Capítulo Único
Todos estão muito excitados com a chegada do Natal. Compram presentes, comem panetones, enchem a barriga de cerveja e cantam músicas desafinadas. Na televisão, os apresentadores encerram seus programas desejando boas festividades e falam sobre o significado do Natal.
- O Natal é um dia para comemorar o amor e a amizade... – diz um apresentador particularmente barrigudo. Derrubo a TV com um chute.
Odeio o Natal.
Não se escandalizem ou me desprezem por isso. A culpa não é minha.
Há três anos, encontrei minha noiva e meu melhor amigo se agarrando no meu quarto. Nem faziam esforço pra gemerem mais baixo.
Vou explicar melhor. Estávamos fazendo os preparativos da festa de Natal. Meu chefe ligou e pediu que eu fosse urgentemente ao escritório. Deixei os dois terminando os preparativos, falei que iria demorar e parti. Mas não precisei ficar nem dez minutos no escritório e, meia hora depois, já estava de volta em casa. Não encontrei ninguém na sala. Escutei gemidos vindos do meu quarto e, não acreditando no que estava ouvindo, fui lá e abri a porta. Nem estava trancada. Ela gritou quando me viu. Ele levantou e falou que não era nada do que eu estava pensando.
- Amor... amizade... é o caralho! – digo enquanto continuo a chutar a TV com ódio; queria que o apresentador barrigudo estivesse sentindo esses chutes.
Lá fora escuto o povo rindo e comemorando. Vizinhos malditos. Enquanto eu chuto a TV, sentindo o meu pé doer cada vez mais, ouço alguém bater na porta. Paro imediatamente e fico com os ouvidos aguçados.
- Olá – grita uma voz. – Tem alguém aí?
Fico pensando se devo ou não atender. Com certeza alguém ouvira o barulho da TV se despedaçando e viera ver o que estava acontecendo... Melhor eu atender, antes que chamem a polícia.
- Que foi? – digo mal-humorado, abrindo a porta.
Uma jovem que eu nunca vira antes está parada na minha frente. A primeira coisa que reparo é no gorro vermelho que ela está usando. Tão vermelho quanto os cabelos ruivos, que caem nas costas, balançando ao vento. Está sorrindo para mim, os olhos castanhos brilhando.
- Boa tarde! – diz ela, animada. – Feliz Natal!
- Deseja alguma coisa? – respondo bruscamente. Ela era linda, mas dissera as palavras erradas.
- Sim – diz ela, abrindo ainda mais o sorriso. – Desejo a você um Feliz Natal.
- Só isso?
- E um copo de água. Andei muito hoje, e ainda tenho muitas casas para ir.
Fico olhando para ela incrédulo. Que tipo de pessoa vai batendo de porta em porta só pra desejar Feliz Natal? Se fosse alguma velhinha eu até entenderia. Coisa estranha. Depois de alguns segundos, finalmente aceito que não estou tendo visões e vou buscar o copo de água.
- Só isso? – repito, quando ela termina de beber a água.
- Muito obrigada! – diz ela, abrindo outro sorriso. – Não quer ir comigo?
- Ir aonde? – pergunto sem entender.
- De porta em porta.
- O quê?
- Desejar Feliz Natal às pessoas.
Fico perplexo. Será que ela era doida?
- Você é doida?
- Não sou. Vamos, não tem coisa melhor que ver o sorriso das pessoas. Elas geralmente não esperam essa gentileza de estranhos... Tem pessoas que nem receberam um cumprimento hoje.
Ainda não acredito no que estou ouvindo.
- Não. – respondo, com rispidez. – Chama outro, estou muito ocupado.
Faço menção de fechar a porta, mas a jovem se aproxima ainda mais.
- Vamos lá – insiste ela. – Alivia o coração. Vai te animar, eu garanto.
- Já estou animado. Deseja mais alguma coisa?
- Sim. Como é o seu nome?
Será que se eu responder ela vai embora?
- Marcelo.
- Prazer, Marcelo – ela estende a mão. – Eu sou Thalita.
Seguro as mãos dela. São bem quentes e macias.
