Looking at it now
Last December
Capítulo 6
Entre Tropeços
Eles me odiavam. Todos eles, todos os advogados do meu ano, todos que tinham entrado na empresa comigo. Eu já tinha minhas suspeitas, mas Savanah acabou confirmando para mim. Eles realmente me odiavam. Nas palavras dela, eles odiavam a garota que chegou aqui do nada e conseguiu uma sala e uma promoção só por namorar um jogador de futebol que é cliente da empresa.
Era por isso que eu tinha uma sala, mesmo sem ter estudado em uma das melhores universidades do país. Era por isso que eu era convidada para festas com um dos homens mais famosos do mundo e o mais rico, um tal de Bill Gates. Era por isso que o dono da empresa sabia meu nome, que eu estava em um dos casos mais importantes que eles já tiveram. Porque eu namorava Max.
Eu estava presa a ele. Meu apartamento era dele, só tinha meu emprego por causa de sua influência, até mesmo as contas do hospital tinham sido pagas por ele. Tudo que eu tinha era por causa dele. E ele sabia disso, devia saber que estava presa a ele, que não poderia simplesmente ir embora, porque provavelmente perderia meu emprego e nem teria onde morar. Não sabia de quase nada sobre a Bridget de vinte e poucos anos que decidiu se casar com ele, mas realmente a odiava agora por ter deixado que ele tomasse conta de tantas partes de sua vida. E isso só dificultava ainda mais nosso relacionamento.
Por sorte, mal tive tempo desde que voltei a trabalhar para pensar nisso. Mesmo depois de ter percebido que dependia demais de Max, principalmente agora que eu ainda estava tentando re-aprender como é ser uma adulta, passei essa semana atolada de trabalho e nem tive a chance de pensar de verdade no que fazer.
Depois que Savanah me falou sobre como meus colegas me detestavam, transformei em uma missão própria fazer com que mudassem de opinião. E isso significava me voluntariar para ajudá-los em tudo, desde as tarefas mais básicas que eles normalmente pediriam para um paralegal até emprestar minha sala para quando eles quisessem se encontrar com algum cliente. Eu andava entrando no trabalho às oito da manhã e só saindo às dez da noite e, quando chegava em casa, a única coisa que queria era dormir. Max voltou para o nosso quarto, estava dormindo todos os dias do meu lado, e, mesmo assim, eu chegava tão cansada que não conseguia me importar. Já até me acostumei a me manter no meu canto da cama, sempre preocupada em não tocar nele. Não que eu dormisse bem assim, mas não tinha tanto problema.
Enquanto isso, Savanah andou se provando a companheira perfeita. A cada dia que passava, ela estava mais sincera, sem fazer questão alguma de poupar meus sentimentos, o que pareceu bem cruel no começo e que agora eu sabia que era ótimo. Ela não mediu palavras para me contar como os outros me detestavam, mas também não mediu para me dizer o que eu precisava fazer a cada reunião que nós tínhamos. Aliás, ela vinha me ajudando em tudo, absolutamente tudo, até mesmo nos casos que eu aceitei participar só para melhorar a opinião dos outros advogados sobre mim. Ela era agora como uma tradutora para mim de Direito e já não sabia viver sem ela.
Principalmente quando o assunto era o divórcio mais badalado que eles já tinham tido por aqui. Mesmo que só fizesse pouco tempo que eu estava na empresa, só por conhecer Adrian Ferris, por ter sido requisitada por ele, muita responsabilidade caía em cima de mim. Ele sempre buscava a minha opinião durante as reuniões, e, sem Savanah me preparando antes, eu provavelmente não saberia responder.
Soltei a caneta que segurava e esfreguei minha testa com força, como se o movimento circular dos meus dedos fosse trazer de volta a minha concentração. Aquela quinta-feira mal tinha amanhecido e eu já queria voltar a dormir. Tive que levar a mão ao pescoço antes de pegar a caneta de volta, apertando minha nuca que parecia se recusar a relaxar.
Um segundo de distração e meus olhos miraram na direção do sofá no canto da sala.
