Capítulo Único
UM MINUTO PARA O NOVO MUNDO
Eu não sabia o que esperar para depois do dia 20 de julho de 2019, mas definitivamente estava esperando por algo. Me tornei obcecadamente focada no tema "Apocalipse" nos meados de 2019 e poderia dizer que a culpa desse meu hiperfoco adveio das pesquisas para "Sol em Virgem". Poderia dizer, mas estaria me igualando em hipocrisia à humanidade que tanto critico. Os esforços, milagrosamente, não foram vãos: uma parte ínfima do que aprendi sobre a temática foi colocada no meu primeiro livro oficial, outro infinitésimo se converteu em música e a grande maioria está sendo aplicada às técnicas de sobrevivência para 2020. Continuava encantada pelo tema quando soube das primeiras notícias do vírus na China. Isso só fez minha cabeça guiada pelo realismo fantástico achar que o próprio Apocalipse estava se concretizando. Veja bem, eu tinha meus motivos: Irã e Estados Unidos estavam em conflito e isto poderia ser o estopim de uma Terceira Guerra Mundial. Felizmente, nos próximos dias em que se seguiram, fui obrigada a me concentrar em outra coisa além do meu hiperfoco favorito.
O meu trabalho de conclusão de curso era mais que uma conquista acadêmica. Vejam, seria o primeiro trabalho que levaria meu nome na bibliografia; seria a vitória sobre três psicoses e uma pesquisa forjada ao hiato; o fim de um ciclo que impôs feições dramáticas à utopia de me tornar uma grande matemática. Não me culpem. Quem não se encantaria com aqueles heróis tão reais, eternizados pelas descobertas na Rainha das Ciências? Mesmo com a expectativa latente, que tinha como aliada a nova aprovação para o mestrado em Matemática, não pude deixar de me questionar se aquele era o melhor caminho para mim. E se eu simplesmente devesse esquecer os devaneios daqueles seis anos e me entregasse ao amor pela escrita, movedor de toda e qualquer montanha de minha alma?
Seguiram-se os dias e seus acontecimentos. Foi e ainda é impossível de esquecer os dias anteriores à Quarentena. Todas as minhas genialidades e loucuras mais íntimas haviam se manifestado naquele período de graduação. A partir do nono dia de março seguiu-se o choro, a luta, o alívio e o aborrecimento. O meu mestrado, a pesquisadora em que sonhei ser, estava prestes a se tornar uma realidade, em menos de duas semanas. Porém era notável a sincronia dos acontecimentos, o atraso das notas e do diploma. Como eu me dedicaria ao mestrado sem algum dia de folga? Vejam bem: apesar de eu ter uma certa consciência sobre o que estava acontecendo no mundo, não imaginava que aquilo tudo me atingiria tão rápido. Eu só queria trilhar minha independência e carregar o diploma como um troféu. Sim, em meio a todo aquele caos e mesmo com casos do novo coronavírus em meu estado, eu flertava com a ideia de receber minha recompensa no fim do mês. Ledo engano.
No dia 16 de março começara oficialmente o período 2020.1 na Universidade Federal de Alagoas. Dali, em uma semana, começaria o meu novo caminho. Vi a universidade, que também era minha casa, ser invadida por cerca de 30 mil pessoas, banhadas de sonhos e expectativas para o futuro. Muitos tinham aquele como o primeiro dia como universitário. Lembrei-me de minha versão de 16 anos e rezei, silenciosamente, para que a academia não destruísse o sonhador que cada jovem ali era. Em poucas horas, as minhas expectativas e de milhares de jovens foram quebradas: as aulas foram encerradas, sem estimativa de retorno, na noite daquela segunda de março.
Na primeira semana de quarentena, até me diverti com as "férias forçadas", assistindo filmes e me livrando do estresse dos últimos meses de monografia. O êxodo começaria em 20 de março, entregando todos residentes da UFAL a um misto de incertezas e medo. Pipocavam conhecidos de uma pessoa ou outra que haviam se contaminado com o Coronavírus. Os superiores da universidade enlouqueciam de frente a uma realidade utópica. A ordem era esvaziar a residência até, no máximo, dia 25 e devolver todos os estudantes às suas casas. Hoje compreendo que aquela era a melhor opção dos dirigentes, mas na época, onde não se sabia quase nada sobre o vírus, e meus planos foram cortados abruptamente, me vi obrigada a ficar ao lado dos rebeldes.
