45 Encontros e Despedidas
Caminho pelas ruas de São Paulo sobe um céu nublado, o vento está mais forte que o comum e faz com que os papéis jogados no chão saíam voando por aí. Sinto frio quando ele bate sobre meus ombros expostos, mas continuo caminhando observando as pessoas rindo e se divertindo. Elas caminham em todas as direções, mas quando passam por mim, simplesmente me encaram. Mesmo que o clima esteja meio deprê todo mundo parece não se importar. Atravesso a avenida e passo pelo viaduto do chá. Seguindo mais a frente entro na praça Ramos de Azevedo, dando de cara com o teatro municipal. Afasto uma mecha loira do meu rosto enquanto admiro a construção. Sempre foi um sonho meu dançar aqui, mas é algo antigo, um desejo que ficou no passado. No meu trajeto até aqui recebi muitos olhares, mas ninguém, exceto ele foi capaz de parar ao meu lado.
— É magnífico, não é? — Eu conheço esse voz. Vejo Fabrício pelo canto dos olhos. Ele admira o teatro com os olhos cerrados por causa do vento, mas não parece sentir frio. Está com uma camisa de manga longa do Queen e esconde as mãos nos bolsos de uma bermuda. Ele não tá sentindo frio, eles não estão, apenas eu estou. — Você poderia dançar aqui.
Pela primeira vez me permito vê-lo. Mas logo que nossos olhares sem encontram a minha mente é inundada de flashes. Tudo estava doendo, eu estava perdendo sangue e não conseguia respirar direito. Então ele apareceu no meio daquelas pessoas e arrancou toda a minha dor. Se eu deveria agradecer ao Fabrício por está morta, eu não sei, mas se existe algo que eu devo a ele é... Taco a mão com toda a força que eu consigo na cara dele. Sinto gosto de vê-lo segurando a região acertada. Maldito mentiroso traidor. Se tem alguém que consegue xingar uma pessoa por três nomes ruins seguidos, sou eu. E se ele recebeu, é porque merece.
— Eu mereci isso — profere sem nenhum pingo de raiva.
— Você merece bem mais. Mas um é o suficiente para pagar tudo que você me fez. — Saio caminhando sozinha. Se esse lugar é para onde vem os mortos, algum tipo de purgatório, eu prefiro ficar o mais longe possível do Fabrício.
— Hey, Emy. — Ele vem atrás de mim. — Me desculpa.
— O que você fez não tem desculpas. — paro de supetão olhando na cara avermelhada dele. — Você mentiu pra mim. Você me disse que sua primeira vez foi comigo, mas não foi.
— Me desculpa — pede outra vez. Dessa vez o vento sopra contra minha direção. Os cabelos escuros dele ainda são os mesmos, seus olhar tem o mesmo tom que me encantava todos os dias. Fabrício não mudou um único ponto fisicamente desde aquela noite. — Eu queria te falar, mas.... — sua voz falha. — Eu não queria que você perdesse a virgindade com outro cara virgem. Eu não ia suportar se você ficasse com outra pessoa!
— Não justifica o que você fez! — brigo. — Você deve me achar muito perua mesmo pra pensar que eu ia dar a minha virgindade pra qualquer um, como você fez. — sinto o peso disso tudo se desfazendo dentro do meu peito.
— Foi mau.
— Foi péssimo de verdade. — Volto a caminhar de braços cruzados. — Você tava errado o tempo todo. Eu ainda seria a sua namorada se você me contasse que não era mais virgem, eu ainda te amaria... eu ainda teria me entregado pra você de corpo e alma. — Fabrício continua me seguindo como um cachorrinho. — Mas eu não teria me entregado pra você se soubesse que você não tem caráter.
— Eu tenho caráter.
— Você não tem! — retruco de volta.
Fabrício para no meio do caminho, e me forço para não cair na lábia dele outra vez. Tudo mudou, ele não é o mesmo cara por quem eu vivia apaixonada. Aquele cara talvez nunca tenha existido, eu apenas o criei na minha mente, pois o verdadeiro Fabrício era só um cara que tinha as características físicas do meu verdadeiro amor.
— Hey, por favor. — Fabrício me segura pelo braço me fazendo parar no meio das ruas de São Paulo. Os sons desse lugar é idêntico ao da cidade verdadeira. Carros, buzinas, poluição. Nada nesse mundo dos mortos mudou.
— Eu tô morta? — pergunto sem querer olhar em sua cara. Fabrício e Lucas são peritos em me fazer mudar de ideia quando fito os olhos hipnóticos deles. — Eu morri? — nesse caso encaro a rua parada temendo a resposta.
— Morta? — Fabrício refaz a pergunta como se não tivesse sido ele que tivesse me arrancado daquela dor. — Não. Nesse momento você tá tendo uma parada cardíaca, mas ainda não morreu, não.
