Parte I
Minha história começa com um belo banho de lama, em uma terça feira chuvosa. Irritada e completamente gosmenta, encontrei abrigo debaixo de uma marquise inacabada, exibindo pregos e vigas que ameaçavam cair na minha cabeça a qualquer momento. Suspirei, sendo rápida ao alcançar o celular e digitar algumas vezes para que as letras aparecessem. Abrindo o aplicativo da Uber, reprimi um xingamento ao olhar o valor da corrida, exorbitantemente alto.
— Mercenários.. — Praguejei, fazendo a técnica de abrir e fechar o aplicativo para que o preço baixasse. Seja lá quem estivesse do outro lado, estava irredutível.
Ao final de 20 minutos, cedi. Eu não estava nem um pouco afim de arriscar a minha cabeça debaixo daquela marquise, tampouco ficar sozinha naquela rua deserta. Como sempre, eu não precisaria estar contando - e chorando - pelos trocados da passagem caso a empresa de trens fizesse a sua parte. Depender daquilo era imensamente prejudicial à minha saúde mental, mas apesar de sempre desejar nunca mais depender do transporte, no dia seguinte lá estava eu de novo, me apertando entre braços e pernas para poder passar.
Sob o olhar fuzilante do motorista, cheguei em casa totalmente maltrapilha. Queria até pedir desculpas por entrar daquele estado no carro, mas temi que uma palavra da minha boca valesse a limpeza do veículo. Já estava em desespero e refazendo as contas do mês depois de desembolsar 70 dinheirinhos naquela corrida. Pagar mais do que isso estava fora de questão.
— Certamente eu vou receber uma estrela. — Comentei em tom penoso, me dividindo entre tirar a blusa e a meia molhada. Minha reputação no aplicativo era boa demais para ser manchada por algo do tipo, mas se fosse o caso, não podia negar que ele estava na razão.
Coloquei as roupas sujas na máquina e antes de finalmente tirar aquele cheiro de barro do corpo, alcancei meu celular a fim de ver as mensagens. Havia umas duas do meu chefe, exigindo pontualidade no dia seguinte - será que ele não vê as notícias no jornal da manhã? Ou será que acha que todo mundo consegue trocar de carro anualmente com o salário atual? - e uma do meu irmão. Ignorando a mensagem do meu superior, cliquei na mensagem do meu irmão e imediatamente abri um sorriso em resposta.
“Irmãzona, veja, é neve! Bem branquinha como imaginamos. Um dia, você verá com os seus próprios olhos.”
Continuei com o sorriso bobo no rosto ao ver a face sorridente de Yuri diante de uma pilha de neve. Meu irmão mais novo, que para mim ainda era um bebê, iniciou os seus estudos fora do país no início do ano. Nem preciso dizer que chorei copiosamente ao levá-lo para o aeroporto.
Ter Yuri longe era o equivalente a ter perdido um membro do meu corpo. Devido ao falecimento precoce de nossa mãe, vivíamos grudados, confiando nossos segredos e desejos um para o outro. Era difícil explicar para uma criança de 6 anos que a nossa mãe não ia mais voltar, então, para acalmar a dor, eu o distraía com brincadeiras e histórias, até ele dormir.
Reagi com um emoji de coração e respondi escrevendo que seria ótimo ir visitá-lo, mas bem antes do próximo Natal, porque estava morrendo de saudades. Deixando o celular em cima da mesinha, levei os dedos até os cabelos salpicados de lama, desistindo de fazer um coque após constatar que precisava lavá-lo.
No dia seguinte, acordei sobressaltada com o segundo toque do despertador. Eu não tinha lembrança de ter desligado o primeiro, mas não pensei muito na questão. Nos últimos dias, trabalhei como uma louca, atendendo clientes apressados - e na maioria das vezes, mal educados. - As semanas que antecedem o Natal são uma loucura para quem trabalha em loja de 1,99, a preferida dos habitantes para descontar os problemas pessoais em pobres vendedoras que passam mais de 10 horas se perguntando por quê deviam ir trabalhar no dia seguinte.
Apesar das reclamações, era bom trabalhar na Chiq’Bem. Foi o emprego que me salvou de entregar a casa alugada para a dona, e de vez em quando, posso fofocar com as senhorinhas que vão comprar pano de prato. É claro que isso é muito escondido do Antônio, o dono da loja, que é fácil de irritar apenas por estar com as mãos paradas.
