Capítulo único
Uma Caçada difícil
Pricila Elspeth
Você desperta com o sinal sonoro emitido pela pulseira multifuncional que enlaça seu pulso esquerdo. Ao consultá-la, confirma seu temor, não está mais em segurança, pois seu perseguidor está em seu encalço. Você se levanta pegando sua mochila hi-tech, apaga a fogueira derramando sobre ela um pouco d'água e dispara a correr embrenhando-se pela mata.
Conforme corre sente os galhos dos arbustos chicotearem sua face e por mais que proteja-a com os braços cruzados à frente do rosto, sempre sobra uma superfície de pele desprotegida. Sua mente calcula rapidamente uma rota de fuga com base na leitura dos mapas que fizeste antes de deixar a cidade, pois sabia que teria de desligar todos os equipamentos que operam on-line, incluindo o segundo cérebro. As rotas são confusas e todas parecem longas demais agora, não pareceram assim hoje de manhã.
Você precisa chegar até o riacho, só assim ganhará tempo e aumentará a distância entre vocês. Mas você sabe que não terá tempo de preparar o equipamento para atravessá-lo, seriam necessários dez preciosos minutos que você necessita usar correndo. Agora se arrepende de não ter comprado aquelas baterias reservas que o suposto charlatão vendia no último posto avançado, sabe que é tarde, mas não pode evitar o arrependimento.
Seus olhos ardem por conta do contato direto com o espesso ar frio e também por conta dos constantes e inevitáveis choques com folhas e insetos voadores. Sua pele coça lhe trazendo o forte incomodo devido à viscosidade sanguínea que escorre das lacerações. Suas pernas doem, seus músculos ardem, o sono, a sede e a fome já não são seus maiores problemas, tudo isso pode ser contornado, mas ele... ele não.
Você pisa em falso num desnível do terreno e perdendo o equilíbrio se vê na obrigação de projetar o corpo numa cambalhota para evitar maiores problemas. A intenção foi boa, mas não contava com o lamaçal. Você se levanta com as vestes enlameadas e pingando, deixando para trás um rastro muito fácil de ser seguido, ainda mais para um caçador habilidoso e impiedoso como ele.
Agora você está sem muitas alternativas e resolve perder um ou dois minutos para garantir sua sobrevivência por mais tempo. Quando retira a mochila das costas sente um alivio que deseja estender, mas sabe que não pode. Rapidamente você aciona a descompressão do traje e ele descola da sua pele e se torna um saco em forma de X. Você larga-o ali mesmo e pega a mochila novamente, é pesada, mas vai garantir sua sobrevivência e você sabe disso.
Correndo descalço sente os finos grãos de terra endurecida, pequenos seixos e fragmentos de madeira espetar suas solas e deseja não estar ali, qualquer troca seria melhor, até mesmo as minas de extração na Terra ofereceriam melhores condições que esse maldito planeta. Pensamentos medonhos invadem sua mente, como aquela pegada gigante que encontrou próximo ao pântano ontem a noite, mas teorizar sobre o animal que deixou aquela marca não salvará sua vida, então retorna à realidade.
Sabe que correndo à essa velocidade por este trajeto levará só mais alguns minutos para chegar ao riacho, mas não sabe o que fará quando chegar lá. É mais comum do que imagina. Quem foge não pensa muito bem, só age por instinto e você tem conhecimento disso, já esteve do outro lado. Aguardando, calculando, prevendo erros e sorrindo com os resultados de suas previsões, já esteve um, dois ou até três passos à frente, mas agora, é ele que sorri, que se deleita com seu desespero, com sua fuga desastrosa... de alguma forma você tem certeza que essa caçada poderia ter acabado no planeta anterior.
