46 A paz
Já faz muitas horas desde que a doutora nos deu a última notícia sobre o estado da Emily. Desde as três da manhã que foi o horário que enfim eu fui até o banheiro para lavar as mãos, me sentei aqui perto das vidraças que foi onde dei a notícia sobre o que houve a Fran, e então fiquei olhando para fora, como se algo assim pudesse mudar alguma coisa. Eu tirei o sangue das minhas mãos, mas quem pode tirar aquela visão dos meus pensamentos? O momento em que vi Emily sangrando, o momento em que contemplei seus olhos perdendo aquela luz que estava lá quando se declarou para mim. A manhã começa a se mostrar com as nuvens roxas sobre o céu. Aves comuns em cidades costeiras planam de um canto a outro. Elas possuem sua própria rotina que não muda nenhum único dia. A frequência de carros na rua é menor por ser um sábado. Um sábado triste. O Thiago foi para casa antes das quatro, ele estava exausto, então não pedi que ficasse. Ele disse que qualquer coisa era para ligar em qualquer horário, mas prometeu voltar ainda mais tarde e trazer os outros amigos de Emily que agora se tornaram meus também. Acompanhantes de outros pacientes dormem nos assentos da sala de espera, até a Fran conseguiu descansar um pouco, mas Gilberto e eu não conseguimos por nenhum momento.
O som em eco da porta do hospital chama nossa atenção. A doutora Lígia aparece com uma prancheta nas mãos. Com o coração saltando do peito sou o primeiro a ir em sua direção. Ela me encara de forma tênue, mas não quer dizer nada sem a presença do pai aqui. O Gilberto leva mais tempo por ter que acordar a Fran, mas logo nós três estamos aqui. Gil abraça a namorada como se ela fosse segurar o peso da sua dor caso a notícia que tenhamos não seja das melhores. Mas quem vai segurar o meu mundo se isso acontecer. Mesmo inquieto e cheio de formigamento por corpo respiro fundo.
— Emily está fora de perigo — ela profere calma e fria do jeito que tem se mostrado a noite toda. — a cirurgia da retirada dos projéteis foi um sucesso, e estamos levando ela para o quarto agora mesmo. — Sinto como se mais de cinco elefantes estivessem sendo tirados de cima de mim. Aperto a região do meu peito conseguindo enfim respirar de verdade. Troco olhares com o pai dela que está também consegue respirar, pois o que fizemos pelo resto da noite, foi apenas puxar o oxigênio que nos mantinha aqui. Assim que Fran consola o choro feliz de Gilberto, ela vem até mim e me abraça para também consolar o meu choro feliz. Permito que sua luz ilumine a escuridão do meu peito, e que isso possa me deixar melhor.
— E quando posso ver minha filha? — pergunta Gilberto entusiasmado para vê-la. Eu imagino que ele esteja mesmo muito aflito, pois a última vez que a viu, ela estava saudável.
— Em algumas horas — responde ela colocando o uma mecha atrás da orelha. — Os enfermeiros vão ajustar o quarto e a dosagem das medicações para que o corpo dela possa se reestabelecer aos poucos. Ela ainda está sedada, mas se o metabolismo dela for forte até mais a noite ela já estará acordada. — Mau posso esperar para ver seus olhos outra vez. É o meu maior desejo, poder beijá-la e dizer que nunca mais eu vou sair de perto dela outra vez.
— Obrigado, Fran — agradeço-lhe assim que ela me deixa.
Francine e Gilberto tomam distância assim que a doutora volta para dentro do hospital. Nós temos a sorte do horário dela ter fim ao meio dia, pois quando um paciente chega na troca de turno é horrível para um novo médico tomar todas as rédeas. Volto para meu lugar secando as últimas lágrimas de alívio por ter a melhor notícia da minha vida. Ligo para David, pois agora eu estou faiscando de felicidade e preciso contar para alguém o que está havendo. Ele também me disse que eu poderia ligar em qualquer momento, mas algo me diz que o David ainda está no primeiro sono depois da festa na casa do Thiago, que deve ter continuado em outro lugar. No caso eu diria que ele é insensível de estar festejando enquanto eu estou aqui sofrendo, mas não tenho do que me queixar. Davi passou aqui antes do Thiago ir embora e me deu um abraço, e depois ele foi embora de carona com o Thiago também. Espero até o quinto toque, mas Davi não atende. Deve estar dormindo. Então a única pessoa que resta é o Thiago mesmo. Coloco para chamar vendo o sol começar a tingir a cidade em nossa volta. A voz da mulher da operadora dizendo que o telefone está desligado ou fora de área me desperta a raiva. Como assim a porra do Thiago desligou o telefone? Ou está mesmo fora de área. Mas quer saber, dane-se os dois, eu vou me sentir feliz sozinho mesmo!