Me arrumei em três segundos e saí em disparada, segurando um pão de forma entre os lábios. Na corrida, me dividi entre cumprimentar os vizinhos do bairro e engolir apressadamente os pedaços de pão, mentalizando aos céus que o ônibus se atrasasse apenas um pouquinho. Faltando poucos metros até o ponto, avistei o veículo e apressei os passos, já sem fôlego. No momento em que ele se preparava para partir e minha esperança já estava esgotada, escutei a voz angelical do fiscal, e o barulho de pneu abruptamente interrompido.
— Ô, piloto! Aguenta aí que a menina tá chegando! — Fazendo sinal de “vem” para mim, o fiscal torcia pela minha chegada como se eu estivesse em uma maratona. Queria chorar de tanta bondade, mas tudo o que fiz foi gritar um rápido “Obrigada!” e entrar como um foguete no ônibus que começava a dar partida. Dentro dele, rostos curiosos observavam a pequena atração matinal que seria esquecida no dia seguinte, quando outra pessoa passasse por essa mesma situação rotineira.
Pluguei meus fones de ouvido, abrindo a playlist composta majoritariamente por músicas da Taylor Swift. Envolvida com a música, olhei através da janela para os lugares que eu conhecia como a palma da minha mão. Apesar de residir há pouco tempo no Engenho de Dentro, a rotina cotidiana me apresentava ao lugar, fazendo dele a minha casa.
Desci do ônibus seguinte finalmente chegando ao meu destino. Apressada, andei pela calçada movimentada do Centro da cidade, encontrando o motivo da minha procura em um grupo reunido. Antes que eu chegasse até ele, as crianças me rodeavam, contentes por me ver.
— Vai se trocar ali atrás. Rápido! — Assenti, sabendo que não era bom irritar a Renata. Coordenadora da ONG em que eu era voluntária, sabia o quanto ela lutava para que nada faltasse para aquelas crianças. Em meio a uma barraca de bugigangas coberta com uma lona envelhecida, troquei atrás dela as roupas do dia a dia para o meu traje especial de Natal. Esqueci de dizer que na Chiq’Bem eu trabalhava com uma adorável roupa de elfa?
Sim, trabalho. O Seu Antônio diz que atrai os clientes, isso por que não é ele que fica fugindo de galanteios nada nada educados. Eu usava a mesma fantasia para atrair doadores para a ONG, com musiquinha de Natal e tudo. Diferente do trabalho, eu me deixava levar pelas risadas das crianças, me fazendo esquecer do calor insuportável que fazia usando aquelas roupas.
Esse seria um dia que teria tudo para ser como os outros, ficaríamos com as faixas apresentando a ONG, eu dançaria e cantaria como sempre, depois recolheríamos tudo e eu voltaria para a minha casa depois de um transtorno na linha férrea. Não que aquilo não aconteceria, mas naquele momento, enquanto eu me concentrava em balançar as mãos como uma paquita da Xuxa, vi um acidente quase acontecer diante dos meus olhos.
O homem que usava terno estava distraído, falando no telefone. A sua frente, uma faixa de pedestres e o sinal perigosamente vermelho. Em sua direção, uma moto que não conseguiria frear a tempo. Atrás dele, uma elfa desesperada, colocando toda velocidade possível nas pernas para salvá-lo.
— V-você está louco!? — Consegui dizer, depois de puxá-lo violentamente para trás, segurando-o na parte inferior do terno. Nem eu sabia de onde tirei tanta força para tal ato, mas quando dei por mim, já estávamos no chão, observados por espectadores que acompanharam a cena. — Você poderia ter morrido!
O homem mal piscava, parecendo atônito com o acontecimento. Longe, a moto que outrora seria a sua ceifadora nos deixava com o barulho distante dos pneus.
— Eu.. Desculpe. Realmente não estava prestando atenção.
Oferecendo a mão para me levantar, o homem de cabelos loiros olhava para mim com uma das sobrancelhas arqueadas quando recusei. Como ele quase é atropelado e só diz isso para se safar?
— É loucura andar com o telefone desse jeito. Você poderia ter se acidentado de uma maneira muito grave, isso se ficasse vivo até chegar no hospital.
— Bom, então que bom que eu tive uma elfa para me salvar da morte. Acho que esse é o meu presente de Natal adiantado.
E ainda tinha a pachorra de zombar da situação, com um sorrisinho presunçoso no rosto. Olhando para o homem de cima a baixo, ele parecia um filhinho de papai. Só esse motivo para explicar a falta de atenção em assuntos sérios.
— Espera! — Disse ele assim que me virei, fazendo menção de voltar para o lugar onde estava. — Eu ainda não sei o seu nome. E nem a agradeci por ter me salvado.
