Capítulo XIII.
— “A real identidade”? — repetira a cartomante intrigada, de sobrancelhas franzidas. — Recordo-me claramente de que já esclarecera que seria ela o teu verdadeiro amor. — levantou-se e dirigiu-se a um trancafiado baú de relevo arabesco. Nele, bens materiais da espiritualidade e origem sibilina haviam-se. Ao constar um fastidioso inseto perambular nas espreitas duma desgastada parede, Ambrose indagara-se sobre a sua fatídica ruína, ademais da credibilidade do misticismo.
— Então és forte a minha praga. — escarnecera, com os braços cruzados sobre o peitoral. Eram repletos de salientes veias, músculos e ossos demarcados. Perante a mulher, sua esguia e máscula estrutura corpórea destacava-se. Entretanto, adianta-se de que uma esbelta masculinidade numa alma tanto indomável e rebelde?
— Para nós, os prestadores de serviços, a riqueza rodopia em desconhecidos trilhos. Nada está garantindo nossas posses, senhor Gerwin. Ao contrário de ti, não? — retrucou, já bravia. — Minha sorte retornará. — Outra vez à mesa, embaralhou as cartas de tarot de Marseille. Antes de iniciar, suspirou: — Lembra-te bem da última consultoria?
— Sim. — umedecera os lábios, impaciente. Queria tragar: — Posso fumar?
— Pode. — invejara do charuto torpedo de origem espanhola, que se acendera com uma vela acesa. — Houve alguma mudança?
— Não. — mentiu. Todavia, enquanto tragara, decidiu contar-lhe a veracidade dos acontecimentos: — Na verdade, sim.
— Um noviço amor?
— Sim. — Discreto, sorriu espontânea ao relembrar-se da sua senhorita. A austera feição voltou: — Por isso, almejo ter o conhecimento da possessora dessa máscara. É ela a minha pretendente?
— Descobriremos, então. — Após o término de embaralhar, disse: — Usaremos a cartomancia nesta consulta. — Em três pilhas de cartas, ela repartiu o baralho. — Escolha casualmente uma carta das três pilhas. — O homem fizera as ordens da metálica voz de sotaque turco.
Primeira carta, vosso pretérito, Os Enamorados (carta VI): a representação do instante em que tu encontraras e relacionara-se com o amor verdadeiro. No entanto, a carta diz-nos de dualismo e espinhosas escolhas, visto da incerteza de tu desconheceres a verdadeira identidade do amor verdadeiro: a jovem aristocrata.
Segunda carta, vosso presente, A Lua (carta XVIII): ela reflete a confusão pela incompreensível identidade da aristocrata. Tu ainda guardas a máscara, o símbolo dessa incerteza. Também, essa carta sugere o nebuloso presente… Repleno de revelações, miragens, receios e dúvidas.
Terceira carta, vosso futuro, A Imperatriz (carta III): indica que os fatos veríssimos serão revelados e a identidade desvendada. És ela! Consigo enxergá-la! És a possessora da máscara: a pretendente de vosso casório! Conhecerá ela daqui a três dias! Charlotte Montgomery!
— “Charlotte Montgomery”? — enfurecera-se. — Che cazzo¹… — Ele sussurrara, desdenhoso. Uma ínfima revolta contorceu-se.
A noite estendera-se no horizonte e algumas nuvens acobertavam os astros em fugazes minutos, assiduamente. No próprio aposento, Ambrose embriagava-se do armagnac² numa taça de cristal. Na mente tempestuosa, a incerteza e o temor pelo futuro cercaram-no. Perante as profetizações da Lady Orianne e as rígidas ordens do pai, uma angústia inundava-o para o devastador inferno. Enquanto se perdia na própria vulnerabilidade, contorcia uma revolta à alma. Sob os vislumbres do luar que alcançara a rangente cama dum dormitório da ala feminina dos criados, Augusta também defrontara os tormentos singulares da cabeça. A melancólica sensibilidade da sutileza dentre os conselhos da amiga e da benfeitora e a delação do incômodo matrimônio do próprio amor castigara-a. Pior, sabia que essa angústia era apenas o começo de um horrendo futuro. A incerteza sobre o pedido em revelar-se aos outros sobre o secreto caso e a longeva cruz permanente amofinaram-na: “O que faço, Deus? Permito-o revelar-nos a todos… Ou perdurarmos neste segredo…? Não posso permanecer ao seu lado com esta penumbra… O que faço, Deus? Encaro-a ou não…? Qual castigo é pior: o meu passado, o presente ou o futuro?”.
À medida que a castigadora madrugada inerte governava, na acomodação do quarto de Lothaire e Romane, o temor pelo desconhecimento batia sobre os próprios peitos. Eram outros temores, todavia, com similares razões: o receio pelo destino. Encostado à cama, com o charuto churchill em mãos, o senhor Gerwin refletira sobre uma ardente desconfiança.
— O que te incômoda, Lotti? — questionara a mãe trajada em uma camisola de seda e cabelos trançados. Já aprontara-se dos cuidados noturnos. Ela aconchegou-se nas masculinas costas e massageou-lhe os ombros, após alisar o louro cavanhaque. As rijas feições perpetuavam-se no rosto dele.
— Caso ocorra alguma decepção… Sem hesitar, o deserdarei! — declarara.
— Quantas enfatizações, ora! Tu terias a audácia de deserdá-lo? Nosso primogênito?
— Caso fostes o necessário, sim. — suspirara: — Apesar de surpreender-me com a sua excelente compostura perante os negócios…
— Também surpreendi-me. Fora a primeiríssima vez deste comportamento… O que o fez agir de tal maneira?
— Não sei… Porém, desconfio-o. Afinal, apesar de engravatado, ele é um mero infante. Se ele não puja uma dama para casar-se… Como ele pujará os negócios?
