Capítulo V.
O calor do abraço aquecia-lhes diante dum tormento na alma de cada uma. Ao sentir-se calorosa com o afeto, Augusta decide silenciar a quietude que se alastrara:
— Ajuda-me com toda essa água, por favor.
— Está bem. — As singelas mãos de Dulci pegaram outro pano antiquado e esfregou-o ao chão, para absorver todo o líquido. Enquanto firmes torciam o pano incontáveis vezes, entreolhavam-se com compreensivos olhos.
— Tu achas que Vossa Alteza é casta? — Ainda tímida, a mais jovem descontraiu.
— HA HA! “Casta”? Vossa Alteza sendo casta? — Seu gargalho fora tão espontâneo e alto que a Augusta tivera que repreender-lhe e pedir silêncio, mas ignorada foi. — Ele é tão sádico quanto Sade¹! — A outra mulher se quietou; acanhada e Dulci aproveitou-se da reação: — E aposto que deve até sufocar a garganta.
— O que sufoca?
— A parte íntima dele, ora!
Augusta encarou-a com o cenho franzido, confusa e envergonhada perante a confissão da colega, ademais o desejo de batê-la com o pano umedecido de água e sabão. Decidira mudar de assunto:
— Caso não me engano, o grão-duque tinha um apelido relacionado a libidinosidade: era...
— Devasso Lúgubre.
— Esse mesmo! — torceu novamente o pano. — Todavia, desacredito que a senhora Gerwin era libertina, pois penso que não perdera a castidade antes do casório.
— Discordo! Escutei falarem que era pura quanto rosa e tão religiosa feito freira... Mas, acho que escondera essa falta de castidade. Somente Jesus e os Santos são puros!
— Se afirma... — escutar sobre a lascividade de Ambrose fizera Augusta ter uma escondida curiosidade.
Desde a viagem de Lothaire, caminharam-se três semanas e, após tanta persistência na rejeição, Ambrose teve finalmente a coragem de consultar uma cartomante para desvendar o significado da bendita máscara que repousava na escrivaninha. Por sorte, um enigmático nome de uma adivinhadora circulava sobre toda a capital de Lan Epona. À frente de um luxuoso apartamento repleto de ornamentos e janela estilo guilhotina, encontrava-se um folhetim pregado nas paredes azuladas:
A Inabalável
Cartomante:
Lady Orianne!
Previsões Sobre O Futuro,
Amor!
Adivinhações Sobre Sonhos,
Passado...
E Astrologia!
Disponível das oito horas
às dezoito horas.
Apartamento Matsuo Bashō,
andar 5, número 50².
Mesmo desconfiado com a legitimidade do misticismo, apagara o cigarro e adentrou ao apartamento. Porque sabia que somente uma cartomante poderia ajudá-lo. As paredes marrons eram vazias e ao centro do principal cômodo, debruçara numa cadeira de encosto esmeralda e detalhes dourados uma pálida mulher de iris e cabelos negros como a noite. Seus fios ondulados caiam-se aos ombros e, trajada em um vestido branco e áureo com bordas rendadas e um pingente perolado no decote: a cartomante embaralhava as cartas nas mãos. Em sua amadeirada mesa, encontravam-se cartas espalhadas e uma caixa cheia de joalherias flavas. O enigmático e oblíquo olhar³ fixava-se em Ambrose seriamente, como quem já soubera da atual situação. Exalavam as velas aromáticas e o pot-pourri⁴.
— Já te esperava. — Sua voz rangia como um fino metal, tal como o sotaque turco.
— Como? — indagou ainda receoso.
— A carta disse-me. — Nas embaralhadas cartas, retirou uma sem constar e mostrou-lhe: O Louco. Então, o nobre sentou-se a cadeira pensativo. — Diga-me teu nome, rapaz.
— Ambrose II Gerwin.
— “Ambrose II Gerwin”... Primogênito de Lothaire S. Gerwin e Romane Z. Gerwin. Muitas moças visitaram-me apenas para desejar-te em suas vidas. — fungou breve: — Qual é o motivo de tua visita em meu humilde apartamento?
— Quero saber se há alguma conexão disto com o meu futuro. — entregou-lhe a máscara, colocando-a sobre a mesa e a turca admirara o delicado acessório.
— Entendi. Qual é a tua idade?
— Vinte e quatro.
— Já consultou alguma cartomante?
— Não.
— Para possuir uma máscara tão feminina, acredito que há alguém em tua mente.
— Tenho, entretanto, esse objeto não lhe pertence.
— Está bem. Então, usaremos a quirologia: a leitura de mãos. — guardara as cartas. — Os ventos revelaram-me que vivenciarás um romance tão magnífico e digno de escrita.
— Como assim?
— Não sei... Os ventos apenas me revelaram. Dê-me a tua mão. — Ambrose esticou a mão. Ela dedilhou sobre as finas veias expostas e foi à palma, com enigmáticos olhos de breu.
Logo abaixo dos dedos médio e indicador está a linha do coração: já conhecestes teu amor verdadeiro, porém, não sabes sua verdadeira identidade e acredito que já possuístes algo pertencente a ela em teu peito.
Linhas estáveis e profundas: Um amor eterno duma vida. Será aristocrata! E, tu, apenas admitirá o teu amor num peculiar dia... Em um jardim com cisnes e escultura de gelo.