Seus pés tocando o chão frio, sente a diferença de temperatura, e uma solução temporária assume seus pensamentos como o sol que toma conta da escotilha de uma rapieira. Com o braço curvado para trás você alcança o compartimento refrigerado da mochila, por sorte o mecanismo é preciso e foi pensado para situações delicadas; como esta. Você retira um frasco do mutagênico e sorve de uma vez. O gosto é bom, doce, de textura sedosa, deixa sua língua com uma camada lisa sobre ela, suas papilas fazem festa e clamam por mais, sua garganta se contrai por alguns segundos depois começa expandir vagarosamente. Sua visão também muda, torna-se mais periférica, monocromática e tudo parece mover-se mais devagar em sua direção. Você ouve seus ossos estalando conforme se realocam no interior de seu corpo e o processo é mais doloroso que o normal porque você está em movimento. Seus músculos enrijecem e se expandem ocupando espaços novos e impensáveis para você antes. Sua audição se torna fraca, mas seu olfato se torna mais poderoso, você sente o cheiro do orvalho, da terra úmida e se lembra de sua antiga casa nas fazendas de Tarantis e o cheiro amargo das folhas esmagadas lhe enchem a boca de saliva. Sua coluna estica e curva-se facilitando o apoio dos quatro membros no solo e a pele tornando-se áspera e escamosa diminui a sensação gélida do ambiente. Você sente dores ao redor do crânio e percebe que protuberâncias ósseas abrem caminho através da pele para armar sua cabeça com poderosos chifres espiralados. O ar entrando por seu nariz, que agora está no topo do seu crânio, é tão gelado que lhe causa irritações por todo o corpo, que começa crescer e emoldurar-se numa besta quase irracional.
Você avista o riacho e com seus grandes pés gera o impulso necessário para elevar seu pesado corpo que agora tem mais de trezentos por cento do seu peso humano. O voo é lento e excitante. Você sente a diferença de temperatura, pois, os ventos que sopram na direção do riacho são mais quentes e só quando passam por cima dele perdem calor ao ponto de congelar qualquer superfície que toca do outro lado. Sua enorme boca dentada se abre absorvendo grande quantidade de ar, seus olhos distinguem na paisagem adiante uma formação rochosa, aquela que havia visto nos mapas, sabe que ali poderá ter uma chance de despistá-lo; ao menos por enquanto.
Você sente um impacto no ombro direito e instintivamente seus membros movem-se em direções aleatórias como se quisessem agarrar algo inexistente enquanto cai por perder o controle do salto. Quando choca-se com o chão você rola por alguns metros e só então sente a dor lancinante atravessar seu ombro, percorrer pelo pescoço e espetar seu cérebro orgânico. Sua mão alcança o ferimento e sente a textura pegajosa do vitae, além disso, há um buraco que abriram na sua carne, provavelmente com uma pistola multifásica ou plasma de baixa potência, seja como for, não vai melhorar.
Você se levanta e põe-se a correr, ainda olha para trás a tempo de ver seu perseguidor parado na margem do riacho com os olhos fixos em você, um sorriso confiante no rosto e um rifle de plasma multifásico nas mãos, como você havia suspeitado. Ele levará algum tempo para atravessar e isso te dá mais uma chance de fugir. Tenta se concentrar para traçar uma estratégia, mas a fome não lhe deixa pensar. Suas pernas se esticam à frente do corpo buscando ganhar terreno, só que você bem sabe que a tendência agora é diminuição da velocidade por conta do cansaço, do ferimento e falta de energia.
Você não foi uma pessoa tão má, não é mesmo? Aquele cargueiro Adamico foi um mero acidente, mas o Venusiano não. O incidente no espaçoporto de Gipo foi bastante lucrativo e o tráfico de espécies para outros sistemas planetários foi realmente uma operação ousada, mas tudo tem um preço não é? Se ao menos seu perseguidor não fosse ele, talvez tivesse uma chance, mas sabe que é questão de tempo, então por que não se entrega e acaba com isso? Ah, aí está. Você sabe que por menor que seja a possibilidade, ela deve ser explorada e que tudo pode ser curado com o tempo, exceto o arrependimento de poder te tentado. Seus pensamentos se tornam flashes que assaltam sua mente buscando sua consciência, mas a irracionalidade potencializada pela droga luta contra isso. Aquela menina, você sabia que ela estava no hangar de carga quando o despressurizou para lançar ao espaço sua carga roubada e livrar-se de quaisquer provas que pudessem te incriminar, e sabia que seria algo a mais na conta dele contra você. Mas e aquele grupo no deserto de Kunia, em Gipo? Você os salvou, dividiu sua água e os levou até o espaçoporto. Um acerto, mil erros, a qual prato da balança acha que ele vai se ater? Justamente!
