Capítulo 16
Depois de Elliot desaparecer nos campos montado no seu cavalo pezenho, Aurora voltou para dentro de casa, e sentou-se frente á mesa onde o embrulho de cor camel pousava. Ficou estática apenas fitando essa embalagem, mas sem coragem para a abrir. A sua curiosidade era incomensurável, tão grande que a petrificava ante o ato de o fazer. Pode parecer contraditório, mas queria aproveitar aquele sentimento o mais que pudesse. Quando finalmente a abriu e vislumbrou o traje que continha, ficou deslumbrada.
Despiu o vestido usado que envergava, colocou uma crinolina modesta de arco, e muito delicadamente colocou a veste que lhe havia sido regalada. Quando se viu ao espelho, sentiu um misto de emoções. Parecia que era alguém diferente, não era ela, e ao mesmo tempo não conseguia se imaginar noutra figura que não aquela. O vestido era relativamente simples, ainda que sofisticado. Deixava-lhe os ombros descobertos, as mangas pousavam já só depois dos mesmos. No peito e nas costas pousava uma renda cara muito detalhada e delicada de cor creme. O decote apesar de grande não era de modo algum vulgar ou corriqueiro. O vestido em si era de um tom de um azul muito suave que talvez aos olhos dos mais distraídos se confundisse com um tom de brancos e cremes, possuía dois folhos, sendo que o primeiro terminava já a meio da tíbia e o outro seguia até ao chão descrevendo uma pequena cauda atrás. Na bainha de cada um deles estava presente de novo a renda creme.
Apesar de estar despenteada e com o vestido posto muito rapidamente sem levar o corpete por baixo ou a crinolina correta, Aurora estava realmente admirável. Parecia que a peça havia sido desenhada para si. Os tons claros daquele traje realçavam-lhe o moreno dourado da sua pele. E o decote que descobria os seus ombros largos, dava-lhe um ar imponente, majestoso. Era uma imagem que inspirava respeito, mas também harmonia e simplicidade. Elliot não poderia ter escolhido melhor.
Quando se abstraiu finalmente da sua própria imagem viu que dentro do grande embrulho haviam outras coisas que não o vestido. Uma delas um bilhete, que certamente seria de Elliot.
Minha querida Aurora
Tal como lhe prometi trago este vestido como regalo. Escolhi esse modelo, e as cores claras, porque realmente julgo que são aquelas que a favorecem mais. Não posso deixar de invocar na mente a primeira vez que a vi trajando um vestido muito simples, branco, de organdi. Não acho que precise de nada mais para sobressair no meio de qualquer multidão.
Sei também que nada mais falei se não de um vestido. Mas considere os outros presentes com boa vontade e não os mande de volta.
Anseio inquieto e impaciente pelo dia de amanhã, e pelo toque da sua pele na minha uma e outra vez.
Seu, muito sinceramente, Elliot.
Ela não podia estar mais satisfeita com aquilo que o jovem escolhera. E depois de ler algumas vezes o bilhete com uma expressão terna e envergonhada, decidiu ver o que havia na caixa além do vestido. Basicamente, dentro da caixa estavam outros acessórios que completavam o conjunto com o vestido. Havia um par de luvas delicadas no tom creme da renda, e uma capa de veludo que ia até ás ancas com desenhos delicados de pequenas flores, no tom de azul do vestido. Certo que já era verão, mas caso estivessem no jardim aquela peça daria imenso jeito. Para além disso havia um par de botins cor creme com detalhes de renda.
Aurora estava completamente deslumbrada com aquilo que via. Porém, também se encontrava algo apreensiva, e desconfortável. Tudo aquilo era de uma delicadeza e perfeição incríveis, de certeza que tinha sido caro. Para além de não se sentir confortável em aceitar presentes, desta vez estes eram realmente coisas de grande valor. Mas também tinha perfeita noção que não iria persuadir Elliot a devolver nada daquilo. E pela prima vez na vida, deixou-se rejubilar por tais atenções.
*
Eram três da tarde quando Lucy apareceu em casa de Aurora no dia seguinte. Tinham combinado dessa forma para que esta a pudesse ajudar a preparar-se. Vendo o traje, a loira não se conseguiu conter:
- Meu Deus Aurora, que vestido maravilhoso, e caro por certo!! - Lucy olhava o vestido pendurado, mas receosa de lhe tocar.
- Por Deus Lucy, não digas uma coisa dessas, já basta o que me martirizei ontem por aceitar coisas tão caras.
- Não volto a referir tal coisa, desculpa, mas não havia motivo nenhum para não o aceitares. Vamos mas é despachar, com o lanche e tudo mais perde-mo-nos das horas, já são quase quatro e meia e tu ainda só estás calçada, muito bem calçada é certo, e com a roupa interior e a crinolina.
- Estás certa amiga. Vá, aperta o corpete por favor Lucy.
Lucy apertou o corpete com vigor mas deixando espaço para que a amiga não corresse o risco de desfalecer a meio da noite. Por cima da roupa interior finalmente posou o vestido. E muito a medo Lucy foi passando os fios que o apertavam atrás nos devidos orifícios, mas com muito receio de por algum azar puxar uma linha daquele objeto imaculado.
