Capítulo 1 - Maio e Todo Resto Acabam em 7 Dias
Chegou uma carta aquela manhã. '' 7 dias, parque Ibirapuera, bodybuilder arrancando árvores, mande Sara Seixas a merda, tenha certeza''.
Raul jogou envelope e documento no cesto de lixo, bocejou e seguiu ao banheiro.
Um punho acertou a porta do apartamento três vezes. Bum, bum e bum. O toalete ficava sete passos da entrada da residência, a escova pairava na boca de Raul, os olhos fixos no reflexo do amontoado de espuma branca com traçados verdes, e breves, caoticamente espalhados ao redor dos lábios, as cerdas paradas sobre a fileira esquerda e inferior dos dentes.
Um, dois e três segundos. Raul piscou, pôs para fora um cuspe com parte da pasta e enxaguou a boca. A escova caiu no chão, praguejou, água entrou pela passagem do ar, tossiu, se agachou para pegar a escova e a testa encontrou pia.
— O que houve com sua testa? Um stand inimigo?
Um ovni apareceu na minha varanda e mandou que eu entrasse na nave, recusei e eles dispararam contra mim. Quando apertei três vezes a descarga o banheiro foi inundado até o teto e ao nadar para cima acabei no mar de uma terra mágica onde me aventurei até voltar para cá. Um bandido entrou aqui armado com uma faca e durante nossa...
— Oi, terra para Raul, consegue me ouvir?
— T-tava f-fazendo, prat-ticando a arte milenar da t-tatuagem usando... itens caseiros!
— Uou, que loco - e entrou no aposento. - Tem algo na geladeira? Tô me movendo só a base de água e qualquer estúpido restigio de gordura que meu corpo acumulou em uma época mais farta, mais connhecida como rodizio de pizza na casa do Valmir ontem a noite. Ah, foi a versão beta do Éden! Devia ter ido.
A fitou entrar, virar a esquerda, pegar um prato na pia que fica a três passos do banheiro, girar trezentos e sessenta graus e alcançar a geladeira.
— Ovo, queijo, leite... hmmm... manteiga... - os olhos de Lili esbugalharam, as íris de um cinza claro deslizaram até Raul e as mãos tencionaram em prato e porta. - Não... não tem... não tem pizza...
Uma gota de suor desceu Raul têmpora a queixo, os lábios moveram-se tenuamente e o nariz cessou o puxar de ar. Isso era necessário? Havia alguma etiqueta sobre ter amigos que dizia que sempre deve haver pizza pro caso de uma visita surpresa?
— Faz um omelete pra mim?
Não.
— ☯ —
— Meu caro, devo saudar suas habilidades. Saiba que se eu fosse a rainha da Inglaterra teria um ''Sir'' pronto para colocar a frente do seu nome.
Mastigou o próprio omelete e bebeu o copo de capuccino com leite e chocolate e mais café do que os cinquenta miligramas que o médico recomendara.
Lili levou o prato a frente do rosto e o lambeu.
Ugghhh...
— Muito obrigado, Sir Raul. Mas com o evento de dilatação do universo em constante ação as distâncias se alongam e ainda há lugares onde minha presença deve se fazer notar.
Ela levantou. Vestia uma blusa sem mangas negra e de bordas rosas e uma calça leging com o padrão inverso, o cabelo estava trançado e sumia as costas da camisa, tinha o porte atlético. Os passos soaram baixos contra o piso, o punho alcançou a maçaneta e a girou.
— Ah - a cabeça de lili pendeu para trás e o olho direito fitou de lado Raul. - Joelson disse para passar na editora.
E desapareceu porta a fora.
— ☯ —☯
''As ruas são barulhentas'' Raul escrevera certa vez. '' Não, não os carros e suas buzinas, os passos e conversas de transeuntes ou a luta de vendedores para chamar atenção. Os olhos deles, do sujeito careca que o fitou brevemente, a senhora com quem dividiu o assento no ônibus e todo resto, o nariz, as orelhas e até a duas vezes maldita pele. Pintando-o, enchendo-o de cheiros e sons numa renderização cerebral cuja ideia punha-o cada músculo tenso''.