Seus pulmões estão cansados de inspirar e expirar, cada vez menos ar é acomodado por eles e isso está prejudicando todo seu metabolismo. Sua visão se estreita, a paisagem rochosa à sua frente torna-se escura e disforme até que você se sente perdendo o controle de seus membros e inevitavelmente sua face choca-se contra o solo levemente aquecido pelo sol maior, que acaba de despontar no horizonte, por sorte o outro demorará algumas horas para surgir. Você está arfando, suando, sente o ar quente adentrar pelo respirador no crânio, percorrer a coluna e inflar seus pulmões, mas isso machuca, não é o ideal para uma anatomia adaptada para águas profundas e climas frios. Errar na hora de tomar o composto mutagênico pode ser realmente fatal. Sua mente confusa e assustada imagina o som dos passos lentos e ritmados daquele maldito e exímio caçador de recompensas; engole em seco e com o braço dobrado para trás busca alcançar o compartimento de drogas, decide testar mais um.
Este tem uma coloração rosada e cheiro cítrico. O gosto é amargo e travoso, desce com dificuldade e lhe causa náuseas, mas você consegue controlar seu corpo. Enquanto aguarda o composto fazer efeito, usa as garras para arrastar-se pelo deserto de pedras chatas, seu objetivo é a formação rochosa, pois, viu nas leituras dos mapas que abaixo dela há um rio que corre para o leste e desemboca no mar. A escolha da droga foi precisa, pena não ter calculado o quanto a temperatura afetaria seu desempenho, agora, resta torcer para que a próxima forma seja adaptável a um ambiente aquoso e quente.
Engatinhando sob o chão que se aquece paulatinamente você sente quando o composto começa fazer efeito. Primeiro surge uma queimação característica no estômago e se espalha pelo corpo todo através da corrente sanguínea, o líquido abre caminho pelas veias como lava derretida fazendo seu caminho por entre as rochas de uma montanha. Sua mandíbula trava e começa se contrair, a dor é maior que imaginava ser possível suportar, na tentativa de conter os gritos você cerra os dentes e os sente trincar. Cada braçada é um metro a menos até seu destino, porém, são mais de mil até lá.
Seu pescoço toma uma forma mais delgada e a massa que o compunha escorrega pelos ombros e é depositada nas costas, entre as escápulas. Seus olhos ardem demais para mantê-los abertos, você sente o ar tórrido entrar por suas vias aéreas que começam se deslocar para a frente de sua face e sente que os novos pulmões estão confortáveis em respirar esse tipo de ar, talvez tenha escolhido o frasco certo dessa vez. Suas costelas estalam e a dor é forte demais para conter o grito. Você ouve sua voz ecoar pela planície pedregosa e sua mão direita esmaga um pequeno seixo entre os dedos. Com essa força poderia lutar e ferí-lo, mas seria arriscado, pois, se ele tiver uma arma de curto alcance, ceifará sua vida em segundos, sabe o quão bom ele é.
Os pelos vão te proteger do sol e possivelmente de algum novo impacto, mas vão diminuir sua velocidade na água, bem, o que isso importa? Quando seus olhos se abrem, você se assusta com sua nova percepção de mundo, tudo ao seu redor pode ser visto ao mesmo tempo, as cores são mais vivas, em contrapartida, a profundidade é comprometida; imagens de objetos distantes se tornam borradas e indecifráveis, é o preço que se dispôs a pagar, não é?
