Capítulo 1 - Uma Década em uma Noite
Nota da autora: Estou voltando a postar a história e devo postar até o final nas próximas semanas! Mesmo que você já tenha lido alguns capítulos antes e os reconheça, leia de novo, pois acrescentei cenas bem importantes no meio deles! Espero que gostem!
We were lying on your couch
I remember
Capítulo 1
Uma Década em uma Noite
Quatro anos. Esse é o tempo que nós, americanos, somos obrigados a passar no colegial. Quatro anos. Só isso. Uma pequena fase comparada ao resto da nossa vida. Aqueles que já sobreviveram a ela fazem pouco caso do que passaram enquanto ainda eram obrigados a ir à escola. Só uma fase, dizem. Nem é tão terrível quanto vocês, adolescentes, falam que é.
Talvez seja fácil mesmo pensar com descaso sobre o colegial quando você está faculdade. Mais fácil ainda se esquecer de cada momento de ansiedade quando já trabalha. Mas quatro anos são também mil, quatrocentos e sessenta dias. Excluindo feriados, férias e dias em que minha própria saúde me ofereceu repouso, são mais de mil dias andando pelos corredores frios da escola como se tentasse evitar acionar uma bomba. Todas as minhas palavras, minhas roupas e qualquer movimento em falso que eu desse poderiam ser usados contra mim. Todos.
E a maioria era.
Meu medo chegou a ser tão grande que eu ainda sonhava com ele. Sonhava que tinha encontrado uma saia incrível de tule em uma loja, mas que os garotos da escola a rasgavam quando eu tentava ir com ela à aula. Sonhava que caía no meio do corredor e tudo que conseguia escutar eram risadas ensurdecedoras. E os apelidos.
Talvez fosse só alguns anos, uma pequena fase na minha vida, mas não era insignificante. Depois de semanas tentando esquecer a minha humilhação no refeitório, depois de prometer nunca mais voltar a colocar os pés naquele lugar, fui convencida por Leanne a deixar tudo aquilo para trás. Nós duas escrevemos o que nos assombrava, tudo que odiávamos da escola, todas as pessoas e os acontecimentos que queríamos esquecer. Juntamos uma caixa com cartas, anotações, fotos e outros objetos, e a enterramos no seu quintal.
Aqui ficam nossos medos, nós juramos. Daqui para a frente, nada que eles falarem, nada que eles fizerem vai nos afetar. Não era tão fácil quanto parecia, e olha que parecia bastante difícil, mas foi só o primeiro passo. Juramos que seríamos sempre nós mesmas, independente do resto do mundo. Poderiam nos xingar, tentar nos humilhar, mas não nos atingiriam.
Porque nós éramos verdadeiras a nós mesmas, e isso era a única coisa que importava.
Essa frase foi repetida tantas vezes, que foi a primeira coisa na qual pensei quando abri os olhos.
Eu ainda sou eu mesma. Só isso importa.
Era meu único remédio ao sonho que tinha acabado de ter, mais um para a coleção dos traumas subconscientes. Mas eu só precisava repetir aquelas palavras mais algumas vezes na minha cabeça e estaria bem.
Estava tão concentrada em acalmar meu coração, acreditar que tinha sido só um sonho e que estava tudo bem, que só notei o teto um tempo depois.
Não haviam estrelas fluorescentes nele, nem pôsteres nas paredes ao meu redor. Aquela não era minha cama. Definitivamente, aquele não era meu quarto.
Passei as mãos pelos lençóis sobre minhas pernas, precisando de um pouco mais de certeza de que não estava ainda sonhando. Enquanto isso, tentava reconhecer pelo menos um dos móveis à minha volta.
Mas era praticamente impossível. Nada ali podia ser meu. O quarto em si já era bem maior do que a sala da minha casa, a poltrona no canto sozinha devia custar alguns mil dólares e aquela televisão só podia pertencer a alguém muito rico.
Onde eu estava?
E o que eu estava fazendo ali?
Assim que eu tirei o lençol de cima de mim, percebi que a única coisa que eu vestia era roupa de hospital.
Uou. Aquele lugar realmente não parecia um hospital. As paredes eram pintadas em tons de bege escuro, a televisão era boa demais. Eu definitivamente estava sonhando.
E tive mais certeza ainda de que nada ali era real quando vi minhas pernas. Eu estava magra! E comprida! O que era aquilo? E bronzeada demais para quem passava a vida se escondendo em casa! Será que era alguma mensagem do meu subconsciente? Eu devia andar mais de patins? Tomar um pouco mais de sol?