Não, pensei, antes que começasse a considerar a possibilidade de dormir ali. Ao invés disso, fui até a janela e abri ainda mais a cortina, torcendo para o sol ter poderes mágicos de me acordar. Mas, quando me sentei de novo na poltrona e tentei voltar a ler o papel à minha frente, meus olhos pareciam só conseguir focar no nome de Adrian Ferris.
Só de pensar que na semana seguinte nós iríamos a tribunal pela guarda dos filhos dele, sentia meu estômago embrulhar. A cada dia que passava, mais nervosa eu ficava. A loucura de trabalhar todos os dias de manhã à noite, mesmo que por menos que uma semana, tinha ajudado muito a me fazer esquecer os outros problemas da minha vida. Já fazia tempo que não me preocupava com o acidente que tinha me feito perder a memória, uns dois dias desde a última vez em que senti realmente que vivíamos no ano errado.
E isso era bom. Me dava mesmo um pouco de medo, mas era bom. Já estava cansada de não reconhecer nenhum programa de televisão, de ter Savanah revirando os olhos para mim toda vez que me recusava a usar um CD ao invés de uma fita. Estava cansada de sentir que era de outro planeta. Era bom me esquecer um pouco do passado. Tinha que ser, ainda que eu não estivesse completamente acostumada com o presente ou soubesse realmente o que estava fazendo.
Por outro lado, trabalhar tanto fazia o tempo passar rápido demais para que eu percebesse. O dia sempre acabava antes que eu me desse conta direito de que tinha começado. Às vezes, chegava a não saber nem se era de manhã ou de noite. E tinha que admitir que estava começando a ficar viciada nessa sensação de não pensar em todo o resto que ainda estava errado, em tudo de que eu sentia ainda falta, em todas as coisas que eu precisava fazer, de como precisava me desprender de Max, mas nem sabia por onde começar, de que precisava me apaixonar por ele. Era bom deixar para decidir tudo isso depois e me perder em tanta coisa para fazer para a empresa.
O único problema era que, quanto mais rápido o tempo passasse, mais perto eu ficaria de ter que provar que meu trabalho estava valendo a pena.
Esfreguei meus olhos como podia sem estragar minha maquiagem e me estiquei para pegar mais um pouco de pipoca. Já não estava mais com fome e meu nervosismo sorrateiro me deixava um pouco enjoada, mas era pipoca! E ela estava logo ali. Mastigar me manteria acordada, e, só de poder comer pipoca de manhã sem minha mãe ou Max reclamarem, já era razão o suficiente para não parar.
Agora que sabia a data do tribunal, eu queria era brecar com tudo, voltar atrás, dar de novo a desculpa de que eu tinha perdido a memória, mesmo que finalmente estivesse começando a me acostumar com tudo. Meu corpo também reagia à data, se mantendo nervoso o tempo inteiro desde que a tinha descoberto, diminuindo consideravelmente a quantidade de horas que dormia de noite, me forçando a fazer tudo quase sempre elétrica, até mesmo mastigar a pipoca.
Ou talvez a culpa fosse do café, que tinha virado minha fonte de energia essencial.
É, deve ter sido o café, pensei, enquanto virava a última gota de um copo de 400 ml e sentia minhas pernas baterem por baixo da mesa ao tentarem descarregar toda a energia em mim.
Assim que joguei o copo no lixo, me abaixei para apertar meus calcanhares, que já estavam quase dormentes pelo sapato de salto. Queria tanto poder simplesmente usar Converse! Meus dedos já sentiam falta de respirar.
Naquela manhã, eu quase tinha colocado mesmo o par novo vermelho que tinha ganhado de aniversário. Tinha acordado ainda mais nervosa que o normal e quase consegui me convencer de que podia usar tênis só hoje, que não teria problema nenhum.
Mas, apesar de ter pegado no sono na hora em que deitei, acordei quatro horas depois completamente desperta e, como de costume, desisti de voltar a dormir e fui adiantar as coisas que precisaria entregar no dia. Depois de horas descalça, quando fui me vestir, colocar os sapatos de salto nem pareciam tão ruins assim.
Mas eram. Muito.
