\2/ Forte como Cristal
Para Bio (MollyWoods1)
porque sim!
Osteogênese imperfeita, também conhecida pelas expressões "ossos de vidro", uma condição rara, que é basicamente ossos frágeis e quebradiços. Essa doença afeta aproximadamente uma em cada 20 mil pessoas; e eu não pertenço ao grupo estatístico das 20 mil saudáveis, eu sou uma dessas pessoas "sortudas" que tem essa doença. Fui diagnosticada logo depois de nascer, é por isso que meus pais me deram o nome de Cristal. A 15 anos faço visitas constantes ao hospital Santa Lúcia, especializado em ortopedia e fisioterapia pediátrica.
Eu não posso dizer que foi uma infância triste, mas com certeza não foi uma infância sociável. Por muito tempo só tive contato com médicos e meus familiares, nenhuma criança da mesma idade. Às vezes conversava com outras crianças em tratamento, mas nunca era uma relação duradoura o bastante para ser chamada de amizade. Eu não estou reclamando, eu amo meus pais e adoro meus médicos, são todas pessoas importantíssimas para mim, mas eu sempre senti falta de uma "melhor amiga", para quem eu pudesse contar meus segredos e falar bobagens, assim como nas séries e filmes que tanto assisto. Minha mãe não me deixou ir para a escola, ela contratou uma professora particular para me ensinar em casa, em segurança.
Não tenho muitas lembranças dessa época, mas eu cheguei a frequentar a escola primária, contudo no segundo ou terceiro dia, em meio à uma brincadeira, eu caí e tive três fraturas, no braço e perna direitos, e na bacia. Foram meses numa cadeira de rodas e muita fisioterapia, o Dr. Charles disse que foi muita sorte eu não ter batido a cabeça. Por outro lado, minha mãe ficou apavorada e nunca mais permitiu que eu voltasse para a escola. Eu não sei se ela sempre foi assim, mas desde que eu me lembro minha mãe é superprotetora, quando eu era pequena ela costumava me vestir tantas roupas que eu mais parecia uma almofada ambulante, tudo para o caso de se eu caísse, ou esbarrasse em algo, não me quebrasse. Eu sei que não é por mal, sei que ela me ama e me quer bem, mas ela não me deixou brincar com outras crianças, não me deixou correr, não me deixou fazer muitas outras coisas naturais de crianças, eu nunca aprendi a andar de bicicleta, ou pratiquei algum esporte, porque eu sou frágil e posso me machucar. Eu não posso tirar sua razão.
Minha osteogênese não é de um nível tão alto, isso quer dizer que eu não quebro tão fácil como minha mãe pensa, mas médico nenhum consegue fazer minha mãe pensar o contrário. Eu, mais que tudo, admiro essa devoção de minha mãe, tudo o que ela faz é por mim e para mim, por isso sei o quanto foi difícil para ela tomar a decisão de me deixar cursar o ensino médio num colégio de verdade.
Ao longo dos meus quinze anos, eu já quebrei todos os principais ossos do meu corpo, na maioria das vezes foi por bobagens. Por conta desses pequenos acidentes, minha mãe criou uma lista de prevenções e espalhou por toda a casa para que eu me lembrasse delas em todos os momentos. A frase que mais ouço minha mãe dizer é: "Melhor prevenir que remediar". Dito isso, já é possível imaginar a peleja que foi convencê-la, foi preciso muita persuasão e condições para que os médicos, minha professora e eu mudássemos sua opinião. O Dr. Charles teve que explicar três vezes que o maior risco em minha condição, era a má formação dos meus ossos na fase de crescimento e que como eu, tecnicamente, já havia parado de crescer, não teria maiores problemas. Minha professora disse que a interação com outros jovens da minha idade seria muito benéfico para o meu desenvolvimento, e que começar no 1°ano do ensino médio seria o melhor momento para eu ingressar na escola. E quanto a mim, eu afirmei, prometi e jurei que seguiria à risca toda a lista de prevenções.
Minha mãe fez questão de escolher um colégio particular, pois acreditava que seria mais organizado que um público. O ano letivo começa hoje, dia 8 de fevereiro, e eu ainda nem posso acreditar que estou, finalmente, frequentando uma escola de verdade. Passei o último mês em um estado constante de ansiedade e empolgação, sonhando acordada com meu primeiro dia. Porém, agora que estou parada em frente ao prédio acinzentado, com tantas pessoas transitando de um lado para o outro, me vejo em um pânico profundo de que alguma coisa desse errado, um simples esbarrão poderia ser o fim da minha vida acadêmica.