— Não precisa. — Cortei-o, ainda sem virar para trás. — Você já agradece se for mais atencioso da próxima vez.
— Espera, eu realmente quero ajudar. — Continuou ele, acompanhando os meus passos. Voltei para perto do grupo, que acompanhava tudo com olhos igualmente arregalados, com uma expressão emburrada no rosto. Percebendo que o homem não ia embora, voltei a encará-lo com cara de poucos amigos. — Qual é o objetivo da ONG? Tenho interesse em ajudar.
— Se você olhar para baixo, vai ver que está tudo legivelmente explicado na faix-
— Nós acolhemos jovens de 5 a 17 anos em várias atividades como roda de leitura, ballet, capoeira, aulas de teatro, iniciação ao primeiro emprego, informática. Além de apoio psicológico e alimentício para os mais vulneráveis. Agora, estamos arrecadando doações para a Cesta de Natal beneficente, que será distribuída por nós para as famílias em situação de insegurança alimentar. — Olhando para mim de forma aterrorizadora, Renata me cortava, olhando para o homem com um sorriso gentil, totalmente diferente da Renata que a pouco estava tentando me matar com o olhar. Engoli em seco, enchendo as bochechas de ar e a partir daí me intimei a ignorar aquele homem de maxilar perfeitamente alinhado e traços que o assemelhavam a um Deus grego. Não importa o que ele fosse, não o olharia mais.
No entanto, era complicado manter a promessa quando o Deus grego em questão não parava de olhar para mim. Mesmo sorrindo e concordando com as palavras de Renata, o homem me observava com olhos curiosos, quase me fazendo perguntar o que ele tanto olhava. Não perguntei por que, em seguida, Renata me deixava atônita com as suas palavras.
— A gente vai adorar te receber lá qualquer dia desses. Vou te dar esse panfleto com o endereço e quando puder, passa lá.
Assentindo, o homem guardava com cuidado o pedaço de papel em um dos bolsos, usando para a outra para acenar para mim - e para os outros -. Passos depois, o fuzilei com o olhar, voltando-me para Renata.
— Você não devia ter convidado ele. Tá claro que ele só quer ajudar porque se sente obrigado a retribuir de alguma forma. E eu duvido que ele vá.
— Não é como se a gente estivesse em condições de negar ajuda, né? — Me olhando de canto de olho, a mulher corpulenta prosseguiu. — Desde que as minhas crianças estejam com esse sorriso no rosto, é tudo o que importa.
À noite, abri um sorriso entristecido para a pasta com antigos croquis, antigos trabalhos da Faculdade de Moda, que eu tranquei a dois anos atrás. Não me arrependo. Além dos gastos excessivos com materiais, precisei trabalhar o dobro para pagar os cursos de Yuri. E também, eu não acreditava chegar tão longe com os meus modelos. Não conhecia uma única pessoa igual a mim que chegou tão longe, então quando penso nesses desenhos, lembro a mim mesma que é algo muito distante da minha realidade.
No final de semana, ganhava uma folguinha - merecida - na loja, mas isso não significava ficar atoa. Além dos afazeres acumulados da semana, à tarde, me deslocava do Engenho de Dentro para Paciência, e como o nome sugeria, era necessário muita para suportar os problemas diários na linha férrea. Meu passatempo favorito era comentar sobre os problemas sem solução com os outros passageiros, e quando a circulação voltava ao normal, todos nós esquecíamos a cumplicidade, nos degolando como animais primitivos em busca de um espaço que desse para respirar.
☃
— Onde estão as minhas crianças favoritas!? — Sorrindo, me preparei para o abraço de urso de cinco criaturinhas pequenas. Diferente do país onde Yuri estava, o clima atual era de um sol para cada um, e os pequenos, seguindo a tradição carioca, estavam todos com o kit infantil do verão: bermuda, camisa sem manga de algum herói ou princesa e chinelo temático. Além dos dentinhos faltando, o que as tornavam fofas demais.
A ONG Plantando Sementes era o meu refúgio dos dias estressantes no trabalho. Além de voluntária em atividades lúdicas, eu ministrava o curso de Desenho, nas férias escolares. Já tinha perdido as contas de quantos desenhos da “tia Yor” que havia recebido, todos com o delicioso toque infantil de nos fazer parecidas com um boneco de palito, guardados com muito carinho.