Seus músculos fortes colocam seu corpo de pé e então agora você pode correr. Conforme seus pés tocam o chão durante o galope, você sente a vibração causada pela água chocando-se contra as rochas subterrâneas, o indivíduo do qual foge está cada vez mais distante, você sente o cheiro dele enfraquecendo e isso faz seu coração bater num ritmo diferente, acelerado, mas de um jeito bom. Por fim você alcança a formação rochosa e encontra a abertura no solo pela qual pode ver a água refletindo a luz solar criando imagens abstratas nas paredes cinzentas, como se fossem teias de vidro que se movem aleatoriamente.
Você tem um pouco de dificuldade de passar pela abertura, pois, seu corpo ocupa um espaço maior que o previsto. Sua única alternativa é espremer-se e você o faz. Seus ombros ficam presos e o desespero começa a tomar conta de sua consciência. Seus pés fincam no chão e impulsionam seu corpo para dentro, mas você está lutando contra uma força que não pode vencer. Sente a dor da pele sendo lacerada por arrastá-la contra as rochas, depois sente os ossos sendo pressionados e estalarem como se estivessem trincando, seus dentes se encontram e seu maxilar trava impedindo o grito de dor. Você sente que está conseguindo passar pela abertura, é incomodo, doloroso, mas é a única forma de escapar. Boa parte do seu corpo já passou pelo maldito buraco, seus pés firmes empurram o corpo cada vez mais pesado. Num momento inesperado você atravessa a abertura e cai direto na água fria e transparente. Sua boca se enche com aquele líquido tão precioso e você sente o gosto ferroso, sem perceber feriu a boca enquanto lutava para não gritar, só então começa notar as dores que se espalham por seu corpo, latejando e arrancando tortuosas caretas daquilo que você compreende como face.
Depois de horas dentro da correnteza, você agarra-se à margem e sobe para uma pedra chata, já não está mais no subterrâneo, os dois sois são visíveis no céu, assim como os grandes anéis que circundam o planeta, criando uma maravilhosa linha prateada que atravessa a abobada celeste numa trajetória diagonal. Você se sente melhor, seus ferimentos foram regenerados e não sente mais o cansaço de antes, no entanto, precisa se alimentar.
Você sabe que não terá descanso de fato enquanto ele estiver em seu encalço. Mas sobreviver o maior tempo possível já parece ser um grande feito. Aproveitando-se de sua forma e da força que possui, você consegue pescar alguns lamutis, que não são muito gostosos, mas não está em posição de escolha. Sem poder fazer fogueira para não atrair o caçador, você abate os animais e começa comê-los cru mesmo. A primeira dentada foi maravilhosa, a textura macia, a carne viscosa, o fluido doce escorrendo do animal direto para sua garganta, fazem você sentir-se com vida, com energia e com esperanças revitalizadas. No entanto, enquanto come, sua forma começa a mudar e seu corpo pouco a pouco perde as características da besta que havia se tornado. De estômago ainda vazio, você precisa encarar essa refeição e então, a segunda dentada não é tão prazerosa. A carne é viscosa demais, o sangue do animal é amargo, a textura da pele é limosa e rugada, seus dentes mal apertam a carne, pois, sua garganta começa se fechar por conta do nojo que sente. Entendendo que essa é a única maneira de sobreviver, você respira fundo e engole uma porção de carne, depois outra e outra e outra, até não restar mais nada a ser devorado. Agora precisa lutar para manter tudo dentro do estômago. Em primeiro lugar porque precisa da energia que a alimentação vai te proporcionar, e em segundo, porque se vomitar, o caçador encontrará resquícios e saberá que está mais fraco, e com isso intensificará a caçada.