— Isso não é normal, sabe? - havia ouvido ao deixar escapar que aquilo era mais do que um trecho literário qualquer. - Se preocupar tanto com o que há na cabecinha dos outros.
Joelson assumira a editora da mãe que havia antes a assumido da tia que ainda mais atrás ajudara um imigrante chamado Leamas, apelidado Lhama, a fundá-la.
— Novidades? - não um ''bom dia'', não um ''por favor, sente-se'' ou
um ''como vai?''. O sorriso estava ali, largo e com dentes brancos, as íris azuladas fixas nas castanhas de Raul, o terno de Joelson era bem passado e de estampa de onça.
A mesa dele ficava à esquerda da entrada do cômodo e a janela abria para a vista do terceiro andar da editora. Livros empilhavam-se a ambos os lados do notebook, um enorme relógio de sol ficava no meio da sala e pinturas de seres mitológicos, Jormugand, os cavaleiros da fome, guerra, fome e pestilência e outros, entalhados nas estantes rente às paredes.
O montar bloco a bloco de si dentro da cabeça de Joelson soava, quase real. Raul quase via a figura formada dentro daquela massa encefálica protegida por osso e pele. ''Uma mulher de vinte e um anos, loira, baixa, com problemas para manter contato visual e conversar. Não feia o bastante para toda a timidez que demonstra, não burra o bastante para todo o mal jeito com a fala... é ela algum tipo de retardada?''.
Raul cerrou os punhos, a boca abriu e as íris foram a face de barba rente de Joelson.
— E-eu... - o que diria? Dois meses e o bastardo de Bueiro Velho nem saiu do apartamento ainda? Que falta centenas de milhares de palavras até que chegue no ponto onde descobre ser um cérebro em um tubo alienígena? Que ainda não escrevera nada sobre o background dos extraterrestres? - Haha...
— Algo engraçado, Sara?- Joelson. Um longo arrepio foi do topo da nuca de Raul a sola dos pés. Ele não saia de casa havia um mês, fora visitado doze vezes por Lili, única pessoa que viu durante o período, que tinha descoberto sobre sua inconformidade em ser quem era e ajudou a escolher o nome ''Raul''.
Mas sou, biológica e externamente, Sara Seixas, durante a escola, durante o curso técnico e durante as atividades que a levavam a interação social. E agora. Cabelo solto e passando a altura dos ombros, roupas íntimas femininas e o perfume de shampoos para mulheres. A camisa de botões, a calça e as sandálias são o único ponto que quase não são Sara Seixas.
— N-não...! - tom alto, mãos caindo sobre a mesa e rapidamente a deixando seguida de uma pilha de livros. - AH! Desculpa...!
E se abaixou para recolhê-los.
— O tempo é curto e fica a cada momento mais - Joelson suspirou. - Quer conversar sobre a história?
Pôs os itens na mesa e balançou uma negativa.
— E...estou quase na metade! - afirmou, olhos fixos na capa do livro do topo entre os que realocou no lugar, ''Uma bolha de vácuo'' o título. - Vou terminar em breve, haha!
A risada soou oca, vermelhidão crescendo sobre a pele de Raul.
— Me envie o que escreveu quando chegar em casa, ok? - Joelson, com um longo sorriso. O escritor assentiu e girou para fora do cômodo. - Lembre-se a ''Adeus Projeto'' é grata por ter assinado conosco, não hesite em pedir ajuda enquanto ainda há Deus.
O dono da editora piscou um olho.
Raul forçou um sorriso e saiu. Que frase de efeito horrível.
— ☯ —☯
''Folha em branco, tela em branco, oh, emaranhado boêmio de cores, como odeio-vos nesse momento'' o resultado de meia hora fitando o notebook, seus teclados e a aba do docs. Raul grunhiu, as mãos agarraram as laterais da cabeça e bagunçaram vigorosamente os cabelos.