- Bem, são cinco horas, só falta que te arranje o cabelo. Meu Deus, como estás divina Aurora, não sei até que ponto o Senhor Ashmore te conhece assim tão bem mas eu acho que não podia ter feito melhor escolha.
Aurora riu envergonhada e se deixou deslumbrar pela sua figura, ainda mais majestosa que no dia anterior. Sentando-se no penteador, a amiga de longa data penteou delicadamente os seus longos cabelos escuros prendendo-os num coque algo elaborado e colocou por cima uma travessa prateada com delicadas flores. Deixou soltas algumas mexas da frente que eram mais curtas, e depois levou-lhe as luvas para ficar realmente pronta.
- Como estás bela amiga! Sempre achei que eras dotada de uma beleza diferente de qualquer outra. Mas este vestido, este requinte, é quase como se finalmente se houvera esculpido todo o teu encanto e enaltecido todas as tuas boas qualidades. Espero que tenhas uma noite inesquecível, e que o Senhor Ashmore seja merecedor de tão incomparável companhia.
- Oh boa Lucy, tens me em demasiado boa conta...a caso não achas que parecerei ridícula aos olhos daquelas pessoas? Uma camponesa, filha de comerciantes emigrantes, a tentar parecer uma senhora fina.
- Oh Aurora, de maneira nenhuma, livra-te de pensamentos tão deslocados! Não digo que não haja maldade nos olhos de algumas pessoas que talvez possam lá estar, mas de nada lhes servirá tal coisa á beira da tua grandiosidade.
As duas jovens olharam-se se compreendo. E no final de tudo arranjado pouco faltava para as cinco e meia, a hora que Aurora havia marcado com Elliot.
Ouviram uma carruagem chegar perto da modesta casa e logo souberam que devia ser Elliot. Aurora pediu para Lucy descer e abrir a porta enquanto ela colocava as luvas e se preparava mentalmente para o encarar. Antes de descer pegou na capa de veludo que lhe fora oferecida e depois percebeu que lhe faltava um colar ou uma gargantilha e procurou dentro da sua caixa por algo que servisse.
Enquanto isso Lucy descera e abrira a porta a Elliot.
- Eu presumo que o senhor seja o Senhor Ashomore. Entre por favor. O meu nome é Lucy Strain, sou amiga de longa data da Aurora, vim ajudá-la a preparar-se. Não se preocupe que não tarda nada ela descerá do quarto.
- Muito prazer menina Strain. A Aurora já me havia falado de si e das suas qualidades. Com certeza deve ter orgulho de tais atributos. Também lhe agradeço os favores que lhe prestou enquanto ela não se encontrava em casa.
- Não quero outros agradecimentos para além de que trate com todo o carinho e respeito a minha querida Aurora. Não o vou desculpar se não o fizer.
- Pode ficar descansada, nem eu me desculparia se não o fizesse.
Enquanto falavam, Aurora desceu as escadas nos seus botins brancos. E mal Elliot a vislumbrou, ficou abismado com tal visão. Já tinha imaginado milhentas vezes como ficaria Aurora naquele vestido, mas ver ali á sua frente a imagem real, era bem diferente, e sem dúvida muito mais encantadora, mas também colossal. Elliot sentia o seu coração acelerar, não como por outras vezes acontecera por culpa das suas delicadezas, mas movido apenas pelas suas afeições e vontades.
- Vamos? Acho que se não sairmos já, vamos acabar por nos atrasar Elliot. - Aurora sorriu ao ver a expressão de encanto na cara do seu par.
- Não vou se quer tentar exprimir em palavras o quão magnífica me parece aos meus olhos, seria uma missão completamente falhada. Mas saiba que todas as imagens que tinha formado na mente, superou-as indubitavelmente.
Os dois dirigiram-se para a carruagem despedindo-se de Lucy. Os cavalos baios saíram a trote e rapidamente desapareceram.
No interior do compartimento, Elliot ainda estava demasiado embriagado pela visão de Aurora. E só depois de uns dez minutos de viagem, se principiou a lhe falar.
- Peço desculpa por este silêncio mais incómodo que os que costumamos partilhar. Mas realmente foi um agrado incomensurável vê-la nesse traje.
- Não sei como lhe agradecer por tão grandes atenções, pelo vestido e por tudo o resto. Espero ser merecedora de tudo isto.
- Estou mais que certo que o é, mas...digamos que ainda não terminei as minhas oferendas. Ficou a faltar uma que não meti no embrulho por ser bem mais delicada.
- Compreende o quão desconfortável me faz sentir? Deu-me imensas coisas de um valor elevado e eu não vou ser capaz de retribuir tais coisas!
- Nem eu quero que o faça. Não a presentei com o intuito de receber algo em troca. E como disse anteriormente, é uma forma de agradecimento pelo que fez.