No pátio principal, estava brincando de ciranda-cirandinha com um grupo de crianças abaixo de 10 anos de idade, quando ouvi um burburinho vindo do salão receptivo. A voz de Renata tornava-se cada vez mais próxima; vendo-a na frente da porta, notei que ela não estava desacompanhada. E a pessoa ao seu lado imediatamente preencheu as minhas bochechas de vermelho.
— E aqui, é onde as crianças passam o tempo em atividades divertidas, como estão fazendo agora. A responsável pela atividade você já conhece, daquele dia.
Eu não podia acreditar. Aquele homem, outrora todo engomado em um tecido que eu nem sonhava poder pagar, estava diante de mim? Tudo bem que ele estava mais casual para a ocasião, ainda assim, sua camisa social azul-marinho e calças de tom cinza envelhecido ainda pareciam financeiramente muito, muito distantes.
— É, de vista. — Respondeu ele, mantendo o olhar fixo ao meu. — Ainda não tive a honra de saber o nome dela.
Mordi os lábios, envergonhada por poder escutar o que eles diziam e raivosa por estarem falando de mim de modo tão casual. Pedindo um momento aos alunos, caminhei em passos firmes, seguindo na direção deles.
— Yor Briar. — Anunciei, antes que Renata o fizesse. — Não achei que você fosse levar o convite tão a sério. Parece ser um homem tão ocupado..
Apesar do tom inocente, havia no ar uma pequena indireta, notada por Renata e provavelmente, por ele. A mulher de cabelos ruivos me fuzilava com o olhar, enquanto o homem mais alto que nós duas emitia uma risada que não transmitia o mínimo ressentimento por minha resposta atravessada.
— Oh, é um prazer finalmente saber o nome da minha elfa salvadora. — Disse ele com um sorrisinho de lado, que eu juro que queria arrancar do rosto. — Me chamo Loid Forger, a propósito. E não, eu nunca estaria ocupado para visitar um lugar tão adorável como esse.
— Espera. Forger, da Forger's & Co.?
— É. — Ao ser reconhecido, e justamente por mim, que o odiava a segundos atrás, o homem pareceu animado. Eu ainda o odiava, mas agora, sabendo quem ele era. A Forger's & Co. era o meu hiperfoco nos tempos de faculdade, e não havia uma universitária no mundo que não sonhasse em trabalhar naquela loja. A marca era simplesmente incrível, e com a menção do nome, vinha a lembrança dos vários currículos que eu mandei até mesmo para servir cafezinho, todos sem resposta. Li em um site de fofocas que o antigo CEO havia sido substituído pelo jovem promissor..
“Loid Forger, que prometia novos ares de modernidade em um loja que ainda se apegava a tradicionalidade.”
Repeti mentalmente as palavras daquela matéria, enquanto meu olhar incrédulo estava parado no homem à minha frente. Ele era “simplesmente” o diretor executivo da loja que eu tietava, e vê-lo materializado na minha cara é quase como se eu estivesse vendo um fantasma.
— Então, acho que você não tem mesmo tempo para “ficar em um lugar tão adorável como esse.” — Repetindo as suas palavras, adicionei uma leve acidez que novamente fora observado pela coordenadora da ONG. Dessa vez, ignorei. — Precisa cumprir toda a modernidade que prometeu.
— Ah, você diz sobre aquela matéria? — Respondeu ele, cruzando os braços. Com o ato, pude ver o quanto seus braços eram torneados. — Eles nunca colocam o que queremos dizer de fato.
Estreitei os olhos, alimentando a aura tensionada que pairava no lugar. Mesmo diante do meu pior olhar - palavras de Yuri quando eu ficava muito nervosa - o homem não recuava, mantendo os olhos cristalinos fixos em mim.
— Bom, eu acho que.. — Pigarreando, Renata quebrava o clima aparente se colocando tal qual um juiz de paz entre nós dois. — Tá na hora da próxima atividade das crianças, não é, Yor?
— Ah, é. — Suspirei, abrindo em seguida um sorriso que ocupava todo o meu rosto. Não preciso dizer que era totalmente falso. — É um prazer recebê-lo em nossa casa, senhor Forger.
E com isso, deixei os dois, voltando a interagir com as crianças. Diferente do que eu pensava, o homem ainda permaneceu no espaço na próxima atividade, e na próxima, até as crianças serem conduzidas para o refeitório.
— Não sabia que você era uma apreciadora da marca. — Me sobressaltando, o homem me interceptava no momento em que olhava as crianças da janela do refeitório. Arqueando a sobrancelha, pensei na escolha de palavras, respondendo a seguir.