Ou não.
Quando me viro dou de cara com Gilberto perto de mim. Por impulso eu me afasto dele, mas a expressão em rosto não é o mesmo ódio que ele demonstrou quase duas da manhã de hoje. Está mais branda.
— Tô indo na cafeteria — declara apontando para saída. — Quer vir comigo?
Como assim ele tá me chamando para tomar café? Viramos a noite inteira de um lado e outro, pois naquele momento o fogo que ardia em mim talvez me faria até sair socando ele. Mas agora ele parece melhor, é possível notar que ele não vai colocar algum tipo de veneno no meu café se no caso eu aceitar. Encontro os olhos de Francine olhando por cima de seus ombros, e com uma piscadela ela me pede para aceitar o pedido.
— Beleza. — Ainda temendo pela minha vida e a vida do meu pau, mantenho uma distância dele enquanto nos encaminhamos para a cafeteria. Mesmo nessa distância eu sinto que ele está tenso, eu também estou tenso. Se eu me culpo por tudo que aconteceu. Acho que essa noite passada foi o momento em que eu mais me culpei na minha vida toda. É diferente de perder alguém repentinamente tendo uma notícia, como foi com o Bruno. Mas quando a gente sabe que a vida de alguém que amamos está em risco, a primeira coisa que acontece é o arrependimento, é querer mais tempo para dizer aquela pessoa o quanto a amamos.
Me sento no ambiente mais calmo e aconchegante desse lugar. Gilberto vai até o balcão e pede algo que daqui eu não consigo ouvir. A manhã está gelada como de costume, mas pelo menos o casaco que Thiago me emprestou a quase sete horas atrás, ainda é capaz de manter a sensação do clima longe. Com essas merdas de constatações deixo minha cabeça apoiada sobre minha mão, e deixo que minha mente trabalhe por sí. Emily está bem, ela vai acordar em algumas horas e eu preciso vê-la.
— Lucas? — dou salto na cadeira quando Gilberto me chama. — Desculpa, você acabou dormindo.
Eu dormi?
Não, eu estava aqui o tempo todo. Já fazem mais de 24h que eu não tenho uma boa noite de sono, então não me surpreende eu estar cansado. Agora que sei que Emily não corre mais perigo.
— Pode ir pra casa descansar se você quiser — profere ele colocando uma xícara de café recém passado na minha frente. — Quando ela acordar eu te ligo.
O que deu nele? A quase cinco horas ele queria me comer vivo, e agora está sendo todo carismático e gentil com o cara que faz questão de enfatizar que incitou o bullying contra sua filha. Por pouco eu não fui o estuprador também, mas é melhor deixar isso de fora. Ele está tentando ser legal, então quem sou eu para recusar um cafezinho grátis... e esse momento de paz dele. É bom saber que seus momentos bipolares tem menos intensidade que os de Emily.
— Valeu, mas eu vou ficar aqui. — Mesmo sabendo que ela está bem, algo me diz que eu posso não voltar a vê-la se for embora.
— Tá bem — refuta no momento em que achei que fosse me desencorajar de ficar. — Você é bem vindo aqui.
— Sério? — indago quase engasgando com o café, e ele assente bebendo de forma mais calma que eu.
— Eu fui muito ruim com você de madrugada — assume me olhando nos olhos e pousando a xícara de café sobre a mesa. — Me desculpa, eu tava cego. — Uma moça da cafeteria coloca um prato de pães de queijo no meio da mesa, mas não é capaz de me fazer sentir outro tipo de alívio. O pai de Emily está me pedindo desculpas por essa madrugada, que novo para mim. — Eu fiquei sabendo que você tava lá naquele momento, você salvou a minha filha. Talvez se não tivesse agido ela poderia não estar mais aqui. Então obrigado.
Na verdade a pessoa que salvou a Emily foi a doutora Karen que estava lá como anjo enviado justamente para aquele momento, e que veio conosco. Emily teve muita sorte de ter uma médica na frente da casa do Thi naquele instante. Não fui eu quem salvou a Emily e sim ela.