Uma parada cardíaca não é o mesmo que a morte? Encaro Fabrício bem rápido engolindo em seco. Eu estou morta, o meu coração parou de bater e isso me causa mais aflição que ter duas balas penetradas em meu corpo físico. Pego o sua mão e tiro do meu outro braço. Fabrício se nega engolindo em seco e volto a andar implorando para que ele possa me deixar em paz. Eu tô morta, se isso realmente aconteceu eu prefiro procurar o meu verdadeiro canto nesse mundo estranho. Não que morrer seja algo bom, e que eu esteja super feliz por ter perdido a vida para Alexia. Mas eu poderia olhar pelo lado... tem algum lado bom em morrer? Pois se tiver me mostre.
Fabrício desistiu de me seguir e eu agradeço por isso. Passei uma boa parte do dia caminhando sozinha por entre a cidade antiga, mas sempre que eu passava bem próximo de alguém ou algum carro e até quando embarquei em algum ônibus as pessoas ficaram me encarando. Talvez por eu ser um fantasma novo nesse limbo estranho. Aqui o horário parece ser mais devagar que no mundo físico. Pelas minhas contas eu estou andando a mais de dez horas depois que deixei o Fabrício, e o nublado do céu começou a tomar seus primeiros contrastes de noite agora. As nuvens seguem de um caminho para o outro com o vento. Não deixo de me perguntar onde e como está o Lucas? Será que o meu pai já sabe que eu tô morta? Será que meu corpo ainda está caído no jardim do Thi? Eu deveria me livrar de todas essas preocupações mundanas agora que não faço mais parte dele.
Desço do último ônibus perto do teatro municipal outra vez. Olho para onde Fabrício ficou sozinho, mas ele não está mais lá. Sei que eu quem decidiu isso, o que em nenhum momento me deixou feliz. Então volto a transitar sozinha por aí, até encontrar um lugar que eu sei que faz parte da minha vida. A doceria no centro da cidade, onde frequentávamos Fabi e eu.
— Oi — pela primeira vez tento dialogar com alguém desse mundo que não seja o Fabrício. A moça que atende no balcão é mesma mulher de todas as vezes, mas isso não me incomoda nenhum pouco. Talvez ela também esteja morta. Peço um pedaço de bolo de prestígio com café e leite e me encaminho para o nosso cantinho no fundo da loja. Fabrício desfila pela entrada do estabelecimento um minuto depois, fazendo o sinos da porta anunciar sua chegada. Eu deveria continuar afastada dele, mas uma coisa em mim está feliz por vê-lo. Fabi vai até o balcão e faz um pedido, e em seguida vem na minha direção e se senta comigo.
— Eu esperei você — me diz olhando para a mesma direção que eu, os carros indo e vindo de várias outras. — Eu sabia que você ia vir aqui.
— Esse lugar me faz lembrar de um passado bom — refuto.
— Eu quase sempre venho aqui também — declara. — Me faz lembrar de você.
Passo meu olhar de fora para ele sem mover a cabeça. Nesse momento não consigo deixar se admirar a sua beleza física. Eu sempre fazia isso quando estávamos aqui, quando ele não se sentava ao meu lado para me abraçar e me beijar a todo momento. Se não fosse pela forma que estamos vestidos, eu diria que hoje é aquele dia que ele passou frio para colocar sua blusa sobre os meus ombros. Perco o controle e deixo que minha emoção fale por mim nesse momento. Me apoio na mesa e acaricio o rosto dele para sentir a sua pele macia outra vez. Eu amo o Lucas, mas nesse momento eu também amo o Fabrício. Acho que eles são a mesma pessoa, que se dividiram em duas pessoas. É uma hipótese ridícula, eles são iguais, mas são muito diferentes também. Tento me convencer que ele faria tudo que Lucas fez por mim, ou comigo na tentativa de não deixar seus sentimentos irem embora. Mas conhecendo Fabrício como eu o conheci, eu duvido que ele seria capaz. Ele me reconquistaria de alguma forma, usando algum plano absurdo que me fizesse acreditar nele.
Fabrício sorri ao sentir meu gesto de carinho, e lhe devolvo da mesma forma. Fabrício segura minha mão e a beija. O clima o mantém gelado. Seu toque é frio, e seus lábios também.
— Como você e o Lucas... — cesso minha pergunta no mesmo momento. Estamos mortos, e acho que não devo trazer o mundo físico para a minha nova realidade. A moça serve o nosso pedido no mesmo momento em que Fabrício formula uma resposta.
