Capítulo 6
Eu dirigia meu carro, enquanto observava as pessoas na rua. Elas caminhavam com um sorriso no rosto, muitas vezes com pressa, embora nunca perdessem a educação com o próximo.
Agiam como se não tivessem problemas, ou talvez esperavam que algo mágico acontecesse.
No Natal, as pessoas costumam se tornar mais do que costumam ser. Querem ser melhor, mas basta passar da meia noite para voltarem ao que de fato são. Eu não tinha essa necessidade, todos sabem que não sou flor que se cheire, e não é um feriado que irá mudar isso.
Ao entrar na casa de Gus, vi que todos já estavam lá. Olhei rapidamente em meu relógio e vi que ainda faltava muito pra meia noite.
— Ei, Sau! — Gus acenou pra mim. Estava numa rodinha com seus primos coxinhas* e chatos. A noite seria longa.
— E ai — me aproximei.
— Saulo Ferrarezi, quanto tempo! — Maurício deu aquela típica batidinha falsa em minhas costas.
— Nem tanto... — murmurei, sentindo o final de meu bom humor chegar.
— Estávamos falando sobre vestibulares — Ricardo apareceu ao lado de Maurício.
Os dois eram irmãos. Maurício o mais velho, estava indo para o seu terceiro ano de Medicina. E Ricardo, pelo o que sabia, também iria entrar para o mesmo ramo.
O pai e todos os tios de Gus eram médicos. Uma família de médicos. Os filhos não seriam diferentes.
Maurício e Ricardo eram idênticos, tanto o físico, quanto a personalidade, apesar de terem visivelmente idades diferentes. Eram esbeltos, e conservavam uma barba impecável, tal qual nunca consegui ter, talvez por isso me tratassem como um moleque. Estavam sempre encontrando maneiras pra me provocar, como um prazer interno.
— Sério? Tantos assuntos pra se conversar no Natal...
— Tecnicamente ainda não é Natal — contradisse Maurício.
Cesar riu.
Cesar era outro primo, raramente falava, mas estava sempre lá, rindo feito uma hiena. Em certo ponto, até se parecia mesmo com uma.
— Então quer dizer que está vestibulando medicina?!
— Tecnicamente, estava. — Sorri.
— Confiante. Vai com calma.
— Perspicácia é o meu nome do meio. — Sorri mais uma vez.
Maurício havia conseguido passar na Fuvest. Não por que seu pai não queria pagar a faculdade, como o meu, mas por que ele queria ser melhor em tudo. Não se importava em roubar vaga de quem de fato não podia pagar. Aliás, isso também não era algo que me preocupasse.
Entretanto, esse era o único ponto desfavorável, pensar que Maurício estaria lá quando eu entrasse. Calouro vs veterano; tentaria me sacanear em todas as oportunidades e me trataria como um servo; o que eu jamais admitiria.
— Vou cumprimentar seus irmãos — murmurei para Gus e sai do círculo enfastiante.
Caminhei até a sala de estar e lá estava o grupo do bem, exceto é claro, por Aurora que conversava com Jennifer, mulher de Henrique e a noiva de Eduardo, que eu ainda não sabia o nome.
— Saulo! Estava conversando sobre você agora mesmo! — A mãe de Gus me adorava. Sinceramente, nunca entendi o que ela via em mim.
Eu realmente admirava a maneira como os pais de Gus, mesmo separados, conservavam a amizade. Conversavam como se ainda fossem casados, eu achava isso muito bonito; é claro que nunca disse em voz alta, até por que ninguém entenderia como Saulo, o devastador de relacionamentos amorosos, aquele que nunca nem se quer chegou a sentir um fio de paixão, poderia achar algo assim bonito. Enfim, isso eu também não entendia.
— Saulo, sente-se conosco! — Frederico, pai de Gus, me convidou. — Como está Paulo? Fiquei sabendo que está sendo um orgulho para sua família!
Eu quase ri.
— Mariah sempre exagerando a meu respeito — comentei. — Meu pai está muito bem.
— Ah Saulo, não seja modesto! Será tão bom quanto seu pai! — Mariah insistia, sorrindo.
Não discordei. Talvez um dia eu fosse mesmo.
Olhei em minha volta, e cumprimentei os demais que estavam na sala. Era impossível não reparar que Aurora me olhava com indiferença.
— Quem sabe eu convença Gus a passar essas férias em Verona — falei, e pelo canto dos olhos apreciei a carranca de Aurora. Ela odiaria se eu conseguisse mesmo convencê-lo.
— Seria uma ótima ideia, Saulo! — Frederico disse, radiante.
— Quem sabe eu também vá, é claro, pra fazer companhia. — Sorri.
— Será sempre bem-vindo!
— E seus pais? — Eduardo, irmão de Gus, olhou por trás de mim. — Não virão?