- Você está bem, querida? - Perguntou minha mãe, ela fez questão de me trazer de carro. - Você sabe que não precisa fazer isso se não quiser. - Sua voz era suave e tranquilizadora, mas sei que ela só quer me fazer desistir.
- Eu quero, estou bem. - Respondo convicta.
- Tudo bem. - Segurou meu rosto entre as mãos e me deu um beijo na testa. - Repita as cinco prevenções.
- Não andar com pressa. Não carregar peso. Usar sempre o corrimão nas escadas. Evitar multidões. E olhar por onde anda.
- Muito bem, é sempre melhor prevenir do que remediar. - Minha mãe solta um suspiro angustiado. - Me liga se qualquer coisa acontecer, vou estar com o celular na mão, tá bom?
- Mãe, não vai acontecer nada, eu vou ficar bem hoje, não se preocupe.
- Certo, certo. Bom, nesse caso, boa aula filha.
Me despeço com um abraço mais apertado que o normal, respiro fundo e mergulho na multidão. Tento não chamar muita atenção, mas é inútil quando o professor informa a turma toda da minha "condição delicada". Tenho certeza que isso é coisa da minha mãe, provavelmente ela exigiu que a escola deixasse claro sobre minha doença e divulgasse as devidas precauções sobre mim. No fim ninguém quis chegar muito perto. A manhã transcorreu normalmente como todo primeiro dia de aula, com muitas apresentações e pouca matéria. Quando chegou o fim das aulas eu estava exausta dos olhares e burburinhos de todos, eu estava me sentindo uma aberração de circo. Rumo para o banheiro e me fecho em uma das cabines, pelo menos aqui ninguém ficará me olhando. Eu não posso me abalar, é o primeiro dia, é claro que vão olhar para mim, afinal, não se encontra uma pessoas com ossos de vidro em cada esquina, mais cedo ou mais tarde as pessoas vão se acostumar. E aí então, terei a vida escolar que sempre imaginei. Já estou pronta para sair do banheiro e me mostrar ao mundo novamente!
- Mas que droga! Onde é que eu coloquei essa merda?! - Resmungava uma garota que fuçava em sua mochila em cima da pia do banheiro. Eu não a ouvir entrar.
- Perdeu algo? - Pergunto casualmente indo à pia desocupada para lavar minhas mãos.
- Mais ou menos, não sei onde guardei o formulário das eletivas... - Ela bufa e olha para mim, era negra com olhos pretos e lábios carnudos, o cabelo crespo puxados para trás, bem presos no topo da cabeça, suas roupas eram um pouco desleixada, jeans surrado e camiseta folgada, a gola parecia ter sido cortada fora. - Ei, você não é a garota de vidro de quem tá todo mundo falando?!
Eu já aceitei que seria o assunto na escola, pelo menos nessa primeira semana, mas eu não esperava que alguém fosse ser tão direto assim.
- Acho que sou. - Dou um risinho sem graça.
- Que merda, deve ser um saco ser você.
- O que? - Digo pela surpresa e não por não ter entendido o que ela disse.
- Mano, você não pode fazer muitas coisas. Tipo... karatê, em vez da madeira, você quebraria sua mão! - Por incrível que pareça, ela disse isso com muita seriedade, ao contrário de mim, que acabei rindo.
- Ainda bem que eu nunca quis lutar karatê. - Respondi com um sorriso. Pela sua expressão ela pareceu tomar ciência de suas palavras.
- Ahh, me desculpe. Eu não tenho filtro, então acabo dizendo tudo o que vem na cabeça.
- Acho que já percebi isso.
- Pois é, - ela deu um sorriso constrangido. - Mas é que é uma doença tão diferente, que fiquei pensando, sabe?
- Eu sei, já estava meio que preparada para isso. - Fui pegar papel para secar minhas mãos. Minha companheira volta sua atenção para a bolsa.
- E sexo? - Ela perguntou de repente.
- Como?! - Estou perplexa.
- Você pode fazer sexo? Porque tipo, se o cara for muito intenso ele pode quebrar alguma coisa.