— Eu não sei, Emily — refuta após um suspiro. Admiro enquanto ele corta um pedaço de bolo de paçoca, que era o seu favorito, e o degusta. — Esse bolo ainda é uma delícia. Humm! — Tento não rir da cara engraçada de prazer dele, mas é quase impossível. Quem diria, eu e Fabrício juntos outra vez. Como um pedaço do meu também observando quando uma chuva fina começa a desabar lá fora. — Sinto sua falta — declara ele. Eu poderia dizer que ele me faz falta todos os dias também, mas algo diz que não é esse tipo de falta que ele está se referindo. — Da garota que eu deixei quando eu morri. — A garota que eu estava começando a encontrar. — Exatamente, essa garota — fala como se lesse meus pensamentos. — Aquela menina que me fazia ter orgulho quando derrotava os meus amigos nas batalhas de dança.
— Ela morreu — solto tristonha. Ela já havia morrido quando eu a afundei em mim, mas agora ela está literalmente morta.
— Talvez — ele diz. — Mas a dançarina ainda tá aí dentro. — Fabrício degusta outro pedaço acompanhado de uma boa golada se café com leite. Mordo o lábio inferior tentando me encontrar dentro de mim. Antes da Alexia atirar em mim, eu a procurei, mas encontrei apenas a minha versão cheia de traumas.
— Ou não. — Não quero decepcionar o Fabrício, mas ela não existe mais.
— Ou sim e você não sabe.
— Fabrício — chamo num pedido que ele não me machuque mais do que eu já estou magoada.
— Emily. — Fabrício se joga do outro lado para cá, e então ele me afaga em seus braços finos. O que antes estava gelado, agora ele parece bem mais aconchegante que antes. Me permito apoiar a cabeça em seu peito. Enquanto suas mãos me acolhem com carícias, tento não chorar a minha própria morte. Ainda estou angustiada, por isso rodei a cidade inteira hoje, eu tentei me livrar dessa sensação ruim que está acabando com meu coração. Ouvir seu coração bater me traz paz, e até consigo fechar os olhos para ouví-lo com mais atenção. Fabrício apoia sua cabeça na minha, e então eu me permito abraçá-lo. — É difícil no início, mas nós acostumamos.
Sei que ele sabe que eu não quero me acostumar a isso, mas eu estou no lugar onde deveria desde aquele acidente na estrada. Naquela madrugada a vida dele foi ceifada, e a minha poupada. A vida, no entanto, tinha outros planos para mim. Esses me trouxeram para cá com ele.
— Hey, esquentadinha — chama ele. Por um momento fico pasma de saber que ele sabe o meu novo apelido, o que não é nada muito importante sabendo que ele sempre está comigo. — Dança pra mim — pede.
— An? — pergunto.
— Dança pra mim — repete. Tiro meu rosto de seu peito e o encaro para saber se esse pedido é mesmo real. — Ou melhor, dança comigo.
— Não tô pronta — refuto olhando fixamente no esmeralda profundo do seu olhar.
— Eu dou um jeito. — Fabrício estala os dedos e todo o ambiente se transforma em um lugar diferente. Uma nuvem se coloca entre todos nós, e o que vai surgindo dela é diferente de onde estávamos. Não estamos mais sentados numa doceria no centro da cidade. Estamos de pé, juntos. Fabrício não está mais de camisa branca e bermuda, como eu não estou mais de canoa e calça de moletom. Agora um vestido vermelho lindo cobre meu corpo, as minhas mãos estão escondidas por luvas severamente da mesma cor. Fabi está de social com um colete cinza por cima de uma camisa de botões. Mas o que realmente chama atenção além do chapéu em sua cabeça, é toda a estrutura de forma oval. Tem uma platéia, que olhando de onde estamos, segue um padrão de baixo para cima. E mais ainda, existem três andares que são separados por faixas douradas como outro e o lustre no teto é mágico. Estamos no teatro municipal de São Paulo. Somos aplaudidos diante de uma banda que está um pouco afastada de nós, mas assim que todo o teatro escurece esse som se torna silêncio. Meu coração palpita e engulo em seco tentando me manter em mim. — Vamos realizar o seu sonho — enfatiza levantando um dedo. Uma faixa de iluminação se coloca sobre nós no palco, e então a melodia começa a soar de forma calma. Esse toque invade meu ser me afundando em um torpor de nostalgia. — Você lembra? — pergunta. Como poderia esquecer? Seria a pergunta correta. Seguro a mão de Fabrício e deslizo o pé no chão quando apoio a outra mão em seu ombro. Fabrício faz o mesmo de uma forma de diferente dentro do espaço que está entre nós, então ele me pega com um pouco de firmeza que a música exige. Rodopiamos, e no fim disso ele me tira do chão quando enrosco minhas pernas em sua cintura. Me agarro em seu pescoço, e ele gira comigo em seus braços. — Você ainda é perfeita — profere em meu ouvido, então ele me coloca no chão outra vez.