— “Num peculiar dia, em um jardim com cisnes e escultura de gelo”... Há data prevista?
— Não... Isso o teu destino escondera. — A mulher desencostara a mão sobre a de Ambrose, logo falou: — Apenas saiba que essa máscara uniu-os para sempre.
— Uma aristocrata em meu destino... — respirou, pensativo: — E se negar o meu destino?
— Tu realmente o negará? — O questionamento soara como uma hipótese quase impossível de acontecer.
— Minha mãe, a senhora prefere um amor construído ou... Destinado? — perguntou, já no palacete.
— Não sei responder-te.
— E tu, Lilith?
— Depende... Nos livros que leio, os romances são tão bem construídos que fazem acreditar que sejam destinados!
“Quem daria um destino a alguém?”, pensou.
— No fim, apenas posso garantir-te que um amor construído é mais honroso. — revelou a mãe ainda reflexiva.
— Mesmo que esse amor seja contra tudo e todos?
Ela ficou calada, pensativa.
Ambrose ainda submergia nas conversas em sua cabeça como um oceano e, apesar da postura estática e pacata, sua mente borbulhava feita fervente água... Como um ativo vulcão... E, até, repetia as palavras como as poeiras que a criada limpara e limpara infinitas vezes as estantes da biblioteca. Quando ele a avistou, um triste alívio permaneceu na mente, aproximou-se e disse:
— Como ainda não me disseste teu nome, presumo que tens medo de assumir os riscos, não? — Com o latejante peito, ela ficara quieta. De certa maneira, havia veracidade em sua pergunta. — Por favor, seja sincera. — insistiu.
— É verdade. Mas, não é somente isso.
— Então, o que mais te impede?
— Perdoe-me, porém, não posso dizer-lhe. — Algo sussurrava em seu ouvido sobre não merecer o tratamento. Era um pecado.
— Como não dissera, então te tratarei como uma senhorita por educação.
— Não pode!
— Por quê?
— Seria demasiado arriscado, para Vossa Alteza e para uma mera serviçal.
— Entendo-te... — alisara o bigode, observando o Sol que imperava com todo o seu esplendor da longuíssima janela do cômodo. — Caso te convide a uma ocasião, poderia chamá-la de senhorita? Afinal, seria um encontro informal... Sem Vossa Alteza e serviçal.
— Eu... Perdoe-me, mas terei que recusá-lo.
— Recusar-me? — Um afligimento atingiu-o inteiro quando escutou a sua proferição. Insistiu: — Tens a certeza?
— Tenho... — omitiu. O seu almejo fervilhante no peito escondia-se à frente das palavras de Dulci. “Não se envolva...”, ponderou.
— Terá alguns dias para pensar. Com licença. — ainda perseverara. Ambrose perambulou sobre aquele piso de mármore e as incontáveis estantes tão altas quanto montanhas, enfeitadas de todos os possíveis gêneros literários. Retirou-se e, mesmo assolado, obstinava em conseguir o seu “sim”. Os conselhos da Dulci martelavam sobre a mente da senhorita e ela encontrou-se indecisa diante das palavras da colega, o temor da insuficiência e, principalmente, um desejo que florou há tempos no peito: “O que escolho?”, questionou-se. No seguinte dia, enquanto espanara taças de cristal solitária na cozinha, o acontecimento fixava-se na cabeça e o rebelde desejo ainda permanecia. Refletiu: “Não posso aceitá-lo, mas...”
— Com a tua licença.
PLIM CRAQUE...!
Caíra-se a taça das mãos da senhorita e quebrou-se completa em infinitos fragmentos. A inopina presença de Ambrose apavorou-a. “E, agora? Serei dispensada?”, pensou ao recolher os cacos.
— Perdoe-me, Vossa Alteza... Eu...
— Fora somente um acidente.
— Perdoe-me, por favor... — O pavor acendido na alma a fez temer... Teria que restituir o valor ou ser dispensada. — Perdoe-me, por favor! Posso reembolsar de meu salário, não se preocupe.
— Não há importância.. — alisou o bigode, pensativo à atrevida recém-ideia: — Caso insiste, podes fazer um favor a mim.
— O que seria? — perguntara receosa.
— Aceite o meu convite, por favor.
— Não posso, Vossa Alteza... Seria arriscado.
— Então preferes a indenização pela taça? — caçoou risonho.
— Eu... — Quando ele atravessou o portal de arco para retirar-se dali, escutara alguns passos e a voz da senhorita, pouco fadigada de correr com o uniforme doméstico e o recém-adquirido corset — estava se acostumando com a peça sobre o chemise⁵: — Está bem. Aceitarei vosso convite, Vossa Alteza.
GLOSSÁRIO e REFERÊNCIAS:
• ¹: refere-se ao marquês Donatien Alphonse François de Sade (1740-1814), famoso pela sexualidade libertina.
• ²: referência ao poeta japonês Matsuo Bashō (1644-1694).
• ³: referência à obra de Theodore Von Holst (1810-1844): "The Wish (The Card Dealer; The Fortune Teller)", produzida em 1840.
• ⁴: termo originalmente utilizado para referir-se a um jarro com misturas de pétalas de flores secas e especiarias.
• ⁵: vestimenta simples utilizada próxima à pele para proteger as roupas do suor e óleos corporais.
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