\4/ Na sombra do guarda-chuva
Quando me perguntaram se eu poderia dar aula para uma criança autista, eu pensei: "Por que não? Uma criança autista não pode ser tão mais difícil que crianças normais, não é mesmo?" Eu realmente acreditei que não haveria problema, mas eu estava enganada. Nada que li na minha pesquisa superficial pela internet me preparou para aquele momento.
A menina autista, Anallu, estava no meio de uma crise e eu não tinha ideia de como acalmá-la. Havia começado com uma agitação nas pernas e mãos, mas eu não dei muita atenção, pois tinha as outras crianças para monitorar. Era uma aula livre, onde costumava deixar as crianças com jogos de tabuleiro, livros e material para desenho, para que elas tivessem uma ou duas horas de recreação, acredito que isso ajude para a interação de aluno e professor. Eu nunca imaginaria que isso poderia acarretar uma crise como aquela, Anallu enfiou-se embaixo da mesa murmurando, logo depois começou a se beliscar deixando marcas vermelhas nos braços e pernas, eu segurei suas mãos para que ela parasse de se machucar, mas só piorei as coisas, ela gritou e se debateu até se livrar das minhas mãos. Eu não sabia o que fazer, toda vez que tentava me aproximar a menina se debatia violentamente, receava que ela batesse a cabeça e se machucasse seriamente.
Busquei em minha cabeça qualquer solução, mas nada me veio. Tentei me lembrar do que a mãe dela havia me dito, lembrar de algo que pudesse me ajudar. Tivemos uma reunião na semana anterior, a mulher veio à escola com Anallu, me contou que a menina foi diagnosticada aos dois anos de idade com autismo moderado, e que a menina vem fazendo tratamentos desde então. Anallu melhorou bastante no comportamental e agora está totalmente independente, se veste, come e vai ao banheiro sem precisar de ajuda, mas na questão social estava tendo certa relutância, evoluia muito lentamente, os médicos acreditavam que ingressa-lá na escola alavancaria o desenvolvimento social da autista.
Anallu começou na segunda-feira, com apenas metade do tempo de aula, a mãe dela ficou por perto, para dar suporte e acalmar a menina. Nos dias posteriores, ainda com a metade da carga horária, a mãe não esteve presente, mas nada saiu do controle, ocorreu tudo bem. Naquele dia, sexta-feira, decidimos ver como ela se comportaria com o período completo de aula, a mãe não estava na escola, e eu tive que lidar com ela sozinha. Respirei fundo e me concentrei, o que eu sabia sobre autistas?... Eles são sensíveis a estímulos sensoriais!
Me virei para as outras quinze crianças, elas estavam assustadas com o comportamento de Anallu, falavam sem parar, eram crianças de oito e nove anos, eu não poderia culpá-las por não saberem como reagir a tal situação, pedi que todas fizessem silêncio, demorou um pouco, mas consegui a atenção delas.
-Como estão vendo, Anallu está com problemas, ela não sabe muito bem como lidar com o barulho e a agitação de todos vocês. Por isso quero que vocês fiquem quietos um pouco. - A turma concordou e se aquietou. - Muito bem, agora quero que você, Bruno, vá chamar uma das inspetoras do pátio, diga para ela vir com você. - Ele confirmou com a cabeça e saiu.
Minutos depois, a inspetora apareceu na porta um tanto alarmada, expliquei brevemente a situação e pedi que ela levasse todas as outras crianças para o pátio. Feito isso, eu poderia me concentrar na menina embaixo da mesa. Eu sabia que tocá-la não ajudaria, então eu só podia conversar com ela.
-Anallu. Veja, estamos sozinhas agora, todos os outros foram fazer um passeio pelo pátio. - Eu disse baixo e com a voz mais calma que conseguia naquela situação. - Se você se acalmar poderemos nos juntar a eles, o que você acha? Você quer ir passear também? - Ela balançou negativamente a cabeça. - Tudo bem então, vamos ficar aqui, mas você precisa parar de se machucar, você consegue? Parar de se beliscar? - Ela abraçou as pernas com força e começou a balançar o corpo para frente e para trás, ao menos havia parado de se ferir. - Muito bem.
Busquei uma maneira de distraí-la, subitamente me lembrei de que ela havia dito que gostava de animais, poesia e... guarda-chuvas! Guarda-chuvas era o seu hiperfoco, talvez eu possa usar isso para acalmá-la. Vou até minha mesa e procuro em minha bolsa meu guarda-chuva, por sorte o tempo estava fechado naquela manhã e eu me lembrei de colocá-lo na bolsa. Com o objeto em mãos, me aproximei de Anallu.