Assim que comecei a me perguntar se poderia pelo menos deitar no sofá para colocar os pés para cima, decidi que estava na hora de ir entregar os relatórios para meus colegas. Era a primeira vez que eu saía do meu escritório e não eram nem nove da manhã, o que significava que muitos ainda não tinham chegado. Nem Savanah tinha já saído da área da cozinha, onde parecia tentar se afogar em café. Mas eu já estava tão cansada que não aguentaria ficar na minha sala mais um segundo.
Por um lado, pelo menos levantar e andar me fez dar uma animada boa. Mal conseguia sentir meus pés ou minhas mãos, mas peguei a pilha enorme de arquivos e fui até a sala que os outros advogados dividiam.
A maioria ainda estava arrumando suas coisas para começar a trabalhar e, quando cheguei perto da mesa de uma das advogadas, Lucianne, e ela estava ocupada tentando ligar a internet, não consegui evitar bater o pé. Já estava pensando em cutucá-la no ombro quando ela finalmente se virou para mim.
"O relatório que você pediu," falei, sem tempo para dizer bom dia, já que tinha outros trinta arquivos pesados nos braços e vários outros colegas com quem falar.
Não fiquei para ouvir sua resposta, dei as costas e foi atrás do próximo, que me irritou ao insistir que eu ficasse na sua frente enquanto ele passasse os olhos pelo texto para se certificar de que "minha amnésia não tinha atrapalhado seu caso".
Mas ele nem era o problema. Depois de cada um, eu ficava ainda mais nervosa, meu cansaço se transformando em impaciência, me dando vontade de jogar todos os arquivos no chão e mandar eles pegarem quando quisessem. Sabia que eu precisava de mais café, pois a pele do meu corpo inteiro parecia suar frio, enquanto eu perdia momentaneamente o sentido de minhas mãos ou meus pés quando ficava parada.
Mas eu não queria mais café. Meu estômago dava reviravoltas dentro de mim, odiando a ideia de mais açúcar e cafeína enquanto o resto do meu corpo pedia por eles. Meus olhos estavam tão cansados, que nem conseguiam fechar, nem conseguiria dormir. O dia mal tinha amanhecido e eu já estava exausta.
Mas a semana estava acabando e estava funcionado para mim. Eu só conseguia focar em uma coisa de cada vez, mas conseguia focar. E quanto mais tempo eu ficasse acordada, mais tinha tempo para fazer minhas tarefas. Nem me deixava ir contra aquela nova rotina. Estava funcionando. Pelo menos eu não era mais a garota que achava que ainda tinha dezesseis anos de idade.
Ainda me sentia péssima.
Mas estava funcionando.
Até que, quando fui entregar um dos últimos relatórios daquela manhã, meu nervosismo e necessidade de ficar me movimentando o tempo todo me fizeram pisar em falso no carpete do escritório e virar o pé.
Sempre me machuquei fácil, sempre tive a proeza de bater em tudo que se colocasse no meu caminho e já tinha virado o pé inúmeras vezes. Mas nunca de salto. Nunca tinha virado o calcanhar tão fundo, a ponto de jogar tudo que eu segurava pelos ares e só parar quando minhas duas mãos estivessem no chão.
Antes de levantar minha cabeça, já podia sentir minhas bochechas ardendo de vergonha. Não conseguia ouvir, mas tinha certeza de que todos estavam rindo. E só de imaginar suas expressões, só de imaginar que cada um concluía em sua cabeça que eu era uma perdedora total, minha vontade era de nunca me levantar.
Para minha surpresa, antes que eu reagisse, várias mãos apareceram para me ajudar.
"Bridget, você está bem?" Uma das advogadas perguntou, uma das que menos falavam comigo.
"Machucou?" Outro quis saber, me segurando por uma mão enquanto mais dois se ofereciam para me sustentar.
"Quer uma água?"
Tentei evitar olhar nos olhos deles, mas o pouco que vi me provou que eles não estavam rindo.
Não. Nenhum deles ria. Nenhum deles parecia ao menos se segurar para não rir. Eles estavam realmente preocupados.