Reuniões aconteciam com os universitários restantes de duas a três vezes por dia. Eu tinha o privilégio de morar no mesmo estado que estudava, boa parte não. Ali, naqueles encontros, confirmei minha suspeita que estava participando de algo grande, algo único na história recente da humanidade. Minha mãe era inclinada a favor dos rebeldes, mas voltaria para casa se asseguram-se que nós duas não já estivéssemos infectadas com o novo vírus. Boatos diziam que uma estudante partira chorando com suspeita de COVID-19. A dúvida também pairava pela aglomeração de pessoas de todas regiões que entraram na UFAL. Ah, vocês devem estar se perguntando o que minha mãe fazia entre universitários. Respondo brevemente: minha saúde mental era a principal responsável por isso.
Não fui santa nem fui louca no início de meu exílio voluntário: fui um pouco de ambas. Presa, literalmente, aos últimos seis anos de minha vida reuni-me virtualmente aos conspiracionistas católicos do Apocalipse. Fui feliz enquanto minhas pesquisas duraram: o tema foi o inspirador que mais senti na pele em todos os sentidos, dando-me músicas maravilhosas e respostas temporárias para meus inquietantes questionamentos teológicos. Tornei-me como um espírito serelepe da natureza, agradecendo por todo dia vivido, louvando com sinais católicos a cada lua brilhante no céu. Em abril, a paz restauradora advinda pelos capítulos decisivos concluídos em Sol em Virgem encontrou companhia à confirmação de minha matrícula no mestrado e respectiva bolsa recebida. Pelo menos naquele mês a esperança que a humanidade refletisse sobre suas ignorâncias, fraquezas e forma maquinal de levar a vida eram latentes em mim. Eu estava liberta e com tempo indeterminado para agradecer a um grande Deus Andrógino pelas realizações que me pareciam impossíveis em alguns trechos da estrada. Estava disposta a venerar a vida, representada naquele mês pelo nascimento de mais cinco gatinhos na Residência Universitária Alagoana.
No início de maio, alguns males afrontaram minha paz de espírito interior. Não, não vou citar aqui a óbvia impaciência por não ter uma data marcada para o início do novo mestrado. Destaco, porém, o sumiço dos filhos da gata Cidinha e minha humanidade questionada em meio à explosão de casos de Coronavírus no Brasil. Lembrava da profecia de Padre Cícero Romão sobre as pessoas não poderem ficar em suas casas e viverem em "currais de gado". Questionei-me, também, se o "País do Evangelho", profetizado por Chico Xavier, seria um dos protagonistas de uma calamidade mundial. Era o primeiro decanato de maio e o Brasil já atingira mais de 10 mil mortes pelo novo vírus. A dor, por ver meu país ser um dos protagonistas de uma tragédia apocalíptica, era intensificada pela negação de seus habitantes. Eu ainda não imaginava que a situação pioraria tanto que, hoje, me alegraria se as mortes parassem apenas naquelas 10 mil. Os segundo e terceiro decanatos de maio foram marcados pelo início virtual do meu mestrado. Estaria eu preparada para enfrentar os monstros que me assombraram nos seis anos de graduação? Seria eu humilde o suficiente para ver que minhas ideias escritas e cantadas sempre foram muito mais importantes para mim do que um título de mestra, conferido pelos trabalhadores de uma Matrix limitante? Aos poucos, eu largava as Teorias de Conspirações cristãs, que condenavam a maioria dos humanos ao Inferno, e me apegava ao significado grego da palavra: revelação.
Notei, em junho, avanços nos meus aprendizados matemáticos. Aproveitei o período de revisão e decidi nivelar os meus capítulos iniciais aos últimos. Desculpe-me o pessimismo, mas eu não podia esperar que ninguém entendesse, como eu, a grandiosidade de minha história com uma narração tão fraca. Mesmo assim era necessário celebrar minha força de vontade: no dia 06 de junho completava 01 ano que comecei "Sol em Virgem". Decidi, enfim, matar um grande personagem e dá feições de reviravolta à trama. E a minha vida, também teria direito a uma reviravolta?