— Estão em Maceió, curtindo uma segunda lua-de-mel. Sabe como é, não gosto de atrapalhar. — Dei um meio sorriso torto.
Todos riram. Menos Aurora.
— Que pena... Esperava que eu pudesse vê-los, mas infelizmente terei que voltar pra Verona amanhã à noite — explicou, se inclinando para pegar algo numa mesinha de canto. — Entregue este convite à eles, por favor. É de meu casamento com Cecília, e eu gostaria muito que todos vocês fossem. — Ele me entregou um convite cor de bronze, com as iniciais dos nomes impressas na superfície. Um tanto sofisticado.
— Claro, será um prazer. — Sorri de forma educada.
(...)
— Então, Saulo... Foi bem nos vestibulares? — Ricardo se sentava no sofá ao lado. Maurício e Cesar vinham em seguida.
Suspirei.
Frederico e Mariah já não estavam mais lá, assim como seus dois filhos, que agora conversavam com Gus bem próximos de nós.
Aurora continuava a fazer companhia à Jennifer e Cecília na sala, aliás, Cecília e Jennifer faziam companhia à Aurora, sim, fazia mais sentido.
Eu apenas mexia no celular pra passar o tempo, até que fui interrompido pela volta dos três patetas.
— Fiz de olhos fechados — respondi, mantendo a tranquilidade.
— Hum... Depois de três anos, era o mínimo, não é mesmo? — Maurício riu.
— Pois é. — Continuei à olhá-lo, sisudamente.
— Se não conseguir dessa vez, talvez seja melhor mudar de curso. Enfermagem seria uma boa ideia.
Os outros riram.
Sorri cinicamente, fingindo entusiasmo.
— Enfermagem é uma profissão admirável — começou Aurora.
Revirei os olhos. Era só o que faltava.
— Aurora, querida. Enfermeiros não são médicos — contradisse Maurício.
— Enfermeiros também salvam vidas — rebateu ela.
O que ela queria? Estava tentando me defender ou apenas queria contar vantagens da profissão para que parecesse à minha altura? Qualquer dessas opções, eu não estava com saco pra aturar.
Bufei e sai de lá. Ao menos deixei de ser o centro da conversa.
Fui até a sacada, tentei transparecer tranquilidade, como se estivesse apenas indo ao toalete; não queria despertar olhares curiosos.
Apoiei meus cotovelos no parapeito da sacada e ali fiquei, afim de desenfadar um pouco.
De lá, passei a observar a noite lá fora, e podia ouvir uma canção natalina vindo de algum vizinho. "Noite feliz... Noite feliz...", aquela canção me dava calafrios, pra mim soava muito irônico, como em filmes de assassinos em série anti-natal.
— Ei... — Aurora se aproximava. Fechei os olhos, sem sombras de paciência, ignorando-a completamente.
— Não ligue para o que os primos do Gus disseram. — Tentou de novo.
Não estava entendendo o que ela queria. Aurora costumava me evitar a maior parte do tempo, ir até mim para dizer algo, era novo.
— Não ligo.
Eu odiava o sentimento de piedade sobre mim, como se eu não tivesse o poder de reação, como se eu fosse destinado ao fracasso. Eu não iria fracassar, não desta vez! E não precisava que ninguém me dissesse isso, eu já sabia e era o suficiente.
Olhei para o lado e notei que Aurora parecia um tanto desconcertada. Ela me olhava, parecia querer dizer algo, mas provavelmente não sabia ao certo o que falar.
Voltei a fitar o céu escuro.
Pelo canto dos olhos, vi Aurora virando-se e estava prestes a sair dali.
— Não vai dizer que sou igual à eles? — perguntei e me arrependi logo em seguida. Foi automático, eu não queria fazer essa pergunta, mas minha boca disse antes mesmo que eu pudesse pensar melhor sobre; entretanto, já que meu pensamento soou alto demais, eu queria ouvir a resposta.
Aurora deu dois passos antes de parar e se virar novamente pra mim.
— Por que eu diria isso?
Foi a minha vez de virar e encará-la.
— Porque eu sou.
Ela sustentou meu olhar por alguns segundos, mas não respondeu. É claro, não existiam respostas. Ela de fato tinha a certeza que eu era igual à eles, mas por algum motivo, não queria dizer isso.
— Mas existe uma diferença — acrescentei.
— Qual é?
A expressão dela havia mudado. Não estava mais com pena, nem confusa, agora estava apenas curiosa.
Franzi o cenho, ela esperava por uma resposta que não teria.
— Eu só disse que existe.
Passei por ela e fui até a adega na sala. Ela continuou na sacada.