- Por que você faz isso? – pergunto a ela. – Não seria melhor ficar em casa curtindo o Natal?
- Depende. Pra alguns talvez, mas não pra mim. E você? Por que está fechado em casa e todo desarrumado em pleno Natal?
Finjo não me importar por ela ter me chamado de desarrumado. Embora eu saiba que meus cabelos devem estar uma bagunça, e minhas roupas, amarrotadas.
- Não gosto de Natal.
- Por que não?
Meu Deus, ela não vai embora?
- Você não tem outras casas pra visitar? – digo, fechando ainda mais a cara pra ela.
- Eu também não gostava de Natal – disse a jovem. – Vamos fazer um trato. Você vem comigo e me ajuda a cumprimentar só as casas dessa rua. Não vai levar nem meia hora. Depois você volta pro que for que você estava fazendo, e eu continuo sozinha.
Ela está realmente decidida a me levar com ela. Droga, tantas pessoas nessa rua, por que ela resolveu chamar logo eu? Deve ser realmente louca... Olho pra rua. Melhor eu acompanha-la; será a única forma de me ver livre dela o mais rápido possível.
- Tudo bem – digo. – Entre e aguarde só um instante.
- Não! – disse ela. – Vem desse jeito mesmo! – e me puxa pra fora.
Melhor nem perder meu tempo ficando chocado. Tiro uma chave do bolso e tranco a porta.
- Quer um gorro? – pergunta ela, mexendo na bolsa e tirando um de lá.
- Não! – mas ela me ignora, aproxima o rosto dela do meu e coloca o gorro em minha cabeça. Por um instante penso em impedi-la, pegar a peça e jogar longe; mas isso seria muito rude, mesmo pra mim.
E, com um gorro na cabeça, desarrumado e mal-humorado, vou acompanhando aquela estranha garota que eu acabara de conhecer.
***
Paramos em uma casa logo adiante e fico observando enquanto ela avança e bate na porta. Quase imediatamente a porta se abre e uma menininha aparece, o rosto sujo de melado.
- Oi – diz a menininha.
- Oi, tudo bem? – diz Thalita. – Feliz Natal!
- Obrigada – diz a garotinha. – Você é a mamãe Noel?
Ela pergunta isso numa voz tão inocente e pueril que eu não aguento. Caio na gargalhada.
- Não – responde Thalita, também sorrindo. – Sou só uma amiga dela. Mas ela me mandou te dar um presentinho.
Thalita mexe na bolsa, tira um gorro vermelho e entrega pra menininha, que abre um enorme sorriso e o coloca na cabeça. Não consigo parar de rir com a cena. A menina dá um abraço em Thalita e volta a entrar em casa.
- Viu o tanto que é legal? – diz a jovem, quando a gente volta a caminhar.
- Não sei o que tem de tão legal em ganhar um gorro.
- O que importa não é o presente – diz ela. – Mas a intenção. É uma frase clichê, mas é verdadeira.
Ela para na próxima casa. Segura minhas mãos e me puxa junto com ela rumo à porta; penso em reclamar, mas fico calado. Ela toca a campainha.
Dessa vez é um velho que atende; conheço-o de vista. Vi-o duas vezes sentado na porta de sua casa, quando eu voltava do serviço.
Entendam, moro nessa rua há apenas alguns meses e nunca me esforcei para conhecer ninguém. Mudei-me para cá porque não suportava viver na casa onde fui traído, onde minha vida acabara.
- Boa tarde! –Thalita cumprimenta ao velho. E olha pra mim, como se esperasse que eu fizesse o mesmo.
- Boa tarde – digo também, a contragosto, estendendo a mão para o senhor.
- Boa tarde – responde ele com uma voz rouca. Aperta minha mão e em seguida a de Thalita. – Desejam alguma coisa?
Faz-se um pequeno silêncio. Olho pra Thalita, sem entender. Por que ela não está dizendo nada? Mas ela me encara, com um sorriso no rosto, os cabelos vermelhos dançando ao vento. Ela quer que eu diga. Crio coragem.
- Viemos desejar um Feliz Natal ao senhor – falo, tentando parecer o mais educado possível.
