Capítulo X.
PASSARA-se a quinta-feira e apenas um vazio permaneceu para Ambrose.
Passara-se a sexta-feira.
Passara-se o sábado.
Passara-se finalmente o domingo.
Tons róseos e alaranjados coloriam a manhãzinha com maestria, como também o noturno orvalho. Começaram, então, algumas nuvens acobertarem toda aquela imensidão dos ares e o luminoso Sol. Eram sete horas quando Augusta se dirigiria pelas estradas de terra à Basílica da Trindade Celestial: o santuário católico mais próximo ao palacete Gerwin. Trajada no típico modesto vestido azulado e uma lívida curtíssima mantilha (concedida pela colega) subra os fios trançados e o melancólico rosto, ela caminhara enquanto avistava as requintadas carruagens, algumas módicas carroças e cavaleiros montados. A misantropia atufara em seu semblante e feição: o exterior dum tormento na alma. Esse foi o seu escolhido horário, pois a missa da aurora já finalizara e a missa da manhã ainda aconteceria na seguinte hora. Como uma miserável pecadora, sentia-se abjeta em cultuar Deus à companhia doutros aristocratas locais — os habituais devotos. Todavia, ansiava em retirar toda a sua angústia, mesmo que foste um fugaz alívio.
A esbelta moradia de Deus encontrava-se num pequeno rossio à frente e um estábulo posterior. Ao vistá-la, admirou até os mínimos detalhes da arquitetura rococó. Consistia em uma graciosa frontaria de colorações de tons rosados pálidos, repletos de esculturas de seres celestiais. Os ornamentos gessados de formas arabescas¹ se cintilavam com as colunas e pilastras. A coroação do frontão triangular acomodara uma cruz acima. Fez Augusta o sinal de cruz e adentrou, acanhada. Deslumbrou-se sua visão ao constar todas as magnificências de arte e venustidade do barroco-tardio². Nas claríssimas paredes moravam-se molduras e ornamentos com curvas intricadas. Haviam-se incontáveis esculturas, vitrais e pinturas de anjos, Santos e Jesus, ademais os acontecimentos bíblicos. Uma basílica tão vívida, eterna e com resquícios do Paraíso na terra. Nos amadeirados e enfileirados bancos ao altar: o padre Hess, uma abastada dama e duas freiras papeavam-se.
_ Um bom dia, perdoem-me pelo incômodo... — aproximara-se Augusta e logo percebeu os desdenhosos olhares das três mulheres sobre si. — Desejo confessar-me, caso foste possível.
— Trata-se de segunda mão, as suas vestes. — sussurrou uma freira à aristocrata.
— De terceira, irmã. — As três entreolharam-se risonhas, até a percepção dela e do padre sobre as fatídicas atitudes.
— Chega disso, meninas! Todos somos servos de Deus! — afrontara o velho e rechonchudo sacerdote. — Iremos ao confessionário para o sacramento de reconciliação, minha cara!
— Está bem. Estou agradecida. — Ela ignorou o "Cadê o dízimo, devota?" das mulheres enquanto acompanhava o padre. Maior era a sua angústia no peito que a recebida hostilidade. A amadeirada cabine de confissões integrava-se uma cortina aveludada que os ocultou. Adentrou e sentou-se ao banquinho, sem perceber a bainha exposta pela cortina.
— O que incômoda-te, minha cara? — indagou o padre, através das amadeiradas grades.
— Seu padre, preciso revelar-te algo que me amedronta inteira.
— Então, do peito retire esse temor, minha cara. Revele-se a Deus!
— Está bem. Tal desbrio pertencera ao meu passado, seu padre. — pausou, ainda receosa: - Irei revelar-te o meu pecado.
No estábulo do palacete Gerwin, Ambrose despedia-se do cocheiro Leopold: um jovem homem de pele escura, cabelos encaracolados feitos ondas e caídos olhos de mel com singelo semblante. Pertencera a uma humilde origem familiar.
— Tu seguiras os meus conselhos, senhor Guth? — questionara-lhe o aristocrata montado num cavalo andaluz³ e de pelagem tordilha ruça⁴. No robusto corpo, eram compostas as vestes uma alva camisa e marrom paletó, colete e calça de cor creme, além da discreta gravata bege. Ainda essa manhã, partiria ele para a basílica a fim de realizar o conselho da mãe.