— Não diria apreciadora. — Comecei, ainda mantendo a atenção fixa no espaço. — Eu só leio as notícias.
— Entendi. — Mesmo sem chamar a atenção, sentia a presença do homem atrás de mim. Ele era impossível de passar despercebido. — Eu notei que você desenha bem, na aula com as crianças. Você desenha desde sempre?
— Hm, é.
— E já pensou em trabalhar com esse talento? Acredito que faça algo além de ajudar na ONG.
“Já, inclusive na sua loja, mas nunca responderam os meus e-mails.” Foi o que pensei em responder. No entanto, apenas emiti um gemido baixo, pensando em como responder.
— Já, a algum tempo atrás. Mas essa ideia ficou no passado.
— Por quê?
“Por motivos que eu não contaria a um desconhecido.” Foi o que pensei em responder. Mas considerando as possibilidades, aquela era a última vez que eu o veria. O que poderia dar errado em meia hora de conversa com um riquinho decidido a explorar a vida de meras mortais como eu?
— Precisei trancar a faculdade por causa de uns motivos pessoais. Desde então, trabalho em uma loja de produtos variados.
— Imagino que deva ser corrido.
“Ah, você não imagina não.” Mas como esperado, não vociferei. Abri um pequeno sorriso educado, balançando a cabeça em afirmação.
— A gente se acostuma. — Não estava acostumada. Mas não encontrei outra forma de responder.
Por um minuto, olhei para trás a fim de ver se o homem ainda estava atrás de mim, desacostumada com o silêncio. Encontrei-o com os olhos grudados na tela do celular, o corpo grande apertado naquelas roupas que apenas exaltavam os músculos aparentes.
— Eu gostaria de ficar por mais tempo, mas tenho um compromisso que não posso adiar. — Disse ele, pondo-se ao meu lado. Com o canto do olho, notei um leve desconcerto que culminou nas próximas palavras. — Se você quiser nós.. Podemos nos ver outra vez? Em outro lugar. Não que eu não queira vir aqui, eu quero sempre acompanhar o trabalho de vocês. Mas.. também quero.. Te conhecer melhor.
Arqueei as sobrancelhas, precisando de um segundo para entender o que estava sendo proferido. Por qual motivo, aquele homem, aquele lindo homem de olhos azuis estava me convidando para um encontro? Pensei em recusar, inicialmente ofendida por ser parte da sua “boa ação.” Não sei qual critério usei para dizer o que saia da minha boca agora:
— Hmm.. Sim. Sim, eu aceito.
Parecendo aliviado, Loid me entregava o seu celular e a princípio, fiquei com o aparelho em ambas as mãos, me perguntando o que devia fazer. Ouvindo minha turbulência mental, o homem abria um sorriso de lado, indicando o ícone de telefone.
— É para você colocar o seu número. Pra marcar a próxima vez, sabe.
Assenti, salvando o número de forma um pouco automática. Eu não estava pensando direito até o homem acenar e sumir da minha linha de visão, e pelos próximos minutos, fiquei parada, apenas recebendo a enxurrada de informações em meu cérebro. Ao fim de 10 minutos em pane, meu cérebro finalmente pôde processar:
“Eu vou ter um encontro com Loid Forger, CEO da Forger’s & CO.”
☃
Quando cheguei à frente do Café Três Sabores, passei um bom tempo parada na frente da fachada pois:
1.Aquele lugar era tão chique que eu podia jurar que eles cobrariam até o ar que eu respirasse;
2.Eu estava completamente desacostumada com encontros;
3.E definitivamente, estava mais desacostumada ainda com encontros que envolviam caras cujas lojas eu tentei trabalhar - e não consegui. -
Senti o suor gelado escorrer da minha têmpora até o pescoço, à medida que ensaiei alguns passos para dentro do Café. Loid já me esperava, ridiculamente bem vestido para a ocasião. Naquele milésimo de segundo em que demorei para me aproximar, estudei-o com olhos arregalados. Ele não estava só bem vestido. Aquela roupa parecia feita para ele! Loid Forger era o único homem que usava camisa polo e não ficava parecendo um tiozão de meia idade. Os detalhes da camisa mesclavam-se com os detalhes do próprio corpo do homem, me fazendo ter dificuldade para desviar o olhar.
— Oi! — Disse ele, com um sorriso que misturava animação e timidez na mesma frase. — Eu não sabia as suas preferências então.. Espero que tenha gostado do lugar.
“Ele está usando Hermès. Ele está usando Hermès e só uma peça dessa loja custa 1 ano inteiro do seu salário!”