- Feliz Natal! – completa Thalita, animada.
O velho fica nos encarando por alguns segundos e, em seguida, abre um sorriso banguela.
Mais uma vez tenho vontade de cair na gargalhada. Não por causa da banguela do velho. Na verdade, não sei por quê.
- Obrigado, meus jovens! – diz ele. Poxa, custa usar uma dentadura? Thalita avança e dá um abraço no senhor. E o pior. Quando ela o solta, me empurra na direção dele. Ela é louca? Querendo que eu abrace um homem que nem conheço?
O velho fica me encarando. Thalita também. Sinto que não tenho escolha. Avanço e dou um abraço leve no senhor. Quando o solto, percebo lágrimas nos olhos dele.
- Me desculpem – diz ele fungando o nariz. – Me desculpem... Nem meus filhos me ligaram hoje... Muito obrigado, vocês animaram minha noite.
Fico tão sem graça que não sei o que falar. Thalita dá mais um abraço no velho, cumprimenta-o mais uma vez e se despede. Quando ele fecha a porta, fico ainda alguns segundos parado, sem reação.
- Viu como é legal? – ela repete pela segunda vez naquele dia. Mas desta vez não faço nenhuma piadinha.
O sol já está se pondo no horizonte. E continuamos batendo nas portas. Crianças, velhos e adultos atendem. Em uma das casas, um cachorro escapa e pula babando em cima de mim, a língua para fora. Normalmente eu o teria chutado para lá, mas acho tão engraçado que caio na risada.
E o tempo vai passando tão rápido que me assusto quando chegamos à última casa da rua. Uma mulher muito gorda atende; desejamos a ela Feliz Natal. Ela fica tão contente que volta pra dentro e reaparece com uma fôrma cheia de tortas e doces. Começo a comer, torcendo pra que não estejam envenenados. Pelo menos estão deliciosos.
- Espero que tenham uma boa noite – diz a mulher. – Vocês formam um casal lindo!
Acho que estou vermelho de vergonha. Olho para os pés, enquanto mastigo uma tortinha. Thalita agradece a mulher, com uma voz de riso.
Quando a mulher fecha a porta, Thalita olha para os lados. Não há mais nenhuma casa na rua que não tenhamos ido. Então olha pra mim.
- Então... – diz ela. Os olhos castanho-claros fixados intensamente nos meus, os cabelos ruivos e rebeldes voando para trás. Tão linda... – É aqui que você fica, então?
- É... – respondo, num tom duvidoso. Mas no fundo eu sei que não quero. Quero continuar perto dela... Bater em mais portas... Na verdade, em todas as portas do planeta...
- Falei que isso ia te deixar animado – ela sorri.
- Você tinha razão – concordo. Não consigo parar de olhá-la...
- Aposto que você pensa que eu sou louca.
Fico surpreso. Mas é verdade.
- Verdade – digo. – Mas de um jeito legal.
- Obrigada – ela responde.
Ficamos alguns segundos em silêncio. Então pergunto.
- Por que você me chamou para te acompanhar? Um completo estranho?
Ela para de sorrir. Parece refletir um pouco, mas então responde.
- Vi você chutando a televisão pela janela.
- O quê? – fico surpreso. Não sei se sinto vergonha ou se me sinto otário. A janela que dava para a rua estava aberta, é claro que qualquer um poderia ter visto. – Aí você resolve chamar um cara assim para um passeio?
- Você precisava – ela responde, segurando minha mão. – Precisava voltar a acreditar nas pessoas, em amor e amizade... Ah sim, também ouvi você resmungando essas palavras enquanto chutava a TV.
Caio na risada. Que estranho. Ri nessa noite mais do que ri nos últimos três anos...
- Posso ir com você? – pergunto de repente. – Pras próximas ruas?
Ela olha para mim surpresa. Então abre um sorriso e me abraça.
-Claro que sim, estranho! - e no segundo seguinte, nossos lábios se tocam.
***
Feliz Natal a todos vocês!
Que tal conferir os outros contos do perfil?
Obrigado por sua leitura, e um grande abraço!!! =D
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