— Sim, inclusive a minha Dulcinha já me apresentara à sua família. — demonstrou um singelo sorriso. O cocheiro levava-o ao portão, puxando o majestoso cavalo pelo cabresto. — Aliás, Vossa Alteza: e a tua amada, como andas? — Quando escutou-o, Ambrose quietara-se aflito.
— Abandonou-me. — revelou após um silêncio.
— Oh! Perdão, eu não...
— Não se preocupe, Guth.
— Mas, fora realmente o fim?
— Fora. Na verdade, ao certo não sei...
— Nesse caso deveria persistir, acredito eu.
— Temo que ela se feri caso arrisque tanto pelo nosso amor.
— Como temes que ela se arrisque, então deveria também arriscar-se... Além da certeza de que a protegeria caso necessário. — Ambrose estatelou-se com o conselho do servo e já decidiu que a insistiria e lutaria pela continuação do amor após a visita ao santuário, mesmo que permanecesse secreta. Apenas necessitava da confirmação no templo para seguir a tenaz escolha.
— Então esse é teu temor, minha cara? — perguntou o padre no confessionário da basílica. — Apesar do pecado, escondê-lo não te ajudará a vencer.
— O que farei, seu padre?
— Encare-o frente a frente e perdoe-se. Somente perdoando-se é que Deus te perdoará.
— Entendido... Muito obrigada, padre. — sorriu aliviada, com algumas lágrimas à prontidão. Então, recordou-se da outra tristeza que se corroía no peito: — Aliás, seu padre: tenho que revelar-te outro tormento meu.
PLOF-PLOF...!
Num súbito segundo, o céu acobertado de nuvens dera um fortíssimo toró. Infinitas gotas caíam-se nas superfícies urbanas e ventava num estrondoso sopro as árvores e os arbustos.
— Então revele-se, minha cara. Retire essa dor de tua pura alma!
— Estou apaixonada por um esbelto homem...
— Não fizestes atos carnais com ele, correto?
— Não, seu padre! — exclamou, envergonhada. — Não fizestes amor os nossos corpos, mas as nossas almas e corações... Talvez esses sim. — disse com brilhantes íris e um espontâneo sorriso.
— Permaneça casta até o casório. Continue, por favor.
Pouco importara-se Ambrose com as vestes pouco molhadas quando entrou pela basílica através da porta inferior, após deixar seu cavalo no estábulo. As oceânicas órbitas vagaram sobre o interior à procura do padre, todavia, vistara apenas as moças que suspiravam contentes ao encontrá-lo.
— Onde estás o padre Hess?
— No confessionário, mas podemos chamá-lo para a Vossa Alteza. — sugeriu uma freira aproximando-se, como também as outras duas mulheres.
— Não serás necessário. — “Seria rude interrompê-lo”, ponderou. Quando observara de longe a cabine de confissões, constou uma bainha azulada e logo relembrou-se da sua senhorita. Porém, questionara-se da veracidade da visão, pois talvez seria a saudade com as suas ilusões ou apenas coincidência. — Esperarei, então.
— Amo-o com todas as minhas forças, seu padre! Sinto-me liberta e segura ao teu lado... Um verdadeiro amor! — revelou Augusta a Hess, no confessionário.
— E o que incômoda-te?
— Ele é o meu patrão. — “Constando as suas vestes e pura relação de amor, deve tratar-se dum empregado mais elevado”, julgou o padre. — Por isso, temo que possamos permanecer unidos: amando-nos. Sei bem das consequências, mas o meu coração arde a cada momento ao teu lado!
— Que puro e sublime sentimentos! — “Somente isso incomodara-lhe?”, ponderou. - Poderia dizer o nome do rapaz?
— Padre, eu...
— Que mal há, minha cara? Por favor, revela-se. — sorriu.
— Ambrose II Gerwin: é esse o meu homem.
— “Ambrose II Gerwin”? - repetiu o padre num sussurro sigiloso. Como não o escutara, Augusta aproximou-se o seu ouvido à grade. — “Ambrose II Gerwin”?