Sinto meu rosto ruborizar, não que eu nunca tenha pensado sobre, mas sair falando disso com uma pessoa que acabei de conhecer no banheiro é meio estranho. Mais uma vez vejo a lucidez recair sobre ela, que leva as duas mãos a boca, a garota parecia querer devolver as palavras para dentro da sua garganta.
- Não precisa responder! - Eu não responderia de qualquer maneira. Um leve rubor surge em sua fase, envergonhada ela continua sua procura pela mochila. - Achei! - Grita ela segundos depois, tão abruptamente que eu me assusto.
- O que é esse papel mesmo? - perguntei curiosa e decidida a mudar de assunto, ela foi a primeira pessoa que conversou comigo hoje, eu não iria deixar essa oportunidade passar.
- É o formulário para participar das disciplinas eletivas. Além de esportes, tem robótica, pintura e teatro, que é o que vou fazer. Você já sabe em qual você vai entrar? - Neguei com a cabeça. - Então porque não vem para teatro também? Você tem uma postura boa, certeza que se daria muito bem.
- Não sei, muita articulação, parece perigoso...
- Perigoso?! O que tem de perigoso em encenar uma peça? - Ela estava indignada, eu apenas ergo uma sobrancelha. - Ah é, eu tinha esquecido, mas é só tomar cuidado e não pegar as cenas de ação. - Ela riu. - A propósito, me chamo Diara e você?
- Cristal. Seu nome é diferente, nunca conheci ninguém com o seu nome. - Tento não deixar o assunto morrer.
- Eu também nunca conheci, mas sei que deve ter outras Diaras por aí. O nome significa: dom do silêncio, bem irônico, né? Meus pais erraram feio na escolha. - Nós rimos.
- O meu foi preciso, minha mãe diz que tinha três nomes para mim, mas depois que os médicos disseram que eu tinha ossos de vidro ela decidiu pôr Cristal.
- É um nome legal e eu acho que combina com você, mas não por causa da sua doença, está além disso... não sei como explicar.
Apesar de sua franqueza absurda, ela pareceu ser uma garota legal. Eu acabei acompanhando-a até a sala de teatro onde ela iria entregar o formulário, já havia algumas pessoas lá e Diara se enturmou bem rápido, o melhor é que ela não me deixou de fora, pelo contrário ela me apresentou e me colocou na conversa, e ainda fez com que todos apoiassem sua ideia de me fazer entrar para essa eletiva. Me disseram que havia muito mais coisas que eu poderia fazer além de atuar, como cenário, figurino ou até ajudar a decorar as falas. Me senti tão acolhida que não pude negar preencher o formulário. Agora sou oficialmente um membro da eletiva de teatro, só não sei como vou contar isso para minha mãe.
A primeira semana se arrastou lentamente para seu fim, as aulas eram chatas e os cochichos sobre mim ainda rondavam pelos corredores, apesar de sentir que estavam diminuindo. Não consegui me enturmar com ninguém da minha sala ainda, todos parecem ter medo de se aproximar. Meu dia só melhorava no fim das aulas, quando eu poderia ir para a eletiva de teatro, que por sinal eu não contei à minha mãe, quando ela me perguntou sobre as eletivas disse que escolhi literatura, não consegui dizer a verdade.
No momento não havia muito o que eu fazer ali, mas ainda assim era divertido ver os outros membros recitando poemas, monólogos e trava línguas. Diara era do time dos monólogos, ela sempre achava um sobre discriminação, e enquanto ela declamava o texto tirado da Internet, suas paralavra parecia ganhar muita força, ela conseguia transmitir toda raiva e indignação que o monólogo continha. Eu a achava incrível. Hoje, porém, é diferente, estamos todos discutindo sobre qual vai ser a peça a ser apresentada no final do semestre.
- Agora calem a boca! - Pronunciou-se Rebecca. - Eu sei, Shakespeare é incrível, lindo e maravilhoso, um clássico! Mas já deu. Este é o meu último ano na escola e essa vai ser minha última apresentação, tenho que fazer vestibular e por tanto não vou poder participar da apresentação de fim de ano. E foi pensando nisso que eu mesma escrevi uma peça, mas ainda não está cem por cento, eu estou aceitando sugestões. Todos nós sabemos que somente nossos pais vem assistir a essas apresentações da escola, por isso eu quis escrever uma peça que nos daria a oportunidade de nos expressarmos para nossos pais. A peça se chama "Rebeldes sem causa", onde um grupo de adolescentes com problemas com os pais, se juntam em um movimento para se fazerem ser ouvidos e entendidos, e acabam em uma jornada de autoconhecimento. Essa peça é para ser nosso momento. Vamos mostrar que somos mais do que rebeldes sem causa. Mandei uma cópia no grupo, se possível leiam e segunda decidimos se fazemos ou não.
