitão do time de hóquei, ou era, e não sou nem um pouco fofo.
— Então você é metade bad boy e metade playboy — sugiro, não aguentando e explodindo em uma gargalhada. Isso é muito ridículo.
— Gosto mais de bad boy, soa mais eu — ele brinca e eu rio ainda mais.
Balanço a cabeça de um lado para o outro e volto a olhar para o meu caderno, ainda sem acreditar em suas palavras.
— Você não pode estar falando sério
— Acredite se quiser. Eu estou — ele afirma, esticando as pernas, com um sorriso brincalhão.
— Então eu devo ficar bem longe de garotos como você, não é?
— Depois que me conhece, você não consegue tirar o meu sorriso da cabeça, garota — ele conta, confiante. Dou uma risada fraca e ele ri também.
— Você me lembra muito os garotos dos livros que eu leio — falo sem pensar e ele franze a testa.
— Você lê muito, não é?
— Mais do que você pode imaginar — respondo, levantando-me e tirando a grama da calça com a mão disponível. O garoto me encara confuso e eu sorrio.
— Você já vai? — ele pergunta, levantando-se também.
— Amanhã é o meu primeiro dia em uma escola canadense, bad boy — explico e ele sorri com o apelido.
— Olha só, está até me apelidando. Eu te disse que ninguém resiste ao meu charme — ele debocha brincalhão e eu reviro os olhos rindo.
— Você tem uma autoestima impressionante — elogio com sarcasmo e ele ri.
— O bad boy aqui tem nome, sabia? — ele pergunta e eu cruzo os braços, interessada.
— Ah, que interessante — respondo, fingindo um falso bocejo e ele sorri.
— Jacob — ele revela e eu me lembro do Jacob de Crepúsculo, automaticamente começando a rir. — Qual é a graça, escritora?
— Nenhuma — minto e começo a andar, ainda rindo.
— Não vai me dizer o seu nome? — ele grita, parado próximo à beira do penhasco.
— Acho que não — grito de volta e vejo o seu sorriso.
Viro-me de costas para o garoto da Summer Escape e volto a andar. Preciso voltar para casa e me preparar mentalmente para o primeiro dia no colégio de riquinhos.
ᚔᚔ
Notas da autora:
O primeiro capítulo de U.G.D está na mão, como o prometido. Gostaram de conhecer o Jacob? O que acharam dele?
Obs: No próximo capítulo vocês entenderão porque o sobrenome da Ana é McRae se ela é do Brasil. Inclusive, para quem tem dúvida na pronuncia, se pronuncia "Micrei". (com uma voz bem enjoada para sair certo ahaha)
Não esqueçam da estrelinhaa.
Bjs, até segundaa 🖤
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