De estômago cheio logo você começa a sentir os olhos pesados e sua boca abre-se involuntariamente por conta dos constantes bocejos. Você sente medo de dormir, o medo faz sua espinha gelar e sua pele arrepiar-se, seus ouvidos parecem se abrir procurando algum som que não seja o rugido do rio a sua frente. Você sabe que o cérebro leptrônico seria de grande auxilio, com ele poderia ter acesso aos satélites que estão em órbita do planeta e com isso mapear o terreno ao seu redor, além de poder estar sempre ciente da distância entre você e o caçador de recompensas. No entanto, ele saberia sua exata posição enquanto ele estiver ativo. Seus dedos se fecham sobre a palma da mão e você se percebe esmurrando sua própria perna.
Com as mãos você coleta água do rio e lava o rosto por diversas vezes, mas isso não ajuda muito, o sono insiste em dominar seu corpo e você não entende o porquê. Sentindo os músculos tremerem e abalarem seu corpo, sente a necessidade de mais uma dose do mutagênico, e agora compreende de onde vem o sono. Cada vez que teu corpo passa pela metamorfose, consome energia demais e para recuperá-la é preciso descanso e alimentação adequada, o que você não tem há tempos, e como percebeu, está usando o mutagênico com uma frequência cada vez maior, sabe o que significa, só não quer admitir.
Você salta novamente no rio e deixa que as águas levem seu corpo para longe. Se é que ainda pode confiar em suas memórias, esse rio poderá levá-lo para perto de um vilarejo, onde poderá conseguir alimentação e talvez um veículo.
Você abre os olhos depois de sentir um impacto contra suas costelas. O susto e a dor faz com que se lance para a margem e se arraste para fora do rio, sem perceber, você dormiu e não sabe por quanto tempo. O céu está com um tom escuro de roxo e a única coisa luminosa nele são os anéis prateados cortando o manto da noite. Sem a referência de quando os sóis se puseram é impossível saber quanto tempo tem até amanhecer novamente. Você está com frio, sente seu corpo enrugado e suas juntas doloridas, além da tremedeira, sente o nariz escorrendo, os lábios secos e rachados indicam que está com febre, pode ser qualquer coisa: parasitas, hipotermia, insolação, resfriado ou veneno de algum animal que o mordeu sem que percebesse, mas não dá para ter certeza sem ligar o maldito cérebro inorgânico, o mesmo dispositivo que pode salvar sua vida, também pode colocar sobre você uma imensa seta em neon. Você precisa tomar uma decisão rápida.
Com uma olhada despretensiosa ao redor você percebe um bosque há poucos metros de ti, as árvores são próximas e de coloração roxa, isso é medonho, sente isso na pele, mas lhe conferirá certo nível de camuflagem... ou melhor, poderia conferir, mas você deixou o traje para trás. Mesmo assim, adentra o bosque buscando refúgio.
O caminho é escuro e solitário, nada por ali emite qualquer som, com exceção das plantas quanto você esbarra nelas; as diurnas só sussurram, mas as noturnas rosnam. É apavorante, não importa quantas vezes ouça isso, você não consegue se acostumar. Sua mente é assaltada por uma lembrança antiga, a primeira vez que viajou para fora de seu planeta natal você tinha apenas seis anos e foi justamente para Kalyos, não é uma viagem muito divertida para uma criança, mas os prédios monumentais, apartamentos flutuantes e hologramas com IA lhe encantaram como nada havia feito antes. E por ironia do destino, foi naquele planeta que sua primeira filha nasceu; agora você sente um aperto no peito, os passos se tornam ritmados com os batimentos cardíacos e a saudade soma-se ao medo fazendo com que seu raciocínio seja diminuído gradativamente.
A exaustão atinge seu corpo, você sente seus músculos rígidos e doloridos, a língua seca e áspera clama por um gole d'água, o estômago dói, talvez por não estar conseguindo digerir os lamutis que comeu, sua cabeça dói e seu sistema de orientação não está funcionando muito bem, sua mão toca a grossa casca de uma árvore e você sente ela mover-se lentamente como se estivesse respirando enquanto dorme. Você sabe que não pode mais avançar, precisa de remédios ou ligar o cérebro artificial para que os nanorobôs curem você.