O silêncio permaneceu por mais um tempo, todos conferiram o celular para ver se tinha mesmo um arquivo. Diara foi a primeira a se manifestar.
- Gostei da ideia, vai ter discurso no final?
- Ainda está aberto para alterações. - Respondeu Rebecca com um meio sorriso.
- Beleza, segunda vou chegar com muitas ideias. - Diara pareceu animada.
No caminho para casa, Diara não parava de falar nas várias peças que já tinha assistido, muitas delas eu não conhecia. Era contagiante ver o entusiasmo da minha amiga, eu mesma já estava ficando ansiosa para o dia do espetáculo, que só seria daqui a quatro meses, e nem sou eu quem vai subir no palco.
Segunda-feira, Diara chegou na sala de teatro com a peça impressa, chamou todos para perto e começou a juntar ideias, todo mundo deu palpite. Muitos espelhando o próprio convívio com seus pais. A hora passou despercebida e antes que finalizasse os upgrades na peça o sinal tocou encarando o período. Os dias que se seguiram foram a mesma coisa, melhorando a peça, planejando o cenário, escolhendo os figurinos e distribuindo papéis. Com tudo isso fevereiro passou num piscar de olhos e março seguia pelo mesmo caminho.
- Agora só falta alguém para uma personagem - Diara disse pensativa.
- Qual? - Perguntei casualmente.
- Aquela que é superprotegida pela mãe e irmãos. - Explicou Rebecca que estava junto, com o mesmo dilema.
- Sei qual é, não tem ninguém que queira fazer esse papel? - Perguntei pensando nas opções.
- Até tem, mas estávamos pensando em uma pessoa específica, e no caso... seria você. - Concluiu Rebecca vagarosamente.
- Impossível! - Digo imediatamente.
- Cristal, esse papel é perfeito para você. Eu me segurei e não falei nada, mas aquela lista da sua mãe é um absurdo, e eu sei que você concorda comigo! - Manifestou-se Diara. - Sem falar que você decorou quase todas as fala de todo mundo.
Diara foi à minha casa semana passada, pegar um livro emprestado, é claro que ela viu a lista de prevenções que minha mãe faz questão de espalhar pela casa. Eu também acho que alguns tópicos da lista são exagerados, mas ainda assim, são situações que podem gerar "acidentes" graves com meus ossos frágeis. É como minha mãe sempre diz: melhor prevenir do que remediar.
- Eu não posso. Minha mãe me tiraria da escola assim que descobrisse que eu não estou seguindo com as prevenções. Ela nem sonha que eu estou fazendo teatro, eu disse para ela que era literatura, e se ela descobrir, não quero nem imaginar o que faria.
- Esse é mais um motivo para você participar! Esse é o grande objetivo da nossa peça! - Eu neguei com a cabeça. - Você não precisa contar para sua mãe, chama ela para ver a apresentação e surpreende ela subindo no palco. Eu prometo que levo a bronca junto com você depois. - Diara levantou a mão como se fizesse um voto de escoteira. Me segurei para não soltar um risinho. Eu não aguento a pressão dos olhares de Diara e Rebecca.
- Tudo bem, vocês venceram. Eu faço o papel. - Me dou por vencida.
Agora que o elenco estava completo, só nos restava ensaiar. Quando não estávamos decorando as falas, ajudavamos com a produção dos elementos do cenário, ou com os figurinos. Eu me esforcei ao máximo para aprender a atuar, Diara e Rebecca me ajudaram muito com isso, elas foram muito pacientes comigo. Quando me dei conta já havíamos entrado em maio, a apresentação seria em um mês e alguns dias. Tudo estava indo conforme o planejado, os ensaios estavam bons e o cenário estava quase finalizado. Era um alívio ver tudo correr tão bem.