-Você disse que gostava de guarda-chuvas, né? O que acha do meu? - Com cuidado e devagar abri o objeto, era um modelo simples, preto com bolinhas brancas, Anallu pareceu se interessar. - Você quer ficar com ele? Você pode vir aqui pegar, se quiser.
Anallu, se remexeu no lugar, acho que ela ainda não se sentia confortável para isso. Me lembrei de um poema sobre guarda-chuvas que eu gostava quando criança, talvez se unisse as duas coisas que ela gostava a ajudasse.
-"Tenho quatro guarda-chuvas" - Comecei.
"todos os quatro com defeito;
Um emperra quando abre,
outro não fecha direito."
Anallu parou de se balançar e prestou atenção em mim, contínuei o poema:
-"Um deles vira ao contrário
seu eu abro sem ter cuidado.
Outro, então, solta as varetas
e fica todo amassado.
O quarto é bem pequenino,
pra carregar por aí;
Porém, toda vez que chove,
eu descubro que esqueci..."
Ela solta um risinho.
-"Por isso, não falha nunca:
se começa a trovejar,
nenhum dos quatro me vale
eu sei que vou me molhar.
Quem me dera um guarda-chuva
pequeno como uma luva
Que abrisse sem emperrar
ao ver a chuva chegar!"
Ela saiu engatinhando de baixo da mesa e se abrigou embaixo do guarda-chuva.
-"Tenho quatro guarda-chuvas
que não me servem de nada;
Quando chove de repente,
acabo toda encharcada.
E que fria cai a água
sobre a pele ressecada!
Ai..." - Concluí o poema.
-Gostou do poema, Anallu? - Ela assentiu com a cabeça. - Você se sente melhor agora? - Outra confirmação. - O que você quer fazer? Quer ficar aqui mais um pouco? - Ela não respondeu. Fiquei em silêncio, esperando por uma manifestação no tempo dela.
-Desculpa. - Ela diz num sussurro.
-Está tudo bem, você não precisa se desculpar por isso. - Olhei as horas no meu relógio de pulso. - Olha, só falta uma hora para acabar a aula, e aí sua mãe chegará para te buscar. Você acha que consegue esperar até lá? - Anallu gemeu angustiada. - Não se preocupe, você pode ficar com o guarda-chuva e podemos ler outro poema, podemos fazer isso sempre que você se sentir desconfortável.
Anallu assentiu. Fomos buscar as outras crianças no pátio, ela fez questão de se desculpar com elas também. Com todos na sala de aula, expliquei de forma simples para que as crianças entendessem a condição de Anallu, pedi que eles fossem pacientes e que não a tratassem diferente por conta do autismo. E como prometido, usei o resto do tempo para ler mais um poema.
Ler um poema no fim da aula se tornou uma espécie de tradição, sendo obrigatório ao final de cada dia. Quando acontecia de Anallu começar uma crise, cada vez com menos frequente, todos ficavam em silêncio em seus lugares, eu abria o guarda-chuva sobre a menina e recitava o primeiro poema que me vinha à cabeça, pesquisei e decorei alguns justamente para essas ocasiões, e Anallu logo se acalmava.
Quase um ano depois, Anallu fez questão de escolher o poema que deveria ser lido no final da aula, e para minha surpresa ela pediu para que ela mesma o lesse, claro que eu permiti. Anallu caminhou até a frente da sala, abriu seu guarda-chuva preto de bolinhas brancas e na sombra do guarda-chuva, onde ela se sentia segura, leu o poema:
-O Menino Azul, de Cecília Meireles:
"O menino quer um burrinho
para passear.
Um burrinho manso,
que não corra nem pule,
mas que saiba conversar.
O menino quer um burrinho
que saiba dizer
o nome dos rios,
das montanhas, das flores,
- de tudo o que aparecer.
O menino quer um burrinho
que saiba inventar histórias bonitas
com pessoas e bichos
e com barquinhos no mar.
E os dois sairão pelo mundo
que é como um jardim
apenas mais largo
e talvez mais comprido
e que não tenha fim.
(Quem souber de um burrinho desses,
pode escrever
para a Ruas das Casas,
Número das Portas,
ao Menino Azul que não sabe ler.)"
[1.428 palavras]
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