Alguém pegou uma poltrona e levou até onde eu estava, enquanto outra pessoa me trouxe água e mais uns três recolheram todos os arquivos que eu tinha jogado para o alto. Antes que eu conseguisse realmente acreditar que eles não me achavam patética, que estavam mesmo só preocupados comigo, Savanah já estava ligando para o serviço de carros que nós usávamos para me levar ao hospital.
"Não precisa," eu insisti, mas ela conseguiu me cortar com um olhar. Então aceitei.
E, mesmo que meu calcanhar doesse muito, mesmo que eu o sentisse queimar e inchar, não conseguia parar de sorrir. Eu ainda era patética, mas por ficar tão encantada com a atenção dos meus colegas.
Se ser adulto era assim, talvez não fosse tão ruim.
Quando eu tinha nove anos de idade, caí de bicicleta em um parque e quebrei meu pulso. Antes mesmo de sentir a dor, eu sabia que tinha quebrado, pois minha mão estava em uma posição que deveria ser humanamente impossível de fazer. E, mesmo assim, tive que esperar por duas horas na emergência do hospital até um médico estar livre para me atender.
Hoje, fui atendida em menos de um minuto e tudo que eu tinha era o calcanhar torcido. Tudo bem que Savanah teve que ligar para um carro me levar ao hospital que ficava a duas quadras do escritório e o motorista teve que me ajudar a andar até uma maca, mas mesmo assim. Comparado ao meu pulso, estava até que tudo bem comigo. Meu plano de saúde caro tinha conseguido diminuir o tempo de espera consideravelmente e, apesar de não ser nada urgente, passei na frente de muita pessoa.
Se meu calcanhar não estivesse doendo, se não estivesse morrendo de dor de cabeça e sentisse a cada segundo que estava prestes a cair de sono onde estivesse, tinha certeza de que me sentiria muito culpada.
O motorista me passou seu cartão e me disse para lhe ligar quando fosse para casa e, apesar de eu agradecer, tudo que pensei foi que não havia a menor possibilidade de eu ir para casa às nove da manhã em um dia de trabalho.
Ou havia?
Apesar de seu nome estar espalhado para todos os lugares, só percebi que eu estava no mesmo hospital em que fiquei depois do acidente quando vi Thomas entrar na sala de emergência. Demorei um milésimo de segundo para acreditar que era mesmo ele ali, mas logo quis me esconder. Não sei por que, mas não queria que ele me visse com aquela cara, que eu sabia que devia estar péssima. Fazia uns dois dias que eu não dormia direito, minhas olheiras estavam enormes. Mas ele me notou antes que eu pudesse simplesmente fechar a cortina que tinha em volta da maca onde estava.
Enquanto ele hesitava por um segundo em vir na minha direção, eu levantei a mão no ar, o cumprimentando e rindo descontraidamente.
Eu estou bem, pensava, antes mesmo que ele chegasse até mim. Nem estou tão cansada assim.
"Bridget, o que você está fazendo aqui?" Apesar da pergunta ser direcionada a mim, ele foi até o pé da maca para ver a ficha que eu tinha completado ao chegar no hospital. "Você machucou seu calcanhar."
"Tropecei," fiz questão de explicar. "Ainda não me acostumei a usar salto."
Até soltei uma risada rápida logo depois, tentando deixar o clima mais leve, mas ele estava focado demais no trabalho para perceber. Seus olhos foram da prancheta ao meu calcanhar, só desviando quando outro médico apareceu e ele teve que dizer que já tinha me atendido.
"E como você está?" Perguntou, ainda lendo minha ficha. "Já conseguiram identificar quem estava com você no acidente?"
Neguei, que ele só percebeu por levantar a cabeça na minha direção. "Acho que já desistiram."
Seus olhos ficaram presos em mim por mais um único segundo, como se precisasse desse tempo para absorver a informação - ou falta de informação, - e então se voltaram ao papel.
Ainda era estranho vê-lo assim, de jaleco e profissional, como todos os médicos que eu já tinha visto na vida. Era bem estranho vê-lo com tanta confiança, tão ocupado e concentrado que não parecia precisar me notar direito.