Engoli em seco, demorando um segundo para responder. Estava pensando se o vestido azul floral que havia escolhido, comprado em uma feirinha do Centro, havia sido uma boa escolha.
— Ahn, ah.. — Rolei os olhos para os lados, notando as outras mesas. O lugar estava parcialmente vazio, apenas com algumas cadeiras ocupadas. Ainda assim, senti vontade de rolar para debaixo da mesa ao ver aquelas madames bebericando chá e se deliciando com um pedaço minúsculo de croissant. — Claro, eu adorei a escolha. Sempre tive vontade de conhecer o lugar.
Sorri, em seguida agradeci educadamente para a mocinha que me entregava o cardápio. Rolando os olhos pelas opções, nem era preciso dizer que um café ali era o equivalente a 1 mês de café feito em casa.
— Então, Yor.. — Começou Loid, me sobressaltando enquanto estava em uma discussão mental sobre as opções ali serem tão caras. — Você não me disse muito sobre o seu trabalho. Como ele é?
Empalideci. Como explicar para um homem que passava o dia em reuniões, em uma sala climatizada e com máquinas de café ao seu dispor, que o meu trabalho consistia em me vestir de elfa e atender clientes completamente mal-humorados?
— Ah, ele é.. legal. — Foi o que eu consegui dizer. — Quer dizer, eu atendo pessoas, arrumo coisas, as vezes fico na frente da loja para chamar a atenção. E depois fechamos e recomeçamos outra vez no dia seguinte.
— Entendi. Parece ser árduo.
E era. Mas decidi não confirmar.
— E você? — Retruquei, enquanto dividia a atenção com a garçonete, que anotava o pedido. — Eu sei que é o atual CEO da Forger’s & Co., mas o que você faz?
— Falando a verdade? — Ele suspirou, parando um segundo para se dirigir a garçonete. O movimento evidenciava os seus bíceps, mas não ousei encarar. Não por muito tempo. — Fico enfiado em reuniões o dia inteiro. Com os acionistas e os sócios, meus irmãos. É difícil porque a loja está passando por algumas mudanças e.. Todo mundo sempre quer que a sua opinião seja ouvida.
— Parece complicado. — Ronronei, quase me perguntando se no final do dia ele teria que enfrentar o trem de Japeri. Mas acho que a pergunta soaria ácida demais e claro, a resposta seria negativa.
— E é.
Por um longo e torturante momento, ficamos em silêncio. Abrindo um sorriso contido, me perguntei internamente se realmente não tínhamos assunto, e sendo isso claro desde a primeira vez que nos vimos, questionei o motivo do convite. Eu não havia me deslocado de tão longe para passar o resto daquela manhã em silêncio, ainda que fosse para confirmar o quanto gente rica é privilegiada. Por isso, ensaiei um assunto que, em vista dos outros, também morreria logo. Mas pelo menos era uma tentativa:
— As crianças..-
— Você..- — Com nossas palavras se sobrepondo, me calei, envergonhada. Em seguida, indiquei que ele continuasse. — Não. Você primeiro.
— Não, é sério, pode ir. — Rebati, curiosa demais para perder a chance. Vendo que aquela batalha estava perdida, Loid continuou.
— É que eu lembrei de você ter comentado que desenhava. — Ele sorria, coçando a nuca. — Fiquei me perguntando se você não teria alguma foto dos desenhos para me mostrar.
Empalideci pela segunda vez no dia, por motivos não tão distantes. Loid Forger, CEO da Forger’s & Co., aquela loja que em um dia eu sonhei transformar as minhas criações em coleções, estava disposto a ver desenhos meus. Desenhos que eu havia feito pensando no estilo da loja dele.
— Eu acho que tenho. Eles são antigos, então.. Acho que posso ter mudado um pouco o traço.
— Impossível eles não serem tão lindos quanto aqueles que vi.
Balbuciei um “é..” envergonhado, enquanto abria a galeria, procurando por registros daquela época.
Minutos depois, virei a tela do celular, passando as imagens cautelosamente. Eu estava me sentindo como uma miss avaliada por jurados, e a tensão era tanta, que eu podia borbulhar na minha própria erupção interna.
— Os modelos são muito bonitos. — Concluiu ele, depois de ver todas as fotos. — Você fez esses croquis pensando na Forger’s & Co.?
Loid sorria, pousando a cabeça na palma da mão. Daquele jeito, seus olhos pareciam mais intensos, como se estivesse me avaliando. Sentindo-me em brasas, e não por causa daquele rosto lindo me encarando, engoli em seco, temendo a minha própria resposta.