- Desde que eu entrei para essa eletiva, nunca estivemos tão adiantados assim. Parece até milagre. - Disse Rebecca, ela se tornou praticamente nossa diretora, supervisionava tudo, o pior é que levava jeito para a coisa. Ela era bem exigente, mas acho que qualquer um seria na posição dela. - Cristal. - ela se dirige a mim, eu congelo. - Sei que é sua primeira vez, mas é minha última peça na escola e quero tudo perfeito, então expresse mais os sentimentos da personagem, ela está furiosa, demonstre isso com seu corpo também.
Eu confirmei com a cabeça, mas é mais fácil falar do que fazer. Eu posso ser muito boa em decorar falas, porém existe um enorme abismo entre falar e atuar, sem contar com a ansiedade que me dá toda vez em que penso no tanto de pessoas que vão estar assistindo, e possivelmente minha mãe também vai estar na platéia, ela vai enlouquecer quando me ver no palco. Estremeço toda vez que penso nisso. Apesar dessa pressão psicológica, ensaiar está sendo muito divertido, quero dar o meu melhor também. Respiro fundo e tento incorporar a personagem, uma garota que tem muito para falar, mas ninguém para ouvi-la. Eu posso fazer isso.
- Cuidado!
Alguém alertou, mas foi tarde demais, eu já tinha tropeçado e caído. Eu senti o estalo tão familiar, que é capaz de causar muito pânico. Em pouco tempo todos estavam à minha volta num falatório sem compreensão. A dor em meu braço não era tão forte, sinal de que o estrago era mínimo, com sorte seria só uma fissura. Me sento segurando meu braço lesionado, todos estão me olhando preocupados, Diara, que estava mais perto, parecia apavorada.
- Eu estou bem. - Tentei tranquilizar a todos. - Alguém pode pegar minha bolsa, por favor. Eu tenho que ligar para minha mãe.
Essa era a última coisa que eu realmente queria fazer. Ligar para minha mãe implicava em contar como, onde e por que, eu me machuquei, o que quer dizer que eu teria que contar a verdade e eu não sei como fazer isso. Em poucos segundos minha bolsa apareceu, com a mão boa peguei meu celular e liguei. Não esperei nem seu alô, assim que ela atendeu eu já falei o problema.
- Mãe, eu caí, meu braço... - Não era preciso dizer mais nada.
- Ai meu deus, não se mexa. Eu to indo te buscar. Está doendo? Foi muito grave? Pede para alguém avisar a diretoria. Eu vou te levar direto para o Santa Lúcia. Vou avisar o Dr. Charles...
Eu pude ouvir toda a movimentação dela em casa, ela continuou falando, porque ela fala quando está nervosa, mas eu já não estava com o celular na orelha. Isso já aconteceu muitas outras vezes, mas é impossível se acostumar com a dor, tento manter o controle para não preocupar ninguém. Minha mãe chega mais rápido do que eu julgava possível. Ela me encontra na sala de teatro, mas não faz perguntas, não ainda, primeiro ela vai me socorrer e só depois começará o interrogatório. Minha mãe veio preparada, trouxe de casa uma tipoia na qual colocou meu braço com muita maestria, já foram muitos anos praticando.
Com meu membro imobilizado, fui levada para o carro. Minha mãe deu a partida, seguimos direto para o Santa Lúcia, fomos recebidos pelo Dr. Charles, que já havia preparado tudo para o raio-x. No fim, eu estava certa, era só uma fissura. Fui medicada e meu braço foi engessado, era o procedimento de sempre, nada fora do comum. O que eu mais me preocupava agora era quando eu poderia tirá-lo, afinal eu ainda queria participar da peça. Perguntei ao Dr. Charles e ele disse que em 30 dias estará novo em folha. Fui liberada e minha mãe me levou de volta para casa. Ela não esperou mais para começar o interrogatório. Consequentemente eu tive que contar toda a verdade. E como o esperado ela surtou.
- Eu não acredito que você mentiu para mim! Você prometeu que seguiria as prevenções, mas ao invés disso você foi contra elas. Meu Deus, onde você estava com a cabeça? Você sabe que não é como todo mundo, que não pode ficar por aí como se nada pudesse acontecer! Você foi muito irresponsável. Já decidi, você não vai mais para à escola. você vai estudar em casa como sempre fez, onde eu posso ficar de olho, já que eu não posso mais confiar na minha própria filha! - Minha mãe estava furiosa, mas eu não podia ficar só ouvindo ela falar como se eu fosse incapaz de fazer qualquer coisa.