Já sabia que nada daquilo podia ser mais do que um sonho, mas decidi aproveitar, como se recebesse um convite da minha própria mente para a explorar. Se eu não podia ser tudo aquilo na vida real, pelo menos deveria curtir enquanto podia.
Fui sentindo com as minhas mãos até minhas coxas. Não era possível que eu conseguisse uma coxa fina como aquela! Minha imaginação era boa demais!
E esses braços? E essas unhas! Elas estavam compridas, não roídas e bem cuidadas. Minhas mãos pareciam quase adultas sem nenhuma das pulseiras coloridas, sem meu esmalte desgastado e glitter para todo lugar.
Fui subindo com elas, passando por uma barriga ridiculamente magra, até chegar aos meus seios.
Uou. Aquela provavelmente era a minha parte preferida! Até ri! Será que, pelo menos em sonho, eu conseguia não parecer um menino? Era uma mensagem subliminar de tudo que eu queria ser?
Era assim que pessoas bonitas se sentiam? Com vontade de rir da própria sorte de não ter que se esconder de si mesma?
Meu dente, pensei na hora. Precisava de um espelho! Queria saber como era poder sorrir sem me sentir a pessoa mais ridícula da face da terra, nem que só durante os minutos que eu conseguisse passar naquele sonho.
Escorreguei para fora da cama, sentindo o chão de madeira quente embaixo dos meus pés e minha cabeça girando um pouco. Era novembro, pensei, enquanto me mantinha imóvel o suficiente para a tontura temporária passar. Outra prova de que só podia ser um sonho era não sentir meus dedos congelando ao andar descalça até a porta que tinha logo do lado da cama.
Torci para estar certa e aquela ser só a entrada para o banheiro. Tinha a impressão de que, uma vez que saísse para o resto do hospital, meu sonho acabaria. Ou, pelo menos, me levaria a outro lugar, talvez não tão agradável quanto esse. Em um corpo mais parecido com o meu próprio.
Mas, assim que coloquei a mão na maçaneta, a luz do quarto se acendeu.
"Bridget," levei um susto ao ouvir meu nome, me virando para ver quem mais estava ali.
Não a reconheci. Parecia ser uma enfermeira qualquer. Dizem que nossos sonhos são povoados de estranhos que vemos nas ruas. Onde será que eu já a tinha visto?
"Está se sentindo melhor?" Ela perguntou, uma prancheta na sua mão. Seus olhos nem pararam em mim, ela parecia ocupada demais lendo o que estivesse escrito ali.
Isso é um sonho, pensei comigo mesma, quando senti o cheiro de limpeza que devia vir do banheiro. Ela não existe de verdade. Você está só imaginando.
"Pode ir ao banheiro se quiser," a enfermeira completou. "Não tem problema."
Por que teria?, quis perguntar. Mas só concordei com a cabeça, com receio de me mexer demais e tudo desaparecer.
Até demorei mais um tempinho para realmente girar a maçaneta, me perguntando se a enfermeira tinha algum propósito ali maior do que eu imaginava, se deveria mantê-la no meu sonho por um pouco mais.
Mas acabei abrindo a porta do banheiro mesmo assim. O cheiro de limpeza estava bem mais forte ali e deve ter contribuído imensamente para a minha tontura quando finalmente me olhei no espelho.
Era eu. Disso, tinha certeza.
Do resto, nem tanto.
Os cantos de minha vista pareciam embaçar quanto mais eu tentava notar os detalhes dolorosamente melhorados em mim. Meu rosto estava mais fino, minha pele sem nenhuma espinha. Aquilo era inacreditável! Minha imaginação tinha se superado! Até podia ver nos cantos dos meus olhos algumas pequenas rugas se juntando a olheiras. Parecia tão real! Tão diferente, mas ainda incrivelmente familiar.
Minhas sobrancelhas loiras escuras estavam ali, o contraste delas com meu cabelo era menor, mas também inegável. Meu queixo largo, quase masculino também estava ali. Se meu subconsciente queria me aliviar de alguma coisa, poderia ter aproveitado para tirar todos os motivos de piadas dos idiotas da escola.
Pelo menos, ele tirou o pior deles.
Fui me aproximando do espelho, abrindo a boca e inclinando minha cabeça de leve para trás, sentindo cada vez menos que aquilo tudo era real. Mal conseguia ver meu dente direito. Ele estava ali, claro. Aquilo ainda não tinha virado um pesadelo. Mas ele estava menor. Mais discreto. Conseguia sorrir sem ter que fechar a boca para escondê-lo.