— É, talvez. — Menti. — Eu devo ter me baseado no estilo da loja.
— Então, é meu dever dizer que ficou incrível.
Ergui o olhar, o encarando. Quando a gente trabalha em loja de rua, aprende a ver no rosto dos clientes a mentira escancarada. Como nos momentos em que eles tentam pechinchar - e eu juro que se eu pudesse, abaixava o preço. ‐ dizendo que em outra loja era mais barato. Ou quando tentavam devolver um produto já usado, alegando ser novo. Todas essas situações me ajudaram a ser boa em detectar mentiras. Mas naquele momento, olhando para aqueles olhos azuis, não conseguia ver nenhuma.
— É, hmm.. Obrigada? — Mesmo sem querer, meu tom soava como uma pergunta. Percebendo o meu desconforto, Loid sorria, de modo tão claro como a luz.
— Eu não disse nada além do que devia. O caimento e o modelo das roupas são milimetricamente pensados na aparência única, que é a marca da loja. A abertura das roupas femininas são feitas em lugares estratégicos, e mesmo que você tenha sido ousada para fazê-las em lugares não usuais, eu entendi que o intuito era fazê-las serem mais práticas, mesmo sem perder o charme. Eu realmente não conheço alguém que cubra tantos detalhes como você.
Pisquei os olhos, e depois de novo, e de novo, até as palavras fazerem sentido na minha mente. Ele estava dizendo aquilo por pena? Sim, porque era nítido que ele podia perceber esses detalhes, afinal ele era o CEO da loja. Ainda assim, meu coração palpitava e retorcia, minhas mãos suavam e na língua, sentia o gosto do reconhecimento. O sonho da Moda estava a muito tempo distante no meu coração, mas com aquelas palavras, aquela Yor que desejava ser reconhecida pelas suas criações libertava-se de um jaula que eu mesma havia criado para mim.
— Obrigada. As suas palavras são muito importantes para mim, sendo um conhecedor tão experiente do ramo.
Por um tempo, o homem nada disse, apenas me observava com olhos gentis. Já eu, na maior parte do tempo olhava para baixo, ou para qualquer coisa que não fosse ele. Não sei se teria estruturas para sustentar o olhar se o encarasse diretamente.
— E então? O quê você ia me falar mesmo?
— Ah. — Tirada dos meus devaneios, mordisquei os lábios, nunca sendo tão grata por ter algo para me ocupar. Levei a xícara de café ainda fumegante aos lábios, separando-os segundos depois pela temperatura do líquido. — As crianças gostaram muito da sua visita. Elas não param de falar do “tio Loid” e da promessa que você fez, de vê-las novamente.
— E eu vou. — Com uma certeza impressionante, ele continuou. — Também sinto saudades delas. Aquele dia, eu teria ficado mais, mas prometi à minha filha que a levaria ao cinema.
Filha. Por um momento, minha cabeça dava uma volta na via láctea e se perdia por lá. Onde eu estava todo esse tempo, que não sabia que Loid Forger tinha uma filha? E esposa? Tudo bem que eu não ficava fuxicando a vida pessoal dele, apenas notícias sobre a marca. Mas, algo dentro de mim sentia que precisava ter conhecimento daquela informação.
— Ah, não, sem problemas. — Comecei, gaguejando a cada sílaba. — Se você precisar ir agora também, não tem problema. Sua filha e esposa devem estar preocupadas..
— Minha esposa faleceu. — Cortando-me de uma forma abrupta, Loid abaixava o olhar, me deixando extremamente envergonhada pela indelicadeza. Em um momento, estava querendo me socar por estar em um encontro com um cara casado, e em outro, estava querendo me jogar do andar mais alto de um prédio por não ter tido acesso àquela notícia.
— Ah, eu.. Eu sinto muito, eu..-
— Não precisa se desculpar. — Com um sorriso tranquilizador, Loid prosseguiu. — Você não sabia.
— Mesmo assim, eu.. — Curvei os lábios, desgostosa. — Não deveria ter sido tão indelicada.. A sua filha.. Ela deve sentir muita falta da mãe, não é?
— A Anya não chegou a conhecer a mãe dela. Pelo menos pessoalmente. — E com essa série de indelicadezas consecutivas, estava claro o meu desejo de me jogar. — A mãe dela morreu no parto. Mas ela sente muita falta sim, ainda mais porque tudo o que ela tem são lembranças de outras pessoas. Nas festas, sempre a mencionam.. Ela detesta aniversários por isso.