Você acorda suando e tremendo, dores lancinantes tomam conta de seus membros, sua cabeça parece inchada e sente o melado descendo pelo pescoço. Está muito escuro, mas quando você toca-o e cheira-o compreende que é sangue, seus ouvidos estão sangrando. Agora você tem certeza que precisa de ajuda, há veneno no seu corpo, talvez de algo dentro dos lamutis, ou algo no rio que você não conseguiu perceber. Os ossos de sua face tilintam e esse fato aumenta tua preocupação, pois, à noite esse tipo de som pode se propagar por muitas centenas de metros, funcionando como um sonar para um caçador habilidoso como ele. Você se levanta apoiando-se nas árvores e começa a caminhar sem rumo. Seus pés sentem o chão úmido e macio, levemente escorregadio com pequenos talos de folhas a espetar os vãos entre os dedos. Seus passos trôpegos te levam por um caminho desconhecido e de forma completamente descuidada você deixa para trás uma trilha de galhos tortos e partidos, lembra-se dos erros cometidos, mas não consegue prevê-los, isso é muito ruim para alguém que está fugindo.
Seu estômago parece estar revirando e você começa sentir um gosto azedo subir pela garganta ao mesmo tempo que a boca começa salivar, é inevitável, não conseguirá manter seu almoço dentro de ti. Enquanto para buscando respirar de maneira confortável escuta estalos distantes; ele está chegando. Você tenta segurar, mas não consegue, seus joelhos dobram-se e tu cais ao chão enquanto regurgita os lamutis; ou que restou deles. Sente a fraqueza tomar conta de seu corpo de uma maneira que nunca havia sentido. Instintivamente tua mão mergulha no compartimento refrigerado e envolve um tubo de mutagênico.
O líquido branco fluorescente parece atraente, no entanto, você sabe que após tomar essa dose só restarão mais duas; e sabe que seu estado atual se dá parte por contaminação e parte por abstinência. Relutante, leva o frasco aos lábios ainda com o lacre. Escuta os passos do caçador aproximando-se, pisando sobre folhas encharcadas e fungos crepitantes, sem opção melhor, você sorve a porção em dois goles: o primeiro gera uma sensação de refrescância em toda sua boca, deixa a língua um pouco sensível, mas logo essa sensibilidade é atenuada pela película aveludada com sabor adocicado deixado pelo composto, o segundo gole eleva seus níveis de satisfação, você sente o doce com nota final azeda descer pela garganta e instintivamente fecha os olhos e inspira demoradamente, após expirar põe-se a caminhar ainda de maneira tortuosa.
Sua mente começa a resgatar memórias há muito tempo enterradas e isso desencadeia diversas reações negativas em seu corpo: dores, fisgadas, tremedeiras, lágrimas e soluços, além da vontade de sentar e chorar. A segunda filha você nunca conseguiu esquecer, morreu por conta da sua vida dupla. A cena é muito clara em sua mente. Você saindo da loja de conveniências do espaçoporto marciano, a aeromoto passa em frente à loja e o condutor dispara uma granada de fragmentação, o alvo era você, mas por estar sempre pensando na sua segurança, vestia um traje protetor; a menina não. Inevitavelmente a imagem do menino, o terceiro filho, lhe vêm à mente, não sabe como está, faz muito tempo que não o vê, sente saudades e por algum motivo sente no fundo do amago que não tornará a vê-lo.
O arrependimento de uma vida criminosa lhe cai sobre os ombros imaginários da consciência, mas agora é muito tarde. Por mais que corra, ele irá te alcançar e você sabe disso. Sente seu corpo transmutando novamente, dessa vez é mais dolorido, suas energias estão no fim e você não sabe se conseguirá completar a metamorfose. Sua pele se estica para acomodar a nova musculatura que se expande lentamente acompanhando o crescimento paulatino dos ossos. Você ouve seus próprios gemidos, tenta controla-los, mas falha miseravelmente, a escuridão torna-se agradável aos seus novos olhos capazes de enxergar na penumbra, seus ouvidos tornam-se mais sensíveis, assim como o olfato. Sente suas costelas se afastarem e a uma membrana de pele começa ligar seus braços às pernas; como os membros de um extinto passagão amarelo.