Dei um passo para trás quando minha respiração embaçou o espelho.
Meus seios realmente deixavam claro que era uma garota, meu rosto estava magro, meu cabelo parecia completamente desembaraçado, o que devia ser um lembrete para meu cérebro de que eu ainda tinha o árduo trabalho de penteá-lo depois de Leanne ter me convencido a fazer permanente em casa. Mas, ainda que não fosse durar muito, pela primeira vez na vida, eu realmente gostei do meu reflexo.
Queria que fosse verdade.
Torci para pelo menos estar vendo meu futuro, uma premonição do que me esperava.
Dias melhores, pensei.
E senti um aperto no coração quando lembrei que, ainda que não fosse completamente improvável, demoraria demais para acontecer. E provavelmente levaria mais esforço do que minha preguiça me deixaria ter.
"Eu preciso checar seus reflexos," a voz da enfermeira voltou a preencher o quarto. Podia jurar que já tinha desaparecido dali.
Me virei para ela relutante, esperando ver qualquer outra pessoa, uma roupa diferente, algo que mostrasse que aquela parte do sonho estava para acabar. Mas ela estava normal. Vestida como enfermeira ainda e me indicando com uma mão autoritária, mas calma, que eu devia voltar à cama.
Não a contestei, ainda imersa em pensamentos de nostalgia reversa. Só conseguia ficar imaginando o quanto aquilo era cruel também, ter a sensação de que tudo finalmente estava certo, quando sabia que logo voltaria ao normal. Ela passou uma luz pelos meus olhos e fez alguns exames básicos que nem devem ser verdadeiros antes de dizer que parecia estar tudo bem. Mesmo assim, todas as vezes em que ela encostou em mim, me encolhi um pouco.
Normalmente, mesmo nos meus piores pesadelos, nada parecia tão real assim. Eu só tinha consciência de toques, quase nunca os sentia em minha pele.
Que sonho bizarro.
"Agora eu preciso te fazer algumas perguntas delicadas," falou, pegando sua prancheta da mesa de cabeceira outra vez. "Isso pode parecer estranho, mas é necessário."
Já estava esperando que fosse me perguntar se unicórnios existem, aliás, já estava preparada para entrar na brincadeira e responder que sim, quando disse:
"Que dia é hoje?"
Eu bufei uma risada. Que tipo de pergunta era aquela? "Vinte e cinco de novembro, sábado depois do dia de Ação de Graças."
Ela engoliu a seco, me observando intensamente. Aquele sonho estava começando a me decepcionar já. De que adiantava ter aquele corpo se eu teria que ficar ali, respondendo perguntas inúteis?
"De que ano?" Ela completou depois.
Eu levantei as mãos no ar e as soltei, entre desânimo e impaciência. "Três mil e trezentos," brinquei, mas sua expressão só pareceu ficar ainda mais séria.
"Em que ano estamos, Bridget?" Repetiu, seu tom me dando um calafrio.
De que importava em que ano estávamos? Todos sabiam em que ano estávamos! Não é algo que daria para ignorar, simplesmente esquecer? Principalmente no décimo primeiro mês dele.
"Oitenta e nove," respondi, e, na mesma hora, ela abaixou a cabeça, fazendo uma anotação rápida na sua prancheta. "Por quê? O que que tem?"
"Eu já volto," ela começou a se afastar, e meu instinto me disse para segurar em seu braço.
Mas foi tarde demais e ela já chegava perto da única outra porta ali.
"Um minuto, no máximo," ela prometeu, forçando um sorriso antes de sair. "Deite-se enquanto isso."
Não a obedeci. Deixei meus olhos correrem de volta pelo quarto, esperando que alguma coisa ali me desse a certeza absoluta de que realmente era um sonho.
Quer dizer, tinha que ser. Só pelo meu corpo! Meu dente! Meu rosto, que parecia bem menos infantil, mais bem cuidado e magro! Qual outra razão eu teria para estar daquele jeito? Simplesmente acordei e me vi por outros olhos? Era uma premonição? Ou eu estava drogada?
Ai, meu deus. O que aconteceu na noite passada? Será que Leanne tinha me arrastado para outra festa e eu não conseguia me lembrar?
A porta se abriu de novo e, só para me deixar ainda mais nervosa, um médico entrava junto com a enfermeira.
Chega, pensei. Se isso for um sonho, acabe aqui e agora.