- E por acaso sou uma inválida agora? Que não posso nem mesmo ir à escola, mãe?! Eu não vou parar com a escola e vou continuar no teatro queira você ou não, é da minha vida de que estamos falando, já sou velha o bastante para fazer minhas próprias escolhas e arcar com as consequências que vier com elas.
- Não é uma questão de escolha, Cristal! Você tem ossos de vidro e escolha nenhuma vai mudar isso, você vai se quebrar com até mesmo um esbarrão com outra pessoa!
- E por causa disso eu não posso me divertir?! Por ter essa doença eu to sentenciada a cárcere privado? Eu não posso nunca me divertir e ser uma adolescente normal?! - Lágrimas de frustração tentavam escapar de meus olhos. - Não posso continuar vivendo em uma bolha, mãe. Eu não sou mais a menininha que precisava da sua proteção. Eu já cresci e posso me cuidar sozinha agora.
- Você não entende que tudo o que fiz foi para a sua segurança?!
- É você que não entende. Você não pode me proteger de tudo, acidentes acontecem em qualquer lugar, não faz diferença se estou aqui ou na escola, eu vou estar sempre em perigo.
- Você não vai voltar para a escola e ponto final!
- Você não pode me proibir!
- Eu sou sua mãe, é claro que eu posso!
- Então você prefere me ver infeliz a conceder um desejo meu? Eu quero continuar indo para a escola e para o teatro, porque lá eu tenho amigos, lá eu sinto que sou uma garota de 15 anos normal, eu me divirto e tenho um papel para representar. Você não vai me fazer mudar de ideia.
- Enquanto eu for a responsável por você, você vai fazer o que eu mandar.
- Então se é assim vou ir morar com meu pai! - Dei as costas para minha mãe e fui para meu quarto.
Eu falei da boca pra fora, não tenho real intenção de ir morar com meu pai, nem em um milhão de anos. Mas quis ameaçar minha mãe de alguma forma, mostrar que tinha outras opções. Meus pais se divorciaram quando eu tinha dois anos, não tenho certeza, mas acredito que foi por minha causa. Meu pai foi embora deixando minha mãe e eu sozinhas, mas minha mãe nunca demonstrou fraqueza, sempre se virou e cuidou de mim muito bem. Vejo meu pai nos finais de semana e em datas comemorativas, ele não é uma pessoa ruim, ele é até bem divertido, mas não posso aceitar o fato de que ele deixou minha mãe sozinha para cuidar de mim. Eu nunca poderei fazer o mesmo.
Depois da nossa discussão, nós não falamos mais sobre o assunto, ela estava magoada e eu não sei como pedir desculpa sem ceder minha liberdade. Não fui a escola hoje, e aproveitei para decorar minhas falas, Diara me ligou e perguntou como eu estava, mesmo eu tendo mandado mensagem para ela no dia anterior, contei sobre minha briga com minha mãe e ela disse que ficaria tudo bem, que ela briga com os pais toda semana, mas que sempre se resolvem com o tempo. Falar com ela foi reconfortante, fez eu me sentir menos culpada. Eu me acertaria com minha mãe mais cedo ou mais tarde, o importante agora era mostrar o quanto eu estava séria sobre a escola e o teatro. Por isso, no outro dia me aprontei e sai de casa sem falar com ela, estudei de manhã e ensaiei de tarde e ela não me mandou nem mesmo uma mensagem. Quando cheguei em casa a encontrei na sala, mas não proferimos nenhuma palavra, só olhares vazios.
Nossa relação se tornou fria, não falamos mais do que o necessário uma com a outra, essa situação estava me corroendo por dentro, por muitas vezes eu quase desisti de tudo, só para ter um abraço materno. Durante o jantar eu me prolonguei à mesa na esperança de ela dizer alguma coisa, mas minha mãe é cabeça dura, nunca dava o braço a torcer, acho que herdei isso dela. Os dias passaram com esse muro de palavras não ditas entre nós, me sentia sufocada por ele. O mês passou e eu fui tirar o gesso, o clima entre minha mãe e eu estava tão pesado, que nem mesmo o Dr. Charles ousou dizer alguma coisa. Faltavam apenas dez dias para a apresentação e eu não sabia como falar com minha mãe, eu queria que ela me assistisse, mas talvez isso seja pedir demais. Tentei não pensar nisso e focar nos preparativos para a peça, me incubiram de distribuir os panfletos pela escola.