— Exagero teu. — A mulher redarguira, com o mesmo ceticismo, nas escondidas.
— Não. Se ele não perdurar uma mulher ao lado… Deserdarei ele e então, farei outro filho.
— Outro? Não permitirei, Lotti. Foram delicadas as minhas anteriores gestações… Caso o médico proíba-me, padecerei se não namorar por nove meses outra vez!
— Meretriz… — murmurara, antes de puxar-lhe ao colo e beijar-lhe. Mesmo assim, inquieta ainda estava a mente.
Até poderia esclarecer-lhes detalhadamente sobre os três dias que passaram como velozes estrelas. Todavia, em meio a tantos martírios, sequer Ambrose e Augusta coloquiaram-se. Apenas os prudentes entreolhares aconteciam e, ao sucederem-se, constantes arrepios e borbulhações entre a paixão e a desgraça aconteciam. A noite de boas-vindas, felizmente — ou infelizmente, da noiva, chegara e um elegantíssimo banquete fora cortejado. Um reluzente festejo a uma união matrimonial. No salão principal, os convidados debruçavam-se de bebidas alcoólicas e da alta gastronomia europeia. Pièces Montées³ eram bem-feitas nas centrais mesas, ademais dos refinados alimentos e bebidas que destacara a perpétua nobreza. Lustres de cristais adornados iluminavam os tetos com abóbadas e afrescos com pinturas de celestiais e áureas bordas. Nas lívidas paredes, encontravam-se arabescos e volutas florais e geométricas, além das pilastras e colunas. Acima do chão de mosaico de mármores, nobres festejavam. Esculturas de anjos e deuses romanos materializavam um mínimo do prestígio. Diante de toda a aristocracia e soberania real, Ambrose recusava-se a retirar-se do próprio quarto, pois negara aceitar o próprio destino.
— Ele ainda não saiu do quarto? — perguntara a mãe à filha, temerosa. As avelãs íris vagaram-se sobre a imagem de Lothaire, que, trajado num terno, bebericava um champanhe na companhia doutro nobre. — Brose tem que logo vir, antes que Lotti desconfie da ausência.
— Mamãe, já bati incontáveis vezes à porta. Sequer respondera-me.
Os lábios de Romane tornaram-se entreabertos e logo mordiscara-os, apreensiva. E, para padecer-se mais, um súbito serviçal comparecera, reverenciaram-nas e anunciou um maior pavor:
— Vossa Alteza, perdoe-me pelo incômodo, mas devo avisar-lhe que o marquesado Montgomery acabara de chegar.
— Droga, e agora Lili?
Nos escanteios do nobre salão, Augusta constatara o lamentável estado às espreitas. A linha tênue entre a covardia e o risco alcançara-lhe inesperada. Até então decidir o risco a cometer. Recolhera algumas recém-lavadas colchas e direcionou-se ao bendito quarto.
— Vossa Alteza, perdoe-me pelo incômodo, mas poderia abrir a porta para eu trocar as colchas? — perguntara, com o latejante coração sobre o peito. Solitária no corredor, uma quietude alastrara-se, até o destrancar-se da porta ressoar. Quando adentrou, admirara sublime a vista de seu homem absorto em particulares suplícios sob os cintilares da lua na pele. No robusto corpo, um traje social demarcava toda a sua masculinidade e elegância.
— Deveria ir ao banquete. Tua pretendente estás a espera.
— Não posso.
— Por quê?
— Se eu for e vê-la, estarei aceitando o matrimônio e consequentemente traindo-te.
— Tu sabes bem que este é o teu dever como primogênito Gerwin. Irá honrar o teu título, teu futuro…
— “Título”? “Futuro”? Não me diga tantas asneiras.
— Estou apenas lhe dizendo a veridicidade dos acontecimentos, infelizmente és essa. O meu peito pesa, mas sei que o certo para ti.
— Presenciar-me ao lado doutra mulher é o certo para mim, amor? — perfurara-te na alma de ambos, uma cortante faca. A mulher almejou discordar-lhe, entretanto, se nem sincera era consigo… Como seria com ele? — Sabes, senhorita… Tu não tens o pavor da descoberta de outras pessoas, mas tens de si própria. Tens o pavor de encarar a tal cruz que carregas, não? Responda-me, senhorita… O pavor pela coragem é maior que a dor pela covardia? — Augusta permanecera-se quieta diante das afiadas palavras. Sentia-se destruível por Ambrose e por si mesma.
— Irmão! Venha logo! Papai estás enfurecido com o teu desaparecimento! — A estridente voz de Lilith surgira como uma letal recordação pela realidade. Revoltado, Ambrose saíra de seu aposento e abandonou sua mulher só. A mão ensanguentada de Augusta tremulara, diante do remorso e angústia. Ela lacrimejou solitária e escondida.
Acompanhado da irmã, o aristocrata perambulou pelos corredores do salão principal. Além de sentir-se insignificante perante ela, também sentia-se diante do traçado destino já concretizado. No salão, as oceânicas íris avistaram com desdém a repentina aparição de uma dama áurea e de oblíquos olhos esmeraldas. Mesmos olhos, diferentes olhares. Não havia escapatória, ele sabia. Era ela.
— És ela, irmão: tua noiva. Charlotte Montgomery.
GLOSSÁRIO e REFERÊNCIAS:
• ¹: expressão de baixo escalão de origem italiana, utilizada para expressar-se surpresa ou irritação.
• ²: termo francês para o armanhaque. O armagnac é um tipo de aguardente obtida pela destilação de vinhos brancos.
• ³: um tipo de peça central de confeitaria decorativa em forma arquitetônica ou escultural, utilizada em banquetes formais e feita com ingredientes alimentícios.
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