— Eu não conseguiria viver sem ela — digo em resposta, não afirmando e nem negando o que ele disse. — Eu tentei.
— Você ama ela — ele fala quando paro de olhá-lo. Não foi uma pergunta, de tantas vezes que eu declarei isso para ele, com certeza já sabe dos meus sentimentos. Agora talvez acredite neles. — Você ama a minha filha, e eu tentei de afastar dela.
Isso é um pedido de desculpas?
— Eu amo sua filha, Gil — declaro mais uma vez caso as outras não tenham lhe fixado muito bem. — A Emily foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida. — faço círculos com dedo na boca da xícara de café que está fumaçando. Gilberto começa a comer pães de queijo e eu fico parado por um momento tentando controlar essa explosão dentro do meu peito. Quero poder vê-la, e eu sei que a única pessoa que tem esse poder é ele. Como disse de madrugada, se ele não me quiser aqui, com um pedido, eu sou expulso. Mas acho que está melhorando a nossa situação e até posso ganhar a permissão para estar com ela no quarto mais tarde.
— Você nem sempre foi a melhor pessoa para ficar com minha filha — enfatiza a palavra minha. — Mas depois de tudo, eu quero você por perto. Sei que depois que tudo isso passar, Emily vai se negar a ir embora daquela maldita escola... porque a Emily é assim. — Ele quer que eu convença a ir embora do Estevão? Mas se nem ele consegue essa proeza, como eu faria? — Não quero que você a convença a sair de lá — refuta vendo meus pensamentos em meus olhos. — Mas quero que cuide dela. —Gilberto come outro pãozinho enquanto eu continuo apenas no café. — Percebi o quanto você e aquele outro rapaz? — estala os dedos tentando lembrar do nome do Thiago. — Qual o nome dele mesmo?
— Thiago.
— Isso. Vocês se importam com ela. Não tem nada melhor para o pai de uma menina descobri que além de todos que podem fazer mau a sua menina... existem pessoas que se importam com ela — conclui.
— Gil... eu posso ver ela? — peço. Gilberto entrelaça os dedos me olhando com seriedade. Se ele disser não, o que depois do que me acabou de me dizer, é pouco provável, eu simplesmente vou invadir o quarto dela.
— Tá brincando, garoto? — pergunta de volta. Depois de tudo que a vida me ensinou, nada pode ser comemorado enquanto não tiver uma exatidão clara, e é por essa mesma exatidão que estou buscando. — Você pode sim, pode ver a minha filha. — Sinto meu corpo comemorar quando ouço essas palavras. — E tem outra coisa, você pode frequentar a minha casa quando quiser. Você é muito bem vindo na minha família. — Mesmo que eu sinta que não mereço, fico emocionado por obter o seu perdão. Engulo em seco querendo mostrar um sorriso, mas a ocasião faz o ladrão, e é melhor eu não sair numa comemorativa agora. Gilberto se levanta e atravessa a mesa, e me olha de cima. Então ele me oferece um aperto de mão. Eu até pensei demais, mas no fim acabo que o cumprimentando. Porém, Gilberto me surpreende com uma força desconhecida para seu tamanho, e consegue me puxar para um abraço. Não consigo descrever o que estou sentindo agora com ele me apertando. Sua aceitação é muito importante para mim, agora que eu justamente me nego a dar a Emily o tempo que me pediu. Abraço Gil de volta determinado a nunca mais desapontar a sua confiança novamente. Digo a mim mesmo nesse momento que se isso acontecer outra vez, eu vou levar a tesoura para que ele corre meu pau fora.
— Bom que conversamos, garoto — diz me soltando. Não digo nada, mesmo sabendo que um pedido de desculpas nesse momento poderia cair bem. Gilberto sabe que eu estou arrependido, aparecer na casa dele a quase um mês que o diga. Pode não voltar a ser como antes, mas eu nunca mais vou magoar Emily outra vez. — Eu vou ter que ligar para Estela — anuncia com uma voz carregada. — Acho que agora eu vou perder minha cabeça. — Tenta fazer graça enquanto coloca uma nota de dez na mesa. —Termine o café, você precisa de nutrientes.
— Tá — digo em resposta me sentando outra vez.
Gilberto assente meneiando a cabeça e depois vai embora me deixando sozinho. Assim que ele some na saída da cafeteria, pego meu celular ainda manchado, e volto a ligar para Thiago. Dessa vez ele chama, em dois toques irritantes dele, sua voz sonolenta:
— Oi, tá tudo bem?