Fitou novamente o vácuo da décima página de ''Falso Bastardo'', os lábios tremeram. Havia enviado nove páginas de um início ́ ́apresentação de cenário e personagens iniciais'' incompleta a Joelson que respondeu, após vinte minutos: Eita...
Raul Enterrou o rosto nos braços cruzados sobre a mesa. Urrr... quero sumir...
O celular tocou. As íris de Raul subiram até vasilha do café, a luminosidade da tela do aparelho pondo o vidro azulado. Lili, Joelson ou Satanás da geração Z perguntando do maldito gato? Amaldiçoado seja quem o deu meu número!
Se levantou e cruzou a mesa e pegou o celular. ''Número desconhecido''. Fechou os olhos, suspirou, sorriu, fez o sinal da cruz e passou o dedo no botão vermelho. Não podia recusar uma chamada de alguém que tinha seu número sem ter que ouvir perguntas sobre ou deixar o aparelho tocar e o tirar mais foco. Um desconhecido, porém, é só isso, haha!
Largou ele no mesmo lugar, deu dois passos, soltou o ar pela boca. De volta ao meu pior inimigo, o vácuo da página vazia, seguido de perto por memórias desagradáveis e previsões pessimistas sobre o futuro.
— Oi, isso foi rude.
Parou, cinco pés da cadeira na borda direita da mesa e da tela do notebook.
— Raul, não é isso agora? Kukukuku. Dá até certa dó.
A face empalideceu, a cabeça virou meio milimetro para esquerda e outro e outro e outro mais, por sobre o ombro a íris encontrou o vidro do recipiente de vidro brilhando em um tom laranja.
— Enfim, boas novas! Acabou-se 2024! Terminaria seu livro antes de junho eeeee... é isso! Aproveite o que há enquanto há, my friend!
— ☯ —☯
— Uou, que louco, cara - Lili, dando uma volta no celular e pote de café circulados com sal, alho e fotos de Jesus Cristo. - Tem certeza que não só bebeu cafeína demais, teve uma crise de ansiedade e imaginou coisas? Tipo a carta, sabe.
Raul balançou a cabeça em uma breve e agitada negativa, um travesseiro abraçado contra o peito e pés no batente da porta do quarto de dormir. A carta aparecia na mesa da sala de estar às sete da manhã desde o começo daquele ano, 2023. Mas a tinha balançado na frente de Lili que piscara e perguntou ''o que foi?''. Não a via e a carta caiu no chão quando a pôs na mão dela, ''Não há carta nenhuma... '', o contou na ocasião. E Raul já havia chegado a metade do estoque dos produtos para capuccino que deveriam durar metade do ano.
Rubor subiu as bochechas, os braços apertaram as plumas em envoltório de pano que usava para apoiar a cabeça ao dormir. Talvez eu tenha enlouquecido... não seria surpresa... pra ninguém, desde a época da escola pessoas supõem ser o caso.
— Já sei! - Lili, trajava um vestido negro e um colar de diamantes. Falsos, ela dissera da primeira vez que me pegou olhando. - Conhece a história de Newton?
Raul acenou positivamente.
— Pois bem, para o batmóvel... ubermóvel!
— ☯ —☯
A maçã caiu e Isaac Newton chegou a força que batizou de ''gravidade''. Pausa, contemplação e inspiração. Um passo para trás, um descanso, mudança de foco... Raul entendia o conceito.
— E então? Céu noturno, ondas e o assobio do vento...
Estavam sentados em uma toalha, cabelos esvoaçando e os narizes invadidos por odor de água salgada. Duas latas de itaiparva secas próximas aos pés.
— Eu odeio areia... - murmurou. - É áspera, incomoda, irrita... e entra em tudo que é lugar.
Lili riu e apertou o ombro de Raul.
— Yes, lord Vader! - ela. - Devo acionar a Estrela da Morte?
Raul sorriu, a fitou, fitou a escuridão do mar tocando a do céu no horizonte.
— Desculpa - ele, braços apertando as pernas dobradas contra o joelho.