Você está ofegante, mal consegue trocar as passadas. Seu corpo desaba e passa a arrastar-se sobre aquela superfície permeada de matéria orgânica em decomposição. Suas garras cravam-se no chão e teus doloridos bíceps forçam seu corpo para frente, desesperadamente você move os quatro membros como se estivesse nadando, na tentativa de avançar para longe. Inexplicavelmente sua vontade de provar mais uma dose do mutagênico surge novamente e desta vez ainda mais forte. Mas você pondera por alguns instantes e conclui que se parar para tomá-lo, perderá segundos preciosos de vantagem.
Seus ouvidos captam os passos do caçador e ele está bem próximo. O cheiro dele invade suas narinas fazendo você sentir uma repulsa descomunal. Você sente a necessidade de olhar para trás e medir a distância que há entre vocês. Tudo brilha num tom de cinza, ele está avançando lentamente com o rifle nas costas e um computador no antebraço. Você percebe que ele está te rastreando de alguma forma, não pode ser pelo rastro de calor, pois, o mutagênico baixa sua temperatura para igualar ao ambiente, seu cheiro está muito diferente, então só pode ser... um rastreador, possivelmente implantado com o último disparo que atingiu seu ombro.
Sem forças para avançar você deita olhando as copas das árvores e respira com dificuldade, sente o ar úmido passear por sua pele como mãos de fadas acariciando teu corpo antes de lhe levarem para o descanso eterno. Ele se aproxima, sorridente e observa você por alguns momentos. Seus olhos buscam conforto no céu roxo que se projeta pelas falhas nas copas, mas ele lhe tira esse último prazer. Caminha sobre teu corpo e lhe encara com muito ódio estampado na face. O rosto coberto por pelos castanhos, a bandana vermelha e a jaqueta de couro com o emblema da Fianny são mais aterradoras que o próprio rifle de plasma a poucos centímetros de seus olhos.
"Agora acabou!"
A voz dele é grave e carregada, você sente todo o peso do ódio que ele carrega por ti, tudo o que causou de sofrimento a ele e a família dele. Você compreende que poderia ter evitado tudo isso se não o tivesse traído. Ele confiava em você, mas você sabia um segredo do qual ele não poderia desconfiar. Jamais havia lhe passado pela cabeça que colocá-lo no caminho da maior saqueadora da galáxia acabaria de forma tão inusitada, uma pena as coisas não terem saído como planejadas; ele morrer, teria sido perfeito, você sabia do segredo dela e estenderia o ombro amigo, mas não foi assim que aconteceu. Ela ter sobrevivido e você não estar só quando ela foi encontrada, também foi uma grande sacanagem do destino. Você esperava o que de um cara como ele? Um guerreiro destemido. Um veterano, amante de aventuras, motos e armas... Não se mexe com um cambutó sem levar ferroadas.
Maldita ambição. Você se arrepende de tramar contra Bárbara e Rodamo, mas é muito tarde. Seus filhos vão perder-te, assim como os dele perdeu a mãe pirata maluca e o pai que se tornou um vingador extremista. Você abre a boca e busca ar, tenta proferir suas últimas palavras, mas ele não permite.
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Olá pessoas, tudo bem?
Esse conto é parte do meu universo sci-fi, o Fictesia, e foi escrito para homenagear um amigo (Renê) e também para explorar duas coisas: a primeira é uma caçada narrada pelo ponto de vista do alvo e a segunda é a narrativa em segundo pessoa.
Espero que tenham gostado.
Cada voto e comentário ajuda a salvar os unicórnios dos maus tratos.
Beijos!
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