Mas não acabou, o que só me fez pensar que eu tinha mesmo passado uma noite no hospital, com qualquer que fosse a droga alucinógena ainda correndo pelo meu sistema. E eles estavam me mantendo naquele quarto! Meus pais nunca conseguiriam pagar por ele!
Já podia imaginar o quanto minha mãe brigaria comigo por ter sido irresponsável e me deixar acumular dívidas que não poderíamos ter!
"Olá, Bridget," o médico sorriu, se colocando de pé na frente da cama e me olhando com condescendência educada. "É esse o seu nome?"
"Claro!" Soltei, talvez alto demais. O clima todo do quarto tinha ficado mais pesado, e eu não conseguia me livrar da sensação de que tudo estava indo errado rápido demais, como um trem descarrilhado. "Bridget Thorne."
O médico sorriu mais ainda. "Qual o nome dos seus pais?"
Caramba! Eles nem tinham chamado meus pais?
"Alba e James Thorne! Eu moro na rua Harriton, número 23, Rosedale!" Meu tom exasperado conseguiu acelerar meu coração, que só piorou quando a enfermeira mostrou algo na prancheta para o médico, e ele assentiu. "O que aconteceu?" Quis saber, antes que eles tivessem a chance de me perguntar algo idiota de novo. "O que eu tenho?"
Se é que tudo isso ainda não é uma alucinação de algum remédio que Leanne roubou da sua tia e resolveu me dar.
O médico deu a volta na cama, provavelmente percebendo que não estava conseguindo me acalmar com aquela conversa, e se sentou logo ao meu lado. Ele sorriu de novo, como deve ter sido treinado a fazer, me dando ainda mais raiva de sua falta de urgência para me explicar o que estava acontecendo.
"Você sofreu um acidente de carro, Bridget."
Na hora em que ele falou, levei minhas mãos à minha barriga, como se fosse sentir algum corte, algum hematoma.
"Você bateu a cabeça," ele apontou para o lado direito dela, e minhas mãos logo foram sentindo meu cabelo, até encontrarem um curativo enorme na parte de trás. Se o apertasse um pouco mais forte, a dor parecia se refletir até meus olhos.
Não consegui evitar lacrimejar. Como eu não tinha visto isso antes?
"Você se lembra?"
"Do quê?" Perguntei.
"Do acidente," ele respondeu, e eu balancei a cabeça. "Se lembra de quem estava com você?"
Balancei a cabeça de novo, sentindo meu coração afundar dentro de mim. Será que Lea estava comigo? Será que ela estava perdida por aí, precisando de um médico?
"Ninguém veio comigo?" Perguntei, à beira do desespero. "Eu tenho uma amiga, Leanne. Ela é a única que sabe dirigir! Eu fiz dezesseis esse ano, mas meus pais não podem me comprar um carro ainda, então nem aprendi. Só pode ter sido ela que estava dirigindo! Ela está aqui? Ela é loira, tem um e sessenta de altura!"
Minha voz ficava cada vez mais estridente, mas o médico se mantinha inabalado. "Você tem quantos anos, Bridget?"
Hã? Ele não estava entendendo que nós tínhamos preocupações bem maiores naquele momento? Como a minha melhor amiga perdida por aí depois de um acidente?
"Do que isso importa?"
"Quantos anos você tem?" Ele insistiu.
"Eu falei, dezesseis! Por isso eu preciso dos meus pais aqui!"
"Sua mãe já está voltando," a enfermeira fez o favor de falar. "Ela disse que chegava aqui à essa hora mesmo."
Não sabia se ficava mais nervosa ou calma. Ela me mataria já por saber que eu tinha tido um acidente, mais ainda quando percebesse que eu tinha deixado me colocarem em um quarto que devia custar mais que a nossa casa.
"Eles sabem que eu estou aqui?"
A enfermeira concordou com a cabeça. "Não precisa se preocupar com nada, já está tudo certo."
Por incrível que parecesse, aquilo não me acalmou muito.
Mas, claro. Eles não conheciam meus pais, não sabiam como a última coisa que minha mãe seria era compreensiva.
"Bridget, preciso que ouça bem," o médico chamou minha atenção, me fazendo virar para olhá-lo. "Você não tem dezesseis anos. Hoje não é dia 25 de novembro de oitenta e nove," ele respirou fundo, abaixando só um pouco a cabeça para se certificar de que não tinha nada entre nossos olhos e que eu o escutava perfeitamente. "Hoje é dia vinte de fevereiro. De noventa e nove."
Eu quis rir, mas a mistura de sensações dentro do meu peito era confusa demais para que reagisse.