O dia da apresentação chegou e antes de sair de casa, deixei um panfleto na mesa da cozinha, para que minha mãe visse. Espero que ela se sinta convidada e venha para ver a peça. A apresentação duraria pouco mais de uma hora, começaria às 5 da tarde. Eu não sabia se estava mais nervosa por está estrelando uma peça, ou por não saber se minha mãe estaria ou não na plateia.
- Cris, está tudo bem? - Perguntou Diara, - você não está com uma cara muito boa.
- Estou bem sim, é só nervosismo. - Respondo.
Acho que estão todos nervosos, nos bastidores está uma correria, alguns a procura dos seus figurinos outros preocupados com os penteados e as maquiagens. Todos estavam agitados, mas na hora de subir no palco, todos respiramos fundo e deixamos nossas preocupações nos bastidores. Era hora do show.
A peça girava em torno de seis adolescentes, que tinham algum tipo de desavença com os pais, cada um à sua maneira se sentiam sufocados. Eles se encontram por acaso e formam o grupo dos "Rebeldes Sem Causa", a fim de criar um movimento onde eles podiam ser ouvidos. A minha personagem era a mais nova de cinco irmãos, um acidente do passado, que fica subentendido na peça, faz com que os pais e irmãos mais velhos se tornem superprotetores, não permitindo nem mesmo que ela saísse na rua sozinha, pois ela poderia ser assaltada, ou atropelada, ou sequestrada e muitas outras paranoias parecidas; e isso a irritava, pois ela não era uma garotinha indefesa. Diara fez o papel de uma garota cuja mãe queria que ela fosse impecável, que ela seguisse à risca todas as normas de etiqueta e da sociedade, mas a personagem era o oposto de tudo o que a mãe sonhava. Acho que essa personagem combinou bastante com a personalidade desleixada de Diara. Os outros personagens eram o filho de um militar que não queria ir para o exército, um homossexual não aceito pelo pai, uma garota gorda cobrada para emagrecer e por último, a personagem de Rebecca, cujo o pai queria que seguisse a mesma carreira que ele. Todos os oprimidos pela vontade dos pais.
A peça correu bem, com um improviso aqui e ali, mas nada que a plateia percebesse. Chegou o grande final, proposto pela Diara, onde os seis jovens dava um passo à frente e diziam o que estava sufocando-os:
THIAGO: "Eu não tenho que servir ao exército!"
DIARA: "Eu não tenho que ser uma princesinha!"
PRISCILA: "Eu não tenho que ser magra!"
PEDRO: "Eu não tenho que ser hetero!"
CRISTAL: "Eu não tenho que ser tão protegida!"
REBECCA: "Eu não tenho que ser como você quer!"
TODOS: "Somos jovens e estamos em constante metamorfose, por isso nos deixe fazer nossas próprias escolhas."
As cortinas se fecharam, meu coração estava disparado, eu pude ouvir a plateia aplaudindo e não pude deixar de imaginar minha mãe ali, me assistindo. Todos subiram no palco e as cortinas abriram novamente, todos juntos nos curvamos em agradecimento e uma segunda salva de palmas explodiu para nós. Eu estou realmente feliz por ter participado. As cortinas se fecharam e descemos o palco. Todos estavam no maior frenesi, entusiasmados com o sucesso da peça. Aos poucos o camarote foi se esvaziando, um por um saindo a procura dos seus familiares, eu fiquei esperando Diara para sair, não sabia se ia encontrar minha mãe, mas se eu a encontrasse eu precisaria de apoio emocional.
Cruzei com minha mãe logo na saída do camarote. Não tive tempo nenhum de pensar no que dizer. Minha mãe tinha os olhos marejados, teria ela se emocionado com a peça?
- Foi uma apresentação maravilhosa. - Ela disse abrindo os braços convidando para um abraço. É claro que eu aceitei. - Me desculpe, eu não devia ser tão cabeça dura.
- Eu também fui, então estamos quites.
De canto de olho vi Diara sair de fininho para não atrapalhar. Depois de um longo abraço, nos sentamos num canto e conversamos, sem brigas, sem ordens e sem ameaças. Colocamos tudo em pratos limpos. Chegamos a conclusão que eu poderia continuar na escola e no teatro com meus amigos. Concordamos que se divertir é bom, mas que as prevenções são importantes para que tudo corra bem, afinal é melhor prevenir do que remediar.
(4.998 palavras)
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