"E você se lembra de alguma coisa?"
"Não," dessa vez respondi de vez. "Absolutamente nada."
"Mas está conseguindo se adaptar?" Ele fez menção de olhar na minha direção, mas seus olhos fugiam dos meus, mesmo que eu buscasse por eles.
"Sem contar que eu não tenho a menor ideia do que estou fazendo na vida," falei, "sim, quase posso fingir que sei ter vinte e seis anos."
Ele riu, para minha surpresa. Foi inesperado, um pouco rápido, mas adorável, e eu me percebi o imitando.
"Se você sente que não tem ideia do que está fazendo, sabe exatamente o que é ter vinte e seis anos de idade," ele guardou a prancheta e parou para me olhar. "Ou vinte e quatro, pelo menos," completou, dando de ombros. "Alguma dor de cabeça?"
Preferia continuar aquela conversa a falar de dores. "Não que tenha a ver com o acidente," falei.
"Tem conseguido dormir?"
Aquilo já estava me incomodando. "Sim," menti. "Não se preocupe, eu tenho uma consulta marcada com o neurologista já. É só meu calcanhar o problema hoje."
Ele concordou com a cabeça, ainda pensativo. "Você pode falar comigo se precisar também," eu sabia que ele teria que me examinar, mas, ao chegar perto do meu calcanhar, percebi como aquilo seria desconfortável para mim. "Tem meu telefone?"
"Sim," falei, tentando me concentrar para não achar tudo aquilo constrangedor demais.
Mesmo assim, quando senti seus dedos no meu calcanhar, me encolhi.
"Dói?" Thomas perguntou, apertando de leve em alguns lugares.
"Nã-" comecei a falar, mas sua próxima apertada me fez puxar minha perna para longe dele instintivamente. "Sim," completei. "Dói."
"De zero a dez?" Perguntou, se sentindo no direito de puxar de volta minha perna até que ela estivesse esticada e continuando em seguida.
"Todos são dores?" Perguntei, fazendo com que ele risse de novo. Me sentia estranhamente confortável quando ouvia o som de sua risada, mesmo que ainda tivesse seus dedos examinando meu calcanhar.
"Sim," ele respondeu.
"Então três, acho."
"E aqui?" Quando demorei para responder, ele olhou na minha direção.
Só balancei a cabeça.
"Consegue andar?"
Dei de ombros. "Não tentei muito desde en-" as palavras morreram na minha boca assim que eu o senti tirar meu sapato e segurar meu pé por baixo.
Para quem já tinha ficado amortecida com os saltos de todos os dias, sua mão só um pouco gelada demais na sola do meu pé era terrivelmente desconcertante. Parecia íntimo demais, sensível demais. Eu o conhecer só piorava tudo, principalmente quando ele me olhou nos olhos ao mexer meu pé com cuidado para os lados.
"Dói?" Perguntou de novo, enquanto eu juntava todas as minhas energias para não deixar minhas bochechas vermelhas demais.
Como eu podia estar tão consciente de cada parte que ele tocava? Como algo tão simples quanto aquele exame poderia me deixar tão encabulada?
Nem sabia mais lhe responder. Se doía? Sim, até que doía bem. Mas não era a dor que fazia meu coração acelerar naquele momento. Meu corpo inteiro estava tenso por outra razão, e eu nem conseguiria prestar atenção no meu calcanhar se quisesse.
A única resposta que dei foi balançar a cabeça, entre confirmação e negação.
"Não é nada sério," assim que ele soltou do meu pé, percebi que eu vinha segurando meu ar. Me senti idiota na hora, primeiro por ficar tão constrangida por algo que ele devia fazer com milhares de pessoas todos os meses e, depois, por ter quase ficado até desapontada quando o exame acabou. "Você vai ter que deixar os saltos de lado por um tempo e mancar um pouco, mas não tem nada muito machucado. Pode usar muletas, se preferir, mas acho que consegue se recuperar melhor exercitando um pouco todo dia. Se a dor ficar forte demais, pode tomar um analgésico. Mas se for insuportável, é melhor que volte aqui."
Vou poder usar meu tênis, foi a primeira coisa que me passou pela cabeça.