É evidente que Thiago estava dormindo, e que aquele fora de área da primeira vez foi para que Gilberto e eu tivéssemos essa conversa. Ou não foi o destino, e sim o acaso se fazendo presente.
— Sim — respondo me sentindo mais leve que o comum. — Tá tudo beleza agora. — Thi suspira do outro lado da linha. Não precisei dizer que Emily está bem para que ele se sentisse tão bem quanto eu.
— Beleza. — engole em seco. — Preciso falar com você.
— O que foi? — indago comendo um pão de queijo. — Aconteceu outra merda?
— Não, ainda não, mas pode acontecer. — Tudo que é bom dura pouco. — Meus pais chamaram a polícia e justamente quem estava de plantão era a mãe do Kevin. Ela pegou o caso.
— O quê?! — Como assim aquela Alana pegou o caso da Emily?
— E pode piorar — informa Thiago. — Minha mãe não gosta muito da Emily, então... — Thiago para de falar de supetão
— Então o quê?! — pergunto tentando manter o meu alívio de Emily estar bem, intacto.
— Então que ela meio que disse umas coisas ruins sobre a Emily. Parece que a mãe do Kevin vai ir até a escola hoje investigar a vida da Emily.
— Você tá me dizendo que ela acha que a Emily tomar dois tiros e quase morrer é culpa dela? — pergunto tentando engolir a raiva que me sobe pela garganta. Como alguém que tomou a porra de dois tiros pode ser culpado disso?
— É — ele responde rápido, como se eu fosse julgá-lo por ter essa mãe mala que ele tem. — Vou tentar resolver isso com meu pai hoje, beleza? Vou tentar fazer pedir pra ela parar com isso.
— É melhor, essa merda pode dar onde nós sabemos que não pode chegar.
— Pelo bem da Emily, e pelo nosso bem também — ele completa por mim. — Vou fazer o meu máximo aqui. Depois eu e a galera passa aí pra ver vocês.
— Beleza, valeu. — desligo apertando tanto meu celular que poderia quebrá-lo entre os dedos. Não me desce a garganta que a mãe do Kevin está procurando evidências contra a vítima. Essa mulher tem um parafuso a menos. Queria afirmar para mim mesmo que ela não encontrará nada nessa investigação ridícula, mas a Tábata tem as fotos e sabe que a Emily foi estuprada, então ela vai abrir aquele maldito bico. Não posso ficar aqui parado, mesmo que aquela policial maldita descubra algo, eu preciso ao menos fazer com que isso não chegue na Emily com tanta pressão.
Ligo para a minha mãe que nesse momento é a pessoa que mais pode me ajudar.
— Oi, mãe.
— Lucas, onde você tá?! — pergunta quase a berros de preocupação. — Você tá bem?! Aconteceu alguma coisa?!
— Aconteceu sim — refuto. Minha mãe começou a perguntar onde estou e queria vir me buscar imaginando que eu tenha sido a vítima. Então a acalmo, e conto tudo que aconteceu de ontem para hoje, que Emily foi baleada e que estou aqui com o pai dela.
— Meu Deus, como ela está? — respondo que agora está fora de perigo, e minha mãe ficou mais calma.
— Mãe, preciso de você — falo mais alto a fim de cortar seu diálogo comigo. — Sua amiga Alana começou a investigar a Emily como culpada de ter sido quase morta por alguém. A senhora pode fazer alguma coisa?
— Nã... não, Lucas, eu não posso interferir no trabalho da polícia. — Ela não pode usar a amizade que as duas tem para interferir? Solto um incômodo suspiro e faço silêncio tentando pensar em algo que eu possa pedir à ela. — Eu vou falar com ela, pode deixar — promete. —, mas não consigo te garantir nada.
— Só tenta, mãe, por favor.
— Por que você tá tão tenso? — indaga notando a minha inquietação. — Não vai ser bom ela descobrir quem violentou a Emily naquela festinha na escola?
Aperto os olhos com o polegar e indicador. Se isso acontecer pode ser pior. É justamente isso que eu estou tentando evitar.
— Não, mãe, isso não vais ser bom! — respondo de modo grosseiro. Se aquela mulherzinha descobrir isso, pode complicar muito mais a vida da Emily.
— E por que não? — ela rebate estranhando que eu não queira pegar o estuprador da Emily.
— Porque quem estuprou a Emily foi o filho dela.
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