Aurora me conhecia há muito mais tempo. Talvez isso desse a liberdade para ela pensar que me conhecia de verdade; porque em alguns aspectos, sempre fui um livro aberto. Isso me tornava alguém previsível. Nunca fiz questão de esconder quem sou, como sou, porém há coisas que não devem ser ditas, entendidas, tampouco imagináveis. Há coisas que prefiro guardar pra mim.
Essa conversa me lembrou quando éramos civilizados. Eu queria rir, se não estivesse tão irritado. Tenho que dizer, foi estranho.
Peguei um copo e coloquei três dedos de Bourbon. Todos cerimoniavam, e eu me perguntava o que ainda estava fazendo ali.
Gus me viu e se aproximou, quando eu já estava prestes a me retirar.
— Ei, Grinch! Aonde estava? — Ele usava um tom de voz brincalhão.
— Vou pra casa, Gus. Já deu por hoje.
— Como assim? Nem é Natal ainda!
— Eu sei. Mas... enfim, amanhã a gente se fala. Feliz natal.
Dei dois tapas em seu ombro e sai. Fingi que não o escutei quando me pediu pra esperar, pra ficar. Apenas peguei o meu carro e parei no primeiro bar.
Aonde mais eu poderia ir? Dormir não estava em meus planos e não era uma opção.
Estacionei meu carro e entrei. Era uma espécie de bar e balada. Estava lotada, e isso não me surpreendia. Era um feriado como qualquer outro.
Sentei ao balcão e pedi o melhor Whisky à garçonete. Olhei por acaso para ao lado e reconheci um garoto. Ele estava na área de fumantes, numa rodinha de garotos e garotas. No meio deles, havia uma garrafa de vodka e alguns energéticos. Todos fumavam, e aquilo que tragavam não eram cigarros.
Semicerrei os olhos, encarando-os, mas não me viam. Apenas observei, sem sair do lugar.
Não demorou muito para o garoto apagar o baseado e vim até o balcão, voltei meus olhos ao meu whisky.
— Moça, uma garrafa de absinto.
Olhei para ele explicitamente, enquanto ele passava a comanda para a garçonete.
Pelo canto dos olhos, ele percebeu que eu o encarava e subitamente enrijeceu.
— Eric, não é? — falei, ainda o encarando.
Ele olhou pra mim, cinicamente, como se não tivesse me reconhecido. Esperava impaciente que a garçonete devolvesse sua comanda; e assim que o fez, deu dois passos apressados antes de parar.
— Irmão de Aurora. Me corrija se eu estiver errado, mas essa balada é para maiores de idade.
Ele se virou pra mim, seu rosto assustado quase me fez rir.
— Não sei como você fez pra entrar, ou como falsificou um RG, mas crianças na sua idade deveria estar jogando banco imobiliário com os primos, enquanto esperam os fogos de artifícios.
— Não conte pra minha irmã, por favor! — ele soltou as palavras num jorro.
— Oh, então o gato não comeu a sua língua! — Eu ri, me divertindo com aquela situação. — Quantos anos você tem? Dez? Onze? Tenho que admitir, é bastante esperto pra essa idade, mas seu rosto não mente.
— Quase treze — ele me corrigiu.
Ergui as sobrancelhas.
— Você tem dinheiro pra pagar o que está consumindo?
— É claro que tenho. E além disso, estou com meus amigos.
— Não está esperando que paguem pra você, está?
— Claro que não.
Estava. Aquele garoto podia enganar os seguranças, mas definitivamente não sabia mentir.
— Você não vai contar à minha irmã, vai?
— Por que eu faria isso? — sussurrei sarcasticamente. — Não vou. Vai lá, divirta-se.
Ele abriu um sorriso de orelha a orelha.
— Valeu! — E correu até seus "amigos".
Continuei a tomar meu whisky. De vez em quando, eu olhava para o irmão de Aurora; não estava apenas bebendo e fumando um baseado. Estava usando outros tipos de drogas. É claro, que não pude evitar de me ver nele. Por muitas vezes fiz o que ele estava fazendo, mas no caso, a diferença era que eu pagava a conta.
Entretanto, mas do que a mim, vi meu irmão.
Um pouco antes de ser diagnosticado com leucemia, meu irmão sofreu uma overdose de heroína. Minha mãe diz que foi milagre não ter morrido. Porém, meses depois, o milagre não aconteceu novamente.
"Um raio nunca cai duas vezes no mesmo lugar". Talvez isso seja verdade, mas eu não acredito em milagres.
*Coxinha: gíria utilizada para descrever pessoa conservadora, de hábitos burgueses ou por ostentar um padrão de vida de custo elevado.
Yeeeeey!!
Não sei se primeiro pergunto se estão gostando ou se me desculpo pela demora! hahahaha
De qualquer maneira, espero que gostem e que me desculpem! kkk
Comentem oq acharam, isso eh mto importante pra mim!
Beijooss!!
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