Tive que reprimir um sorriso.
"Certo," respondi, enquanto ele ia pegar a prancheta e escrever sei-lá-o-quê que os médicos escreviam.
Era impossível tirar meus olhos dele agora, que mirava os seus no papel. Ele estava tão perto, poderia tocá-lo se quisesse, poderia ver cada sarda em seu rosto, cada fio de cabelo cacheado fora do lugar. Eu ainda me lembrava dele quando era mais novo. Ainda me lembrava de como todas as vezes em que via seus olhos brilhando para mim, me sentia bem melhor comigo mesma. Me lembrava de contar com isso, com esses pequenos momentos de validação que me davam a impressão de que nem tudo era tão ruim quanto eu achava.
Ele era adulto agora e isso parecia cada vez menos estranho para mim, mas eu ainda podia me lembrar bem dele. Não sabia exatamente o que, mas tinha algo nele que conseguia se manter bastante familiar, ainda que eu fosse obrigada a encarar tudo aquilo que estava diferente. Eu ainda me lembrava dele como se ele nunca tivesse mudado, e, antes que entendesse direito o porquê, uma lágrima contornou meu rosto.
Bem quando eu a senti e levei as costas da mão para enxugá-la, ele levantou os olhos para mim. Parecia que ia falar outra coisa, mas mudou completamente de ideia ao perceber que eu estava chorando como uma idiota por nada.
"Ei, o que houve?" Só o tom compreensivo de sua voz já fez meu coração apertar ainda mais, me fazendo derramar várias outras lágrimas atrás daquela primeira. "Bridget, você está bem?"
"Eu não sei!" Admiti, ainda sem conseguir acreditar que eu estava chorando e sem conseguir parar. "É só que eu nem me lembro de mais nada!"
"Como assim?" Ele arrumou um pequeno espaço para se sentar na maca, chegando mais perto de mim, me obrigando a encarar tanta coisa que eu nem sabia que estava no meu peito.
"De tudo! Eu não me lembro de nada! Mil novecentos e oitenta e nove não parece mais que foi ontem! Não consigo mais sentir que eu ainda estou no colegial!" Quanto mais eu falava, mais chorava e mais minha voz parecia engasgar na base da minha garganta.
"Mas isso não é bom?" Ele parecia querer segurar minha mão, mas não sabia se podia e parou no meio do caminho.
Quis falar que tudo bem, mas mal conseguia respirar e responder à sua pergunta, quem diria mudar de assunto
"Nã-não," falei, enxugando meus olhos borrados de rímel escuro na camisa branca e caríssima que usava. "Eu gostava de sentir, des-dessa sensação!" Mesmo sentindo que minha garganta já não conseguia passar ar ou palavras, eu insisti. "Es-esta-tava perdida. Mas pelo menos sa-sabia quem e-eu," tentei respirar fundo, mas meu peito doía demais, "quem e-eu e-era."
"Respira," ele falou, se preocupando mais com meu estado do que tudo que eu falava.
"Nã-não, eu," por que tudo dentro de mim precisava entrar em colapso agora? Meus pulmões não entendiam que eu queria falar aquilo? Queria que ele entendesse? Queria entender eu mesma? "Vo-você não tá ouvindo!"
Nem eu conseguia ouvir direito. Nem eu conseguia entender direito.
"Depois você fala," Thomas disse, pegando o copo de água que um enfermeiro trouxe e me dando para beber. "Eu ouço o que você quiser se você respirar."
"Me desculpe," pedi assim que senti meu peito parar de doer o suficiente para completar uma frase. Já fazia vinte minutos, dois copos de água e um de chá que nós estávamos ali. Thomas checava seu pager a cada cinco minutos, mas não se levantou nenhuma vez. "Sei que você tem outras coisas para fazer."
"Não importa," ele respondeu sem hesitar e sem desviar os olhos de mim, mesmo quando eu mal conseguia encará-lo.
"Eu não sei o que me deu," continuei.
"Você disse que não se sente mais como se estivesse no colegial," assim que ele falou, levantei o rosto para olhar em seus olhos.