Pronto. Era disso que eu precisava para voltar a acreditar de vez que aquilo era realmente só um sonho.
"É sério," ele falou, dispensando minha tentativa de risada, nem um pouco afetado por ela. "Nós estamos em noventa e nove."
Balancei minha cabeça. "Isso não é possível. Ontem era oitenta e nove. Você está me falando que nós viajamos no tempo?"
Ele e a enfermeira trocaram um olhar que fez toda a graça da situação desaparecer de uma vez.
"Não," falei, antes que eles tivessem a chance de me responder.
Era por isso que eu estava tão diferente? Por isso que estava tão magra! Um acidente de carro!
"Eu passei dez anos em coma?!" Meus olhos se apertaram, prestes a chorar descontroladamente.
"Não, não," o médico correu para explicar. "Você chegou aqui faz só um dia."
"Mas," pisquei algumas vezes, tentando encontrar algum sentido em tudo aquilo, "então é oitenta e nove? Mas é fevereiro? É o ano de noventa? Eu não estou entendendo nada agora."
"Qual é a última coisa da qual você se lembra?"
Do meu sonho, para falar a verdade.
Mas me coloquei para pensar, tentando avançar em minhas memórias, que eram tão frescas, que eu ainda tinha um medo enorme de acreditar no que ele estava falando.
"Eu lembro de ir ao cinema com a minha amiga e o irmão dela," falei, quase tão baixo quanto um sussurro. "Não lembro bem do filme, mas isso a gente esquece mesmo, não?"
Meus olhos procuraram compreensão nos da enfermeira e do médico, mas eles ainda me miravam com preocupação, o que não ajudava nem um pouco.
"Era novembro. Se eu cheguei faz um dia, significa que eu esqueci mais de dois meses da minha vida?" Só a ideia já me fez sentir o pânico esmagar meu peito. "Já estamos então em noventa-"
"E nove," o médico completou, me mostrando o jornal outra vez.
Mas a única coisa que eu conseguia fazer era balançar a cabeça.
"Nós acreditamos que você se esqueceu de dez anos."
Até mesmo minha vontade de rir agora parecia mais com vontade de chorar.
"Isso não é possível," falei. "Ninguém esquece de dez anos! É muito tempo!" E então uma ideia me veio à cabeça. "Espera aí, isso é alguma brincadeira?" Bufei uma risada. "Leanne contratou vocês para me enganar, é isso?" Assim que avistei outra vez o jornal, o peguei para mim, abrindo as páginas e esperando encontrar várias em branco.
Mas ele estava cheio de notícias das mais absurdas.
"O que é iBook?" Perguntei. "E euro?" Quis rir de novo. "Vocês realmente se empenharam para criar tudo isso, não?"
"Eu sei que é muito para absorver de uma vez," o médico se levantou, "mas quanto mais cedo você aceitar, mais fácil vai ser. Assim que sua mãe chegar, vamos trazê-la aqui e ela poderá explicar um pouco mais para você."
"Espera!" Pedi, quando percebi que ele sairia dali antes de me responder a pergunta mais importante. "Vamos fingir que tudo que você falou é verdade e que eu realmente sofri um acidente e esqueci do que deve ter sido os melhores anos da minha vida. Se você não está mentindo, se estamos mesmo em noventa e nove e eu sofri um acidente, quem estava comigo?"
Ele balançou a cabeça, colocando as mãos nos bolsos do jaleco. "Não sabemos. Estávamos esperando que você nos ajudasse a descobrir."
Depois da resposta mais vaga e da informação mais absurda que ele poderia me dar, me deixou sozinha outra vez no meu quarto.
No máximo, a enfermeira me prometeu que traria minhas coisas.
Quais coisas? Se eu tinha mesmo esquecido de dez anos da minha vida, o que será que ela estaria me trazendo? O que estaria dentro da bolsa preta que ela apareceu segurando quando entrou de novo no quarto?
"Tem algum telefone que eu possa usar?" Pedi, quando ela a colocou nas minhas mãos. "Preciso ligar para a minha amiga!"
"Eu acho que você tem um celular," respondeu, sorrindo.
"Eu tenho o quê?"
"Oh," ela soltou. "Você não sabe, não é?" Colocou a mão dentro da bolsa e tirou de lá um aparelho vermelho e pequeno, com botões de telefone e um pequeno retângulo preto.
"Aqui, você coloca o número dela nessas teclas e liga apertando esse botão," falou. "Ah," suspirou depois. "Tem uma senha. Será que você lembra do seu código?"