— Nah, eu não tava mesmo afim de ficar numa mesa, escutando música tediosa, tentando ouvir palavras em meio à cacofonia do lugar e decidir se gosto do amigo do ficante da minha prima - ela fez uma careta e riu. - Tipo, quem marca um primeiro encontro num lugar onde terão de lutar para ouvir um ao outro? O universo é imenso, tanto dele quieto, passeios barulhentos são para quando a intimidade é tamanha que se está de saco cheio da voz do outro. Estou grata que tive uma desculpa para não ir.
— Obrigado.
Lili deitou as costas na toalha e abriu os braços as laterais.
— Eu quase enfiei uma faca entre seu pomo de adão e maxilar, sabia?
O estômago de Raul contraiu, os olhos mantidos fixos na dianteira e uma gota de transpiração o desceu gélida a lateral do rosto.
— No dia em que nos conhecemos, na festa de inauguração de ''Num Piscar''. Eu estava bêbada, os talheres eram mais afiados do que tinham direito e o editor, que recusara com palavras deveras rudes três livros que escrevi, estava falando maravilhas sobre uma baixa fantasia apocalíptica. E a coisinha que o escrevera? Pequena, fitando mais os próprios sapatos que as pessoas e tinha tal mal jeito com as palavras que só pude pensar que o livro era uma merda e ela tava fodendo o editor.
Raul apertou as canelas com mais força, a boca pressionada contra coxa e o nariz no ligeiro espaço entre elas. É claro, não precisa me dizer. Sempre fui ridículo, ouvi murmúrios, ouvi em vozes altas, vi em expressões... e minha mãe fez questão de não me deixar dúvidas quanto a isso.
— Tinha a arma branca na mão e nenhum olhar para o cordeiro no centro do banquete. Me movi com ela no bolso e um copo cheio de vodka que periodicamente era esvaziado mais contra minha boca. Entre o mar de corpos, alguns mais celestes que outros - Lili riu. - E não vi sinal do homenageado em canto algum. Quase rompi em lágrimas, '' Nem um homícidio funciona pra mim?'' pensei e sai do casarão. E na varanda estava você, sob um casaco verde escuro e com uma taça vazia ao lado da bunda. Fitava a rua noturna com calçadas ladeadas por carros. Sentei ao seu lado, fiz uma piada sobre o fusca azul com adesivos de ''deus que me deu'' e ''Jesus no volante'' e ''...'' sei lá não lembro. Quando você riu desisti de estrear como assassina e hoje sou campeã pesos leves de boxe! E trabalho na biblioteca do desgraçado que falou mal dos meus livros... nem tudo é sucesso.
Quando ela se aproximou na ocasião, Raul chorava. Os sorrisos que entortaram, os ''quê?'' e ''hã? '', os franzires de face e silêncios seguidos de um motivo para ir a algum lugar, haviam o contado como tinha se saído.
Lili deveria ter me matado, os olhos umedeceram. Tinha publicado um livro, sido reconhecido por sua habilidade, ganhado o suficiente para deixar a família para trás e haviam posts sobre sua história estourando pela internet. Mas meses depois ainda estava só, semanas depois e o êxtase morrera.
Um sorriso amargo subiu aos lábios. Pessoas falecendo em guerras, passando fome, com doenças terminais, cercados de violências da qual não conseguem se desvencilhar... e eu chorando por ser desajeitado e imaginar, na maioria das vezes ao menos, que sou desprezado?
Deveria só desaparecer.
— Kukukukukakakaka.
O coração de Raul comprimiu, cabeça deixou pernas e pendeu para o lado, coluna se pôs ereta de súbito, os olhos deslizaram para esquerda e canto. A coisa, agachada à frente da cabeça de Lili, nu e sem pelos, sorriu. Lábios adentro só possuía trevas.
— Tudo bem? - Lili, erguendo o tronco sob apoio dos braços, a cabeça raspando na genitália da... coisa?
A boca de Raul abriu, as palavras dando voltas no cérebro e o olhos fixos na... criatura. Um homem caucasian... neg... asia... as cores alternavam-se, o físico inflava, secava e inchava, o sexo ia de um a outro.