Assenti, sentindo-me uma tola por ter tocado nesse assunto de uma maneira tão leviana. Ao olhar para o rosto do homem sentado à minha frente, notei na jovialidade aparente, marcas de uma vida que eu estava conhecendo agora. Loid não devia ter mais de 35 anos, mesmo assim, já convivia com o luto por uma pessoa querida e a lembrança constante na forma do fruto do amor deles.
— Eu posso entender.. — Comecei, sem capacidade para segurar as palavras que saíam da minha boca. — Como é doloroso quando alguém pergunta sobre a pessoa que não vai mais voltar. Ou as lembranças que compartilhavam, algum momento que não vimos. Você sente como se aquela dor nunca sarasse de verdade.
Sem dizer nada, Loid segurava a minha mão, ao notar as lágrimas ensaiadas nos meus olhos. Como se dissesse que eu podia continuar, atendi o seu pedido e prossegui.
— Eu perdi a minha mãe muito cedo. Ela estava doente, e da descoberta da doença para o falecimento foi muito rápido. No enterro, eu me lembro de ser aparada pelos parentes, mas eu não conseguia chorar. Não consegui chorar por muito tempo. Não porque eu não sentia falta da minha mãe, mas porque eu não conseguia me permitir chorar. Yuri, meu irmão mais novo, chorou muito no enterro e nos dias e meses seguintes. Se eu derramasse alguma lágrima, demonstraria fraqueza. E se eu fosse fraca, não conseguiria cuidar do meu irmão.
Limpei uma lágrima solitária que escorria cautelosamente pelo meu rosto. Ao lembrar de Yuri e dos anos seguintes à perda da minha mãe, a vontade de chorar aumentava.
— A gente sempre foi um para o outro. Quando a nossa mãe faleceu, nos mudamos para a casa da nossa tia, mas ela nunca demonstrou estar feliz com a nossa presença. Por isso, mesmo nova, assumi a criação dele. Ele era tão pequeno, que eu temia não conseguir ser para ele o que a nossa mãe foi para a gente. Mas, vendo-o onde está hoje, acho que não fui tão ruim assim.
Sorri boba em meio às lágrimas, não notando que ainda estava compartilhando a palma com o Loid e que ele me observava. Quando notei a pulsação estranha e elétrica que emanava da nossa ligação, afastei a mão, desconcertada.
— E foi por ele que você largou a faculdade?
Assenti. Tocar naquele assunto sempre era delicado, não por quê me arrependia. Mas por que sempre me vinha à lembrança de Yuri me pedindo para não fazê-lo, achando injusto que eu abdicasse do meu futuro pelo dele, mesmo que eu nunca tenha enxergado a situação daquela maneira. Aquele garoto não tem ideia das coisas que eu faria pelo bem estar dele.
— O Yuri é muito inteligente. Ele quer ser diplomata, e por isso, precisa estudar muito. Os cursos não são tão baratos então.. Desde cedo eu tive que trabalhar para garantir que o seu desejo fosse realizado.
— Mas você queria continuar a sua faculdade, não queria?
Ponderei antes de responder. Seria mentira dizer que não, mas, seria injusto com Yuri dizer que sim. Eu estava totalmente decidida quando tranquei a faculdade para trabalhar integralmente, mas é claro que eu sempre desejei voltar.
— É, eu acho que sim. Mas eu jamais colocaria os meus desejos acima dos desejos do meu irmão.
Por um segundo, Loid permaneceu em silêncio e, observando-o, procurei pelo julgamento de seu olhar. No entanto, naquele momento, seus olhos estavam indescritíveis, não sendo possível saber o que ele estava pensando.
— Hmm, entendi. Eu tenho uma reunião importante pra agora, mas eu adorei a nossa conversa. Você quer que eu te leve pra algum lugar?
Tonta com a mudança repentina da conversa, balancei a cabeça em negação, aturdida. Eu tinha feito algo errado?
Robótica, vasculhei a minha bolsa ainda tentando entender o que havia acontecido. Ele realmente estava me julgando por ter agido em favor do meu irmão? Ou ainda estava chateado pela minha indelicadeza?
— Não precisa. Eu convidei, eu pago. — Com ambas as mãos na carteira, assenti, me levantando da cadeira em seguida. Perdida, caminhei para fora do estabelecimento, acompanhada pelo homem que possuía uma face indescritível quando nos despedimos. E daquele jeito, praticamente enxotada, passei o resto do dia pensando no que havia feito de errado.
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