Balancei minha cabeça.
Código? Celular? Noventa e nove?
Por que aquilo não podia ser um sonho?
"Não tem um telefone normal?" Pedi, minha voz ameaçando estremecer. "Minha mãe chega quando?"
"Ela disse que vinha hoje às oito," respondeu, me observando de lado. "Já passou um pouco das oito. Deve chegar a qualquer minuto."
Concordei com a cabeça. Não queria que a enfermeira estivesse ali, mas não queria que saísse. Não queria ficar sozinha.
"Ela deve demorar uns cinco minutos só," falei, percebendo pela primeira vez que a minha voz estava diferente.
Pigarreei.
"Cinco minutos," testei de novo, clareando a garganta antes de repetir. "Cinco. Minutos."
Não era nenhuma diferença que eu conseguisse realmente apontar, só uma impressão de que não soava mais como a mesma.
A enfermeira só me observou acrescentar mais uma coisa à péssima lista de razões para acreditar neles.
"Meu cabelo," eu falava praticamente comigo mesma, e ela foi legal o suficiente de não me interromper. "Minhas pernas. Meus seios," minhas mãos os seguraram. "Eu tenho o corpo de uma mulher de vinte e cinco anos," não era uma pergunta. "O que eu fiz nos meus dentes?" Essa era.
Mas ela balançou a cabeça. "Não sei, não foi aqui."
Ah. Verdade. Ela nem devia saber que tinha alguma coisa para fazer.
"Eu tenho cara de vinte e cinco?" Perguntei, e ela só arqueou as sobrancelhas. "Estou diferente, sei disso, mas sei lá," escorreguei de volta da cama, indo direto até o banheiro e voltando a me mirar no espelho.
Era eu, ainda tinha certeza disso.
E, se me deixasse acreditar, realmente parecia que eu estava mais velha. Se era o suficiente para uma década inteira mais velha, não sabia.
"Eu perdi a década de noventa inteira," falei, esticando minhas bochechas, a pele em volta dos meus olhos, testando rugas.
Mas não tinha nenhuma direito. Nada além de olheiras.
"Na verdade, você não perdeu," a enfermeira respondeu. "Você viveu cada ano dela. Só não se lembra."
Voltei para o quarto na hora. "E eu vou me lembrar?"
Ela balançou a cabeça. "Não tem como saber."
"O médico não sabe?" Perguntei, mas ela só negou. "Nem tem algum prazo, alguma coisa assim? Algum outro caso disso acontecer que vocês possam comparar?"
Estava começando a soar desesperada, mas era inevitável! Nem percebi direito quando voltei a me sentar na cama.
"Cada caso é diferente. Já teve gente que se esqueceu de bem mais tempo e se lembrou alguns dias depois. E gente que esqueceu alguns meses e nunca recuperou a memória."
Aquilo fez meu coração pular uma batida. "Você está falando que pode ser que eu nunca recupere minha memória? Nunca mais?"
Ela até entortou a boca, em uma tentativa de sorriso, mas acabou engolindo a seco. "Não tem como prever."
"Mas pode ser que aconteça? Que eu nunca mais saiba o que fiz nos últimos dez anos?"
"Existe a possibilidade, sim," ela fazia movimentos discretos para indicar a porta. "Eu vou chamar seu médico de novo, e ele vai poder explicar melhor seu diagnóstico."
"Não, espera," chamei, quando ela já chegava perto da porta. "Tem como você checar na portaria se a minha mãe já chegou? A gente mora a menos de sete quadras daqui, ela já devia-"
As palavras morreram na minha boca, enquanto eu sentia uma sensação assustadora tomar conta de mim.
Eu não sabia aonde estava. Não sabia se era no hospital da nossa cidade. Nem onde eu morava.
E aquela enfermeira não conseguiria responder metade das minhas perguntas.
"Eu," queria perguntar onde estávamos, mas também explicar minha confusão. Só não conseguia fazer as palavras saírem. "Quer dizer, se-"
Dessa vez, fui interrompida por uma batida na porta.
Minhas pernas até fraquejaram quando eu vi o rosto familiar da minha mãe entrar no quarto. Era felicidade, vontade de abraçá-la e nunca mais soltar. Não era só alguém de quem eu conseguia me lembrar, um perfume característico e o sorriso mais acolhedor do mundo, era a única pessoa que poderia me ajudar a lembrar da minha vida. Para todo o meu medo de não saber quem eu era e onde estava, minha mãe seria a salvadora.
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