— A-atrás...
O dedo da coisa pousou nos lábios de Lili. ''Psiiiuu'' aquilo soltou.
— Vamos evitar o constrangimento, sim, my friend? - a criatura. O olhar cinzento de Lili era marcado pelo erguer das sobrancelhas e um bico leve da boca. O dedo da coisa roçava acima e abaixo nela e os lábios da mulher moviam-se sob ele.
— Oiiiii, Raul - Lili, timbre normal. - Deu erro na matrix? Oiii.
— Vamos dar uma volta - a coisa, e se levantou.
— E-eu... vou andar um pouco... - Raul, ela pôs-se a caminho de levantar. - Só. Volto em...
Raul fitou os olhos da criatura. Um agudo arrepio o foi nuca a sola dos pés, os ombros ergueram e os pelos arrepiaram. As fendas na face daquilo davam à escuridão que borbulhava e se agitava a frente em pequenos montes.
— Trinta e três minutos - aquilo.
— Trinta e três minutos - Raul.
— Que específico - Lili.
— ☯ —
Caminharam para o sul. Um blazer, sapatos e calças emergiram do corpo da coisa, fios de carne e pele subiram nuca acima e caíram em forma de cabelo rubro as costas.
— Olhar para o mundo agora é um pouco triste, Raul - a voz daquilo tomara um contorno calmo e melancólico. - Como dizer adeus a uma casa... talvez até a uma pessoa que se ama.
Raul andava ao lado do mar e três passos atrás.
— Mas independente de vontades, e isso provavelmente faria a preocupação do seu homônimo boba, a existência é uma ''metamorfose ambulante''. Ou pelo menos será por um pouco mais desde de o contrato - a cabeça daquilo virou para trás, os olhos estavam lá e as íris vermelhas fitaram o castanho de Raul. A face da criatura parara na de uma garota na casa dos vinte, com traços simples, e o corpo esguio sob o terno. - Será um fim pacifico e também nos envolverá. Gostaria que poder perguntar como é não existir, tenho estado um tanto ansioso nesses dias finais.
Raul estava empapado de suor, a musculatura tensa e os braços cruzados com dolorosa força a frente dos peitos. É Sara Seixas... em versão ruiva... a coisa é Sara Seixas. Cada vento eram facas de gelo a perfurando os nervos.
A boca abriu trêmula, precisava perguntar...
— Um dia, numa rua da cidade vizinha - aquilo, aquilo que era Sara em tons rubros, sorriu. E ela é tão bonita... nunca pensei que eu... que Sara fosse... - ''Eu nasci há dez mil anos atrás e não tem nada nesse mundo que eu não saiba demais''. Estou aqui desde que o primeiro humano olhou para as trevas e imaginou uma fera horripilante. Não tenho um nome, não sou aquele quem me define. Assim como os homens fizeram desde que puderam imaginar, olhe para mim e diga o que sou.
Os lábios de Raul não se moveram. Sara Seixas...
— Não existe Sara Seixas - a coisa piscou e o sorriso mostrou dentes. - É perfeito.
Continuaram andando. Areia invadia a sandália de Raul e o mar ronronava, no horizonte sombras de edifícios pairavam sobre terra ao lado de água escura.
— O que você acha, Raul? - Sara virou para o humano, semblante neutro. Uma onda veio e submergiu os sapatos da criatura e dele, gélida. Raul cerrou os dentes e praguejou e recuou na direção oposta. - Houve algum sentido? Surgiu e sumiu. Algo aconteceu entre um e outro, mas uma vez que some, pouca diferença faz. Nem mesmo legados existirão em breve... houve algum sentido?
A maré recuou, sapatos e pés de Sara levados embora. Raul desviou o olhar para a direita, vegetação acima de um morro de areia e silhuetas de residências mais além. Luzes de postes e de edifícios brilhavam. As íris desceram ao próprio corpo, estava tremendo.