— Obrigada — sussurro de volta quando troco os pés no mesmo passo. Fabrício segura meu corpo quando desço com ele, e ficamos um vidrado no outro. E quando ele me traz outra vez, o que era medo da lugar uma euforia sem igual. Estou dançando outra vez. Fabrício me gira sobre o meu próprio braço, e sobre ele. Então sigo rodopiando sozinha como uma bailarina. Ele me acompanha a sequência de aplausos que faz eco dentro do teatro. Eu estou morta, mas de alguma forma me sinto viva. A sensação de estar outra vez dançando está fazendo isso comigo. De longe vejo Fabrício apoiar o peso do corpo sobre um joelho, então volto para ele dançando, e pego seu chapéu colocando sobe minha cabeça. Nesse instante novos aplausos são ouvidos enquanto eu bailo em volta dele. Fabrício sorri para mim, antes de voltar a ser o meu parceiro. Ele me segura e me joga outra vez, antes de me segurar com mais firmeza e ficamos tão próximos que parece que vamos nos beijar. Agora eu não sinto amor apenas por ele, a minha paixão por dançar parece que está acendendo aos poucos. É como mágica, onde antes havia medo e insegurança, agora queima com o brilho terno do que eu sentia antes de ele partir.
Apoio meu pé nas costas de seus joelhos e faço uma abertura zero no ar, com ele me dando todo o suporte necessário para isso. Seu rosto se ilumina com a nova quantidade de aplausos, e seguido com esse passo ele ele me deita em seus braços outra vez como se fosse me tacar um beijo.
— Esse seu sorriso é lindo — murmura me olhando fixamente. — Você é ela, a garota que ainda me encanta todos os dias.
Seguindo um passo que não existe nessa performance de tango acaricio seu rosto agradecendo seu esforço por mostrar a mim o quanto essa sensação ainda é maravilhosa. A cada centímetro mais perto do chão, mais aplausos nós ganhamos. Então ele me puxa e terminamos a música com nossos rostos colados. O último toque do tango silencia fazendo o som dos aplausos tomarem toda a cena com mais vigor. Ainda estamos vidrados de forma que eu nunca queira sair desse momento. Minha boca saliva para seguir o script dessa nossa última performance e beijá-lo, assim como vejo que ele quer o mesmo.
— E agora? Acredita em mim? — Sua respiração colide com meu rosto e sinto seu nariz suado em contato com o meu. Mesmo que nada disso seja real, ele realizou o meu sonho. Dançamos juntos no teatro municipal e mesmo que isso esteja apenas acontecendo nesse lugar, foi a melhor dança da minha vida. — Você é perfeita, e não deixe que ninguém nunca te diga o contrário. — A mão dele desliza sobra a minhas costas com carinho e amor. Fecho os olhos sentindo a luxúria me inundando aos poucos e meus suspiros demonstram isso. Somos a atração principal dentro de apenas um dos shows que era meu sonho dançar. Agora eu quero tê-lo aqui, quero ser sua da forma que eu sempre fui.
— Me beija — imploro com seu perfume me invadindo as narinas, com meu corpo inteiro pedido por ele. Os lábios de Fabrício tocam os meus e aquela garota que estava morta ganha uma vida que eu nunca achei que ela poderia ter outra vez. É como se a chama dela começasse a me inundar em cada veia do meu corpo. É uma sensação maravilhosa poder me sentir orgulhosa, poder me sentir bem... ser minha outra vez. Nesse momento não existe Kevin, não existe Alexia ou Natalia. Nesse momento nenhum deles me arrancaram de mim, pois nesse momento eu sou eu de forma intensa. Os lábios de Fabrício me provocam desejo enquanto sugam o meu pescoço. A platéia continua a nos aplaudir, como se suas mãos deslizando sobre mim ainda fosse um espetáculo, o que para mim de certa forma é. Enterro meus dedos em seus cabelos e seguro sua cabeça mais contra mim com a onda de prazer tomando meu corpo sem que ele esteja me penetrando ainda. Fabrício apenas me beija e me toca, como eu nunca havia feito antes quando estava vivo. Então suas carícias cessam, mas sinto sua respiração colidindo com meus ouvidos. — Eu te amo, Emily — declara em um sussurro profundo e sensual. Fabrício engole em seco em desejo. — Seja feliz — conclui. Então sinto suas mãos deixarem o meu corpo, e sou envolvida numa escuridão que vai passando como lembranças minhas, minhas com outra pessoa... o Lucas. Até que tudo se torna um borrão, e começo a ser inundada de dor física. Uma dor de cabeça que vai se introduzindo em mim aos poucos, e a cada segundo vai se intensificando.
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