Droga. Ele queria mesmo falar daquilo? Tinha me levado tanto tempo para me recuperar. Ele realmente falava sério quando disse que me ouviria?
"É," acabei falando, voltando meus olhos para o copo.
"E isso é ruim, porque você gostava da sensação."
Ele já tinha ouvido mais do que eu me lembrava de falar.
"Eu era a perdida," completei. "Quando achava que tinha dezesseis anos, estava completamente perdida e todo mundo me achava louca. Mas pelo menos eu sabia quem era. Tinha tanta certeza de quem eu era, que demorei demais para acreditar que o resto do mundo tinha razão. E agora meus dias são tão complicados, que eu até me esqueci de que não pertenço aqui."
"Aqui?" Ele questionou. "Nesse ano?"
Quis rir, enquanto meus dedos brincavam com o copo vazio. "Antes, eu me sentia como se tivesse viajado no tempo, como se sempre seria a Bridget de oitenta e nove, mesmo que vivesse a vida da de noventa e nove. Mas agora parece que essa nova tomou conta completamente de mim. Sabe qual foi a última vez que eu parei para lembrar de alguma coisa do colegial? Na segunda-feira! E isso porque eu estava tentando encontrar aquele chiclete de cereja que a gente comia o tempo todo na banca e não tinha!" Levei as costas da mão para tentar enxugar minha bochecha que pegava fogo. "Eu não quero mais viver em um mundo sem aquele chiclete de cereja. Estou cansada de viver em um mundo assim. E eu nem sei quem eu sou!" Minha voz ficou aguda demais, me dando a impressão que a onda de sentimentos desenterrados estava prestes a me atingir outra vez, e eu parei para respirar fundo. "Todo mundo queria tanto que eu voltasse à minha rotina, que isso me faria bem. Mas a única coisa que faz é provar que eu nunca vou saber quem sou. Nunca vou poder voltar atrás, nunca vou entender quem tenho que ser agora."
"Você não tem que ser ninguém," Thomas disse, um pouco mais duro que antes. Até fez questão de se ajeitar na cama, sentando mais perto de mim e me obrigando a mirá-lo de volta antes de continuar. "A cada dia que passa, suas chances de se lembrar dos últimos dez anos diminuem. Pare de achar que você tem a obrigação de ser alguém que você nem reconhece mais. Bridget," seus olhos miraram minhas mãos e, antes que ele pudesse hesitar, eu larguei o copo para segurar as suas. Ele até respirou fundo e sorriu para mim antes de falar: "Você não pode continuar vivendo no colegial, não pode viver no passado. Mas não precisa se esquecer dele. Não precisa aceitar tudo que falam que você é."
Sua frase me fez pensar em Max na hora. Até aquele momento, eu tinha estado mais calma, mas ele conseguiu fazer outra lágrima fugir dos meus olhos. Só não percebeu. Naquele instante, soltou das minhas mãos e tirou um colar do pescoço que eu nem tinha visto que usava.
Foi só quando ele o deixou na palma da minha mão que eu vi que era o colar de avião de papel que eu, Leanne e ele tínhamos comprado juntos em 88 bem ali, em Nova York, em uma das poucas vezes em que tínhamos saído de casa sem avisar.
"Você ainda usa?" Era impossível eu não sorrir de orelha a orelha. Não conseguia acreditar que o avião tinha estado escondido em volta do seu pescoço esse tempo todo, que ele ainda o usava, que o carregava por aí. "Eu nem sei onde está o meu."
"Fica com esse," ele disse, fechando minha mão antes que eu pudesse recusar. "Você precisa dele mais do que eu, pelo menos para lembrar que não tem que se esquecer do seu passado para viver o presente. Eu sei que você tem que viver no agora, mas, Bridget, esse agora pode ser o que você quiser. Você pode ser quem você quiser."
Ele nunca tinha sido do tipo de dar conselhos, ainda mais tão sensatos e dos quais eu precisasse tanto ouvir. Mas até isso lhe caía bem. Quando ele me deixou abraçá-lo, foi bem estranho perceber que talvez eu gostasse ainda mais dele agora.
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