— O museu do Louvre é um belo lugar... - Sara. - Tenho pensado onde passar os últimos momentos. Uma pirâmide de vidro com um castelo ao fundo, várias das maiores manifestações humanas sob meus pés... cogitei também a casa branca, foi a cede da maior potência militar, alguns templos e praias também... uma pequena clareira na floresta do Congo pelo clássico ''fim onde tudo começou'' ou ''ser enterrado onde nasceu''.
Ela virou para frente, flutuando com a bainha da calça a tremular.
— Talvez seja esse corpo... já fui humano outras vezes... Jack em Londres, Elvis escondido em Cajazeiras, Jesus voltando depois do terceiro dia... tem seus prós, mas agora - ergueu uma mão, estava rachada e pedaços subiam e mesclavam-se às trevas. - Chegou ao ponto de me despedaçar.
Asas irromperam das costas de Sara. Raul recuou, a boca aberta com dentes expostos em um cerrar, tropeçou, a bunda encontrou areia fria e úmida.
— Sem perguntas, sem me acompanhar na conversa... - o tom dela soou austero. - Me decepciona... mas é o de se esperar de Raul. Se diferente, nunca teria assinado o contrato. Leia a carta de novo, my friend.
— ☯ —
— Caminhada cansativa? - Lili.
Raul caiu sentado sobre a toalha, olhos esbugalhados e fitando o horizonte. A íris encontrou a amiga de canto, tripas agitando-se e uma massa quente tracejando o caminho a ser expelida garganta a fora.
— E-eu... - podia dizer aquilo? Aquilo que ouvira e odiara tantas vezes? Aquilo que fizera tanta vergonha pesar em seus ombros só por ser cogitado? Engoliu em seco e desviou o rosto rumo ao mar, uma lágrima desceu íris esquerda a queixo. - E-enlouqueci...
Fungou e Lili o abraçou.
— ☯ —☯
Ela provavelmente também ficou doida.
— Então, aqui estamos, parque Ibirapuera - Lili. - Refresque-me a memória, o que mais a carta diz, meu caro Watson?
Raul a tirou do bolso.
— 6 dias, parque Ibirapuera... bodybuilder arrancando árvores, mande Sara Seixas a merda, tenha certeza - leu sob a luz do poste e bocejou, era quatro da madrugada.
— Tem muitas árvores - ela, fitando do lago ao Museu Afro e o bosque a direita, mãos nos quadris e peito estufado sob um agasalho com a estampa de um esquilo nas costas que pegaram no apartamento de Raul.
Ele acenou positivamente.
Havia contado a ela sobre a coisa e Lili dissera ''vamos ver qual é a dessa carta''.
— Já que estamos aqui que tal um pequeno roadwork?
Os olhos de Raul semicerraram e as bordas da boca penderam para baixo.
— Pecorreremos mais espaço. Alguém derrubando ou tentando derrubar árvores deve ser barulhento.
Lili tomou a dianteira e ele a seguiu.
Os lábios de Raul estavam separados, as roupas empapadas, os braços pendulando quase retos e os pés raspando no assoalho, após dez minutos de estrada ladeada por pseudo floresta e lago. A lua era refletida na superfície aquosa, uma cobra percorreu duas vezes o perímetro circular e seguiu as trevas.
Não dá... cabeça pendendo para cima e íris buscando as costas quatro passadas adiante de Lili. Pausa, pausa...
— Birlll! Birl! Birl! - alto e estridente, vindo de dentro do escarcéu de pinheiros-brasileiros, araucariaceaes e árvores que Raul não conhecia. - Como que não vai dar?! Não vai dar sáporra?! Sai de casa, comi pra caralho, porra! Biiirrrllll!
Lili girou na direção do bosque. Ela está ouvindo. Um tremor soou, pássaros irromperam para fora da vegetação. O pomo de adão dela subiu e desceu, os punhos cerraram.
— Bom, foi pra isso que viemos, hum, garoto prodígio? - Lili, e pisou duas vezes na direção da pseudo floresta. - Construtor de corpo, podemos conversar?
Silêncio. Passos trovoaram contra o solo. Raul se posicionou a retaguarda da campeã nacional de boxe dos pesos leves, Liliti Genesia, rígido e pálido.
