22
Frio
...
Depois da nossa ida ao castelo, Gart se tornou um estranho.
Ele já não almoçava comigo e Nix, evitava conversas, e quando falava, suas palavras eram curtas, frias, como se cada sílaba fosse uma obrigação.
— O que deu nele, afinal?
Minha voz soou baixa, um sussurro enquanto observava Nix girar ao meu redor deixando rastros dourados no ar.
— Será que o cérebro dele congelou com o frio?
Lá fora, as nuvens pesadas se acumulavam no céu e o vento gelado entrava pelas frestas da casa, cortando minha pele como pequenas lâminas invisíveis. Com a ajuda de Nix, eu selava as janelas usando uma substância leitosa. Assim que tocava as bordas, a cola mágica se expandia, formando uma película fina e translúcida.
Suspirei, sentindo o aperto familiar no peito.
— Eu sei que errei ao falar sobre você para a rainha…
Minha culpa se agarrava a mim como uma sombra insistente.
— Mas Gart disse que estava tudo bem. E ela… parecia uma boa pessoa.
Minhas palavras se dissiparam no silêncio do cômodo.
Já fazia uma semana.
Uma semana que ele me evitava.
Uma semana em que seu olhar passava por mim como se eu fosse parte do cenário, uma mobília qualquer.
A dor era silenciosa, mas constante.
— Já faz tempo demais, Nix… Quanto mais ele vai me ignorar?
A pequena esfera de luz pulsou suavemente, como se sentisse minha angústia.
Mas antes que pudesse continuar me lamentando, um pensamento me atingiu com força.
O portal.
Logo, eu poderia voltar para casa.
Era o que eu queria, não era?
Então por que cada vez que pensava nisso, um vazio profundo se abria dentro de mim?
Engoli em seco.
Talvez, se eu fizesse algo especial, ele falaria comigo. Talvez aquele gelo pudesse se romper.
— O primeiro bolo que fiz!
A ideia me trouxe uma centelha de esperança.
Não demorou muito para a cozinha se encher com o aroma doce de morangos e baunilha. A massa dourada cresceu no forno, e a calda vermelha escorreu por cima, brilhante como rubis líquidos.
— Perfeito!
Coloquei um pedaço generoso em um prato bonito, cobri com mais calda e peguei uma taça de bronze, enchendo-a com o chá favorito de Gart.
Então, com o coração batendo rápido, fui até o laboratório.
O cômodo estava mergulhado em sombras, iluminado apenas pela chama bruxuleante de velas espalhadas pelo espaço. O cheiro de pergaminho antigo e ervas secas pairava no ar. Frascos de vidro se alinhavam nas prateleiras, refletindo a luz de forma pálida.
Gart estava sentado à mesa, os olhos fixos no pergaminho à sua frente. A pena azul deslizava sobre o papel sem hesitação.
Meu peito apertou.
— Gart, está ocupado?
— Sim.
Seu tom era vazio, sem nem mesmo um resquício de emoção.
Antes, ele teria ficado em silêncio, esperando que eu continuasse falando. Agora… era como se qualquer esforço para conversar fosse inútil.
— Eu fiz um bolo…
Fechei a porta atrás de mim tentando ignorar o frio que subiu pela minha espinha.
— De morango! Trouxe um pedaço para você, junto com seu chá favorito!
Estendi o prato e a taça, esperando que, ao menos dessa vez, ele me olhasse.
Mas isso nãoaconteceu.
— Não estou com fome.
— Não precisa estar com fome para comer um docinho. Fiz igual ao primeiro bolo, lembra? Com os morangos que você me deu. Até Nix teve dificuldade para recriá-los.
— Eu já disse que não estou com fome.
Meu peito ardeu.
Coloquei o prato e a taça sobre a mesa com um pouco mais de força do que pretendia.
— Tudo bem! Mas ao menos olhe para mim quando fala!
Dessa vez, ele ergueu o rosto.
E por um instante, desejei que não tivesse feito isso.
Seus olhos prateados, antes sempre carregados de alguma faísca oculta, estavam vazios. Gelados como a neve.
— Se era só isso, vá embora. Estou ocupado.
— Não, não é só isso!
Minha voz tremia, e o frio pareceu se infiltrar ainda mais fundo em meus ossos. Instintivamente cruzei os braços, tentando me agarrar a qualquer calor que restasse dentro de mim.
— O que aconteceu? Por que você não come mais comigo e Nix? Por que fica trancado aqui? Por que não me olha mais nos olhos?
Eu queria parecer firme. Queria que minha voz saísse forte.
Mas o nó na garganta me traiu.
— Ao menos me diga o que houve.
O silêncio se estendeu por um momento longo demais.
Então, Gart suspirou.
— Você sempre exagera.
Ouvir aquilo foi como um soco no estômago. Mas não era isso que doía.
O que doía era a forma como ele disse.
Sem ironia.
Sem provocação.
Apenas vazio.
— Eu não lhe devo nada. Você está aqui há quase um ano apenas porque Nix permitiu.
Ele se levantou, e, naquele instante, a distância entre nós se tornou insuportável.
— Seu tempo aqui está acabando.
Foi aí que percebi.
Eu estava esperando que ele pedisse para eu ficar.
Eu queria ficar.
Queria ficar naquela casa.
Queria ficar na cidade.
Queria trabalhar na loja de poções.
Queria ficar com Nix mas, acima de tudo...
Queria ficar com ele.
As lágrimas ardiam em meus olhos, mas eu me recusei a deixá-las cair.
— Eu sei…
— Ótimo. Agora me deixe em paz.
Minhas mãos tremeram e antes que eu me desse conta as palavras escaparam da minha boca sem que eu pudesse contê-las.
— Você não gostou de me ter aqui?
O silêncio que se seguiu foi como uma faca cortando meu peito.
Seus olhos vacilaram em um brilho surpreso, quase como se deixassem escapar alguma emoção que nem mesmo ele tinha conhecimento de ter.
Mas, no segundo seguinte, isso logo desapareceu.
— Eu já estava cansado de fingir que me importava.
O mundo parecia se despedaçar ao meu redor.
As provocações, os passeios, os biscoitos em formato de estrelas, as noites na varanda, a flor de fada…
Tudo mentira?
Meus olhos buscaram algo em seu rosto.
Uma hesitação, um desvio de olhar, um traço de arrependimento. Algo que me dissesse que aquilo não passava de uma alucinação, uma mentira. Um sonho ruim.
Mas não havia nada ali.
— Entendi…
Tentei sorrir, mas meus lábios tremiam. As lágrimas, agora quentes, deslizavam silenciosas pelo meu rosto.
— Entendi.
Antes que ele pudesse ver meu coração se despedaçar, girei nos calcanhares e corri escada acima.
Assim que alcancei meu quarto, fechei a porta e me joguei na cama afundando o rosto no travesseiro.
E então, finalmente, deixei a dor transbordar.
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