— Esse mesmo, seu padre.
— Meretrix...
CABUM...!
Sons estrepitosos dum trovão e raio ecoaram por toda a basílica. Augusta assombrara-se e Ambrose tivera de acalmar as jovens moças temorizadas.
— O que dissestes?
— Tu és uma meretriz, herege e prostituta!
— Não sou padre! — defendeu-se de marejados olhos.
— Eu sempre os conselhos para que não corrompem vosso sangue e sempre impeço que devassas, feito tu, não os corrompe!
— Não queria...
— Tu és uma miserável que queimarás no inferno! Diga-me: também seduzirá o próprio Satanás, prostituta?
— Seu padre...
— Pensantes que eu a receberia de braços abertos? Não, não... Nem Deus te perdoará com este teu sangue medíocre e pobre!
— Pare, padre! — cercou-lhe um turvado breu e pavor. Afundou-se então num hediondo mar banhado de colapsos e memórias. Perdeu-se entre a realidade e as desgraças: — Pare, por favor!
— Os pobres, como tu, são demônios em nossa igreja! Tu queimarás no inferno, insolente!
“Sabes bem o que acontece quando meras empregadas, como nós, relacionamos com os nossos patrões. Não é, Augusta?”.
— PAREM, POR FAVOR!
“Sabes bem o que acontece quando miseráveis, feitas nós, relacionamos com os aristocratas. Não é, Augusta?”.
— Este teu miserável sangue com imundice o contaminará!
“Sabes bem a consequência disso. Não é, Augusta?”.
— PAREM, NÃO FIZ POR MAL!
— Não fizeste por mal? - ironizara. — Tu não me engana, conheço esse tipo de mulher. Seduzira-o como a serpente e viverá nas desgraças e miséria como castigo!
“Aspira retornar a miséria outra vez, Augusta?”.
— SÓ QUERIA AMÁ-LO E ESTAR AO SEU LADO!
— A diferença sempre os separará!
“Se, ao menos, eu fosse uma endinheirada... Poderia eu...”.
“Juntos ficaremos, nós dois.”.
“Eu deveria ter avisado-a: jamais se relacione com um rico... Tu entendes o motivo”.
— Pecadora!
— PAREM, POR FAVOR!
Queimarás no inferno!
Com teu sangue miserável!
És pecadora!
— PAREM!
"Agora tu és como teu pai:
pecadora. Só nos resta o
inferno.".
CABUM...! Outro trovão.
— CHEGA DISSO! — Augusta retirou-se veloz da cabine, fardada de tanta dor.
— Retire-se pelos fundos! Não sujes a entrada com teus pecados! — repreendera o padre Hess ao vê-la sair do sacramento. Uma escuridão encobriu a sua visiva e, apesar dos enfraquecidos pés, fugiu entre os corredores à porta de saída dos fundos. Ninguém a impedira ou a consolara: não havia Ambrose, nem Dulci e sua benfeitora, sequer a falecida mãe. Estava só em seu próprio inferno.
Até se esbarrar em alguém: era Ambrose.
— Senhorita! — Ao constatá-la inteira de lágrimas, uma preocupação impregnou-se ao homem e segurou-a em seus braços, apesar de sua relutância. — O que lhe acontecera, minha amada?
— Nada! Com a tua licença! — tentou outra vez escapar-se dos seus braços, aos prantos. — Saia, por favor!
— Senhorita...
És pecadora!
— SAIA!
TAP...! Um forte tapa fora dado ao rosto de Ambrose.
Constrangida e com arrependimentos, desceu apressada as escadarias da basílica e sumiu entre os caminhos urbanos em meio a tempestuosa chuva.
GLOSSÁRIO e REFERÊNCIAS:
• ¹: ornato ou pintura de inspiração na arte muçulmana baseada em padrões visuais e aspectos naturais.
• ²: refere-se ao estilo rococó, que muitos estudiosos e profissionais consideram-no como uma "continuação" do movimento barroco.
• ³: raça equina originária de Andaluzia, Espanha.
• ⁴: tipo de pelagem tordilha caracterizada por mais pelos brancos que pretos.
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