— Bora cumpadi! - o homem pisou na via calçada. Dois metros, vestindo uma camisa rosa com estampa ''sheikeira de moisés'' que pouco cobria-a o tronco. Os músculos desse maluco são enormes... - Cês quer conversar nessa porra?!
Ele dobrou os braços, as veias e membros aumentaram meia vez o tamanho e a blusa ficou rente a pele. Vai rasgar.
— Ééé... - Lili, piscou duas vezes, a boca semi aberta e pescoço a recuando a cabeça. - Sim, meu amigo aqui recebeu uma...
— Birl! - a camisa rasgou, a boxeadora e Raul deram um curto e sincronizado salto para trás. - Então booora! Hora do show, porra!
E correu pela trilha de concreto.
— Mas que caralhos foi isso... - Lili.
— ☯ —
Correram até encontrá-lo abraçando uma árvore.
— A carta é coisa sua?
A íris dourada foi de soslaio a ela, então a Raul arfando ruidosamente e com tronco dobrado pra frente.
— Então vai dar negativa? - perguntou, encarar no escritor. - Negativa, porra? Agora? Porra!
O bodybuilder arrancou a árvore do solo e atirou ao lado. A pele avermelhara e o semblante tensionou.
— S-sim, m-m-meu a-a-amigo... - a boxeadora, timbre dois tons mais agudo, e a mão do sujeito caiu sobre a boca de Lili. Raul paralisou e a cor sumiu dela. Eu nem o vi percorrer os quinze pés que os separavam...
— Não falei contigo, comadre - e a ergue no ar e a lançou, o corpo atingiu o lago sonoramente. A face do bodybuilder voltou-se ao escritor. - Seiscentos e sessenta e seis anos, caralho, criando passo a passo a porra da situação, cacete! Cê faz ideia do trabalho?! Do que Sara Seixas passou pra topar a porra de um acordo desse?! Do que o patrão orquestrou e jogou com probabilidades, porra?!
Os olhos de Raul estavam fixos nos calçados do sujeito. Sem respirar e sem mover. Socorro, socorro, soco...
Foi erguido pelo maxilar, a boca torcida em um bico, os membros balançaram e umidade o encheu os olhos.
— Responda, seu mímico do caralho!
— E-eu n-num s-ei - em meio a um gemido choroso.
— Como é que não sabe?! Vinte e tantos nas costas e não sabe, caralho?!
— Ele não faz ideia - Sara, a criatura. Estava de pé atrás do bodybuilder, mas não um instante antes.
Raul caiu de quatro, os membros cederam, mandíbula acertou o piso e sangrou
— Levante, vou te contar o que precisa para decidir - Sara, pisando a frente dele. - Se vai deixar que tudo seja apagado ou vai reescrever uma pessoa.
Raul forçou punhos e pernas contra solo frio. A criatura girou e andou. Espere! O escritor engatinhou e de novo. Então parou, a cabeça virou para o lago.
— Outra hora - Sara.
— N-não, esper...! - ele.
Estava no escuro. Pisar ecoou, porta abriu e luz rasgou o breu.
— O que é, merda?! - o interruptor foi aceso. - Que é que tá me chamando?!
Raul ficou boquiaberto. De quatro, no chão de um quarto ladeado por armário e cama, olhos esbugalhados rumo a mulher que irrompeu no cômodo. Baixa, loira e com a testa enrugada sob tensão.
— Hein?! - ela.
O escritor não se moveu.
— Vamos - a criatura, subitamente ao lado dele, e puxou-o as costas da camisa e o colocou de pé. - Em resumo, Sara Seixas fez um contrato com um demônio.
— Aquela... - Raul, encarar na mulher. - Mãe...?
A coisa andou, ele acompanhou e então estava numa rua asfaltada. Um trio brincava com pedras empilhadas próximas a calçada. Duas crianças e... o que é aquilo?