A alegria de ter finalmente achado os filhotes da gata Cidinha foi substituída pela agonia do despejo iminente de todos os gatos. Vejam: os residentes restantes não suportavam a bagunça dos gatos, mas era extremamente cruel abandoná-los em meio a um mundo paralisado. A partir das brigas de minha mãe com o grupo dominante da residência, a resolução plausível foi levar a gata Jade e seus filhos para um bloco abandonado e interceder por Cidinha, que escondera as crias em um dos quartos desocupados da residência por uma pequena janela.
Quando cessaria meu martírio? Era eu digna de receber 1500 reais enquanto me preocupava com filosofias inúteis no olhar dos doutores acadêmicos? Por que não usei parte desse dinheiro para consultar-me com a especialista em autismo que já tinha descoberto? O medo falaria mais alto mais uma vez e usurparia para si o poder de minhas escolhas?
Antes de contá-lhes o que aconteceu, acalmou-os com uma boa notícia: a gata Jade e seus filhotes voltaram. Destaque para um gato cinza chamado Jake e o filho mais velho da gata, cinza mais claro que o primeiro, Luppi. Luppi é o xodó meu e de minha mãe e parecia trazer a sorte que sua cor ditava.
Finalmente era chegado Agosto e com ele todas as angústias atingiam seu clímax: seria ou não aprovada nas minhas disciplinas de mestrado? E se eu fosse aprovada, era aquilo mesmo que eu queria? Comemoraria, em setembro, meu aniversário de 23 anos feliz por ter a garantia estendida de ter 1500 na minha conta ou por estar livre para escrever as palavras que engrandeciam minha alma? Não me julguem, apenas tentem entender a transformação que se iniciara em meu ser humano. Não foi em 2020 que comecei a notar que nossa realidade era constituída de uma Matrix. Sim, nascemos em uma sociedade com valores pré-definidos, com cartilhas de sucesso e felicidade distribuídas por "pessoas de bem" ou altamente religiosas. Como não me questionar que a realidade poderia ser bem diferente do que é hoje? Eu sou escritora e manipulo os sentimentos e destino de meus personagens de acordo com meus propósitos. Não seríamos nós, também, personagens de uma realidade construída por nossos ancestrais e fortalecida pelos que se acham donos do poder neste planeta? Aquele Agosto, astrologicamente o Inferno Astral para a virginiana que sou, foi necessário para romper com aqueles sonhos que eu achara serem definitivos. Eu não sonhava em ser cantora e escritora quando criança, então porque desisti tão fácil? Suportaria os mandos e desmandos de mestres e doutores em busca de um conhecimento ilimitado e, de uma certa forma, limitante? Eu amo Matemática e tudo que há de poético nela. Eu amo a vida e a beleza que há nela e que os humanos não conseguem enxergar. Foi preciso coragem e desprendimento para encarar aqueles outros 2D no mestrado em Matemática. A dor de não saber o caminho a seguir fora atenuada pelo meu propósito de ser bem sucedida com minhas ideias. Eu seria uma boa jornalista científica? Uma boa astrônoma ou quem sabe astrofísica? Deveria ser apenas professora de Matemática do ensino básico e conseguir os conhecimentos pedagógicos? Eram milhões de estradas. Senti-me culpada por brincar daquela forma com meus personagens, mesmo sabendo que não eram reais. O destino estava brincando comigo, rasgando o derradeiro véu de ilusão que me fora imposto.
Escrevo estas linhas em Outubro de 2020 e não poderia estar mais feliz do que agora. A felicidade é algo interior, não necessitando das conquistas que o mundo oferece. Hoje, acredito em reencarnação e em vidas em outros planetas. Hoje, estou prestes a começar duas disciplinas como aluna especial no mestrado de Informática da UFAL. Hoje, assim como eu era quando criança, sinto o amor incondicional ao olhar para o Céu e me sentir parte deste universo imenso. A vida é uma experiência; a morte, encontrada tão facilmente esse ano, é apenas uma desculpa e uma fase que devo passar, de novo. Não espero mais o Apocalipse trágico que aprendi a gostar, mas sim pelo fim de um mundo cruel, egoísta e individualista. Não devemos combater a pessoas más e sim a maldade que há nelas. Pretendo ser humana até o dia em que me for permitido.
Eu sou livre, enfim.
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