Aurora desistiu de dizer alguma coisa. Elliot tirou de um compartimento em baixo dos bancos da carruagem uma caixinha de veludo negro. Quando a Aurora abriu, viu do que se tratava. Era um fino e delicado colar de prata com três pequenas pedras azuis encastradas.
- Permite-me que o coloque? - perguntou Elliot sem esperar que Aurora se manifestasse.
- Sim Elliot... - Aurora estava encantada com o colar. Era muito simples e delicado, mas de uma beleza enorme.
Elliot tirou do pescoço da jovem um outro colar que ela havia posto e guardou-o na caixa de veludo. Muito delicadamente apertou o colar de prata fazendo com que as suas mãos encontrassem a pele morena de Aurora. As mãos dele estavam algo frias, Aurora sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo, mas nem por isso desejava apartar de si o jovem que estava ao seu lado. Ele beijou-lhe o pescoço, e de seguida afastou-se um pouco para a observar. Sentavam-se lado a lado por isso não a via totalmente de frente.
Depois de feitas as descrições de beleza habituais sobre o colar, Aurora mudou de assunto manifestanto a sua preocupação em relação ao baile, estava imensamente receosa do tipo de pessoas que encontraria lá.
- Não se preocupe Aurora. Vai ser um baile modesto. Kenward não convidou muita gente, gastou muitos dos seus rendimentos no casamento da sua filha do meio por exigência dela e da esposa. Os convidados são basicamente outros burgueses, comerciantes, e um ou outro nobre mais chegado á família por via dos negócios. Vai estar lá o meu primo e seu conhecido, o Robert, e Henry, que também já teve oportunidade de conhecer. Para além disso estarão lá outros conhecidos meus com a suas respetivas esposas que terei todo o prazer de lhe apresentar. E basicamente é isso, e estará também a família de Kenward como é óbvio. As suas filhas e respetivos maridos, e o seu filho. Acredito que esse, e as suas companhias, seja o que deve a todo o custo evitar. É um homem completamente desprovido de senso e de educação, por vezes custa-me a crer que é filho de quem é. Mas acredito que a filha mais nova, a menina Isabel Kenward será uma ótima companhia. Vai adorar conhecê-la.
Elliot respondeu a mais uma ou outra pergunta de Aurora sobre as peculiaridades dos bailes e depois disso a jovem recostou-se no seu peito. O coração de Elliot ainda palpitava acelerado pelo entusiasmo de a ter assim, daquele jeito, ao seu lado.
*
Chegados á mansão de Kenward, Elliot reparou que eram quase os últimos a chegar. Faltava apenas o Senhor e Senhora Blair, amigos conhecidos, e o seu primo. Na verdade, este nunca chegaria, apesar de ter respondido afirmativamente ao convite, não conseguiu cometer-se a comparecer depois de saber que Aurora também iria. Não podia fugir para sempre, mas enquanto pudesse, fugiria.
Os olhos dos convidados estavam postos em Aurora. Os olhos que julgam, os que admiram, os que agridem, os que exaltam, os que são ignorantes, e os que são complacentes. Aurora sentiu-se extremamente desconfortável. Mas a verdade, é que nenhuma outra mulher se apresentava mais distinta que ela. Parecia um Deusa, ou uma ninfa, mas certamente não uma humana. Agarrou a mão de Elliot firmemente e este podia sentir o seu desconforto enquanto se passeavam pela grande sala de baile onde iriam todos dançar depois do jantar. Como que se a tentasse proteger agarrou com igual força a mão da jovem e iniciou os cumprimentos por aqueles com que Aurora podia estar totalmente á vontade.
Alguns dos olhares penitenciários que se erguiam da multidão eram de um dos nobres, Lord Hamilton, mas mais do que este, um olhar ainda mais sujo se erguia, o de Edward Kenward. Os dois discutiam avidamente as mulheres que viam passar pelo salão como se fossem objetos, mercadoria. Quando Aurora entrou foi como se o momento alto da noite tivesse finalmente chegado. Eles sabiam que ela não era de nenhuma família abastada, era uma comum menina do campo, vinda de nenhures, no entanto, quando começou a ser notada na companhia de Elliot toda a gente lhe reconheceu a beleza singular e exótica. E apesar de Aurora não conhecer ninguém, as pessoas já tinham ouvido o seu nome.
- E então Edward o que me tem a dizer sobre esta espécie? O seu pai realmente tem vindo a descer o nível de gente que deixa pisar o seu soalho.
- Concordo consigo em absoluto Lord Hamilton. - Edward Kenward falava enquanto analisava Aurora fulminando-a com o olhar.
- Mas sem dúvida que consegue reconhecer nela uma beleza extraordinária, é ainda melhor do que aquilo que dizem sobre ela. A pele morena, aquela largura de ancas, os seios que brotam no leve decote...que Deus me perdoe certos pensamentos que tenho. - Hamilton era um homem sujo, tal como Edward, completamente imerso nos pecados da carne.
- Sim, tudo o que diz é verdade, é realmente...exótica. E sabe, até parece um anjo assim vestida, tão pura e ingénua, mas não passa de uma pega. É uma puta vestida de branco.
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