— Foi um acordo preparado há um tempo com sutis empurrões que levaram a guerras, governos, plantas, clima, artistas e pessoas comuns ali e aqui... a uma orquestra para criar o ponto cego e um ambiente onde alguém fosse pedir para ''deixar de existir''.
Era uma uma silhueta que rangia e tinha a superfície de uma televisão dessintonizada. Aquilo pegou uma pedra e então a soltou e fitou a mão e desatou a correr para a residência às costas.
Minha casa...
— O único meio plausivel de se matar Deus, apagar cada pedaço dele, apagar o universo. Não dá para dizer quantas vezes e testes foram necessários até o resultado atual. Mas finalmente chegou.
Outro passo e estavam na escola onde Raul estudara, a silhueta com tom de televisão sem sinal estava sentada num canto enquanto as demais brincavam.
— Uma bolha de vácuo é o desfecho, uma bolha de vazio completo que irá apagar o universo.
E outro colégio após o pé ir adiante novamente, a silhueta tinha a cabeça enfiada contra os braços dobrados sobre a mesa enquanto o restante da turma conversava ruidosamente.
— O demônio responsável pelo acordo é Bambi, ele tinha o meio termo entre poder e selvageria que o permitiu fazer o acordo sem interferência.
Outra escola.
— Se decidir cancelar o pacto, todo o esforço do mestre de Bambi será em vão.
Casa. A silhueta a frente do computador, digitando.
— O sacrifício de Sara terá sido em vão.
Em casa de novo, uma lista de resenhas negativas passando na tela do aparelho,
— Se cancelar, o universo seguirá seu rumo natural e nada mudará.
Na editora, com Joelson falando a silhueta para manter as expectativas moderadas. E então antes de sair da sala, olha para o dono da editora e ele, encarando o manuscrito, solta ''hum'' e balança a cabeça negativamente.
— Decida.
A calçada adiante da festa de comemoração do sucesso do livro ''Num piscar''. Lili se levantando e voltando para o edifício, a coisa com pele de televisão chiando se ergueu e passou um pedra afiada na mão e começou a desenhar na calçada...
— O que é aquilo?! - Raul, punhos fechando nos ombros de Sara, rosto tenso, respiração agitada e lágrimas descendo-lhe bochechas.
A boca da criatura teve o canto esquerdo a ir para baixo e os olhos a semicerrar.
— Você é só uma imagem, som, temperatura, sabor e superfície decifrado no cérebro de outras pessoas. Nesse exato momento, para qualquer coisa mais evoluída que um humano - Sara apontou para a silhueta fitando um círculo de sangue com uma frase no centro, ''eu quero sumir''. - Só uma sombra das ações tomadas por alguém que não existe mais, aquilo que estava lá porque alguém olhou para o nada e acreditou que estava. É como um programa de computação simples onde um item foi apagado, mas as demais partes funcionam como se ainda estivesse ali. Ou uma história em quadrinho em que se recorta fora um personagem.
Raul perscrutou agitadamente a face de Sara. Lábios rosados e duros com pequenas bolsas de gordura abaixo e nos cantos do inferior, olhos rubros fixos nela, testa e a bochecha marcada por sarda. A face estava austera.
— Está mentindo - falou, agudo e rápido.
— Não - respondeu. - Escolha. Deixará ou não o universo ser apagado?
— ☯ —☯ —
— Eu quero pizza! Pizza! - Lili, alto para Raul. - Comida de hospital é uma sentença de morte, Sancho! Só pizza me dará a força para montar Rocinante e salvar Dulciezinha de moinhos mal encarados!
Riram.
— Eu vou pedir uma... - mordeu o canto da boca, encarou o braço, perna e mandíbula enfaixadas dela. - Quantas quiser.
As íris cinzentas dela fitaram as castanhas dele.
— Eu vou te levar à falência.
Raul engoliu em seco.
— Talvez não quantas quiser...
— Noo, no, no! - ela riu. - Sem voltar atrás, o destino de sua carteira foi selado!
Gargalharam.
Raul fitou a janela do quarto de hospital. Não que vá importar quanto dinheiro tenho, maio e todo resto acabam em sete dias.
5000 palavras
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