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Capítulo IX.

PLAFT…!

          Um livro caíra súbito das fraquejadas mãos da senhorita.

          — … Tu realmente se casarás com outra mulher…? — Os negros olhos marejaram-se, ademais uma lâmina perfurara-te na alma. Era a angústia. Repetiu, com um melancólico sussurro: — Tu realmente se casarás com outra mulher? — Com os ombros encolhidos e a respiração ofegante, Ambrose agarrou-a firme entre os seus braços e constou-a tão fragilizada e lacrimosa, — preocupou-se e quase descontrolou-se perante toda a desgraça consigo. Numa turvada visão, ela murmurara, ainda incrédula: — ... Irá casar-se...?

          — Acalma-te, minha senhorita... — Vagamente, acariciou os fios presos. Temeu quebrar ou ferir mais a singela existência dela. Desejou, num segundo, calar aquelas maldições proferidas. — Senhorita, eu...

          — Se, ao menos, eu fosse uma endinheirada... Poderia eu... — disse entre soluços. Com tormentos envoltas a ela e atônita mente, perdera-se a razão das próprias palavras e realidade: — Poderia eu casar-me contigo... Mas eu...

          — Minha senhorita, jamais te perderei. Lembra-te dessa promessa, por favor! — encostou as mãos nas bochechas róseas como um afável consolo. Continuou: — Juntos ficaremos, nós dois.

          — Nós dois juntos... — Naquelas graciosas e intrépidas declarações, a senhorita mergulhara-se num mar banhado de esperanças e possibilidades.

          Até recordar-se que era de tragédia que banhara-se o mar.

          “Sabes bem o que acontece quando meras empregadas, como nós, relacionamos com os nossos patrões. Não é, Augusta?”... “Sabes bem o que acontece quando miseráveis, feitas nós, relacionamos com os aristocratas. Não é, Augusta?”... “Sabes bem a consequência disso. Não é, Augusta?”... “Aspira retornar à miséria outra vez, Augusta?”. As palavras de Dulci fizeram-na lembrar de um anoso conselho da falecida benfeitora senhora Burchard: “Eu deveria ter avisado-a: jamais se relacione com um rico... Tu entendes o motivo”.

          — Senhorita...

          — Não podemos estar juntos, senhor Gerwin. — revelara vacilante, com receios das próprias palavras.

          — Não podemos...? — “Ela me abandonará?”, ponderou aflito. — Podemos sim estar juntos, senhorita.

          — “Juntos”? Como, senhor Gerwin? — franziu o cenho, bravia: — Como, se sou somente uma miserável serviçal... E tu, um herdeiro nobre! Como viveremos juntos? Responda-me, Gerwin!

          — Irei conversar com o meu pai sobre a nossa relação…

          — Irá conversar com o teu pai? Tu realmente achas que ele nos aceitará? — questionou: — Achas que todos ficarão tranquilos? Tu tens a consciência da condenação que ocorrerá a nós?

          — Podemos defrontá-los…

          — “Defrontá-los”? Como és tão simplório para ti… Diga-me: o que arriscará para afrontá-los? — respirou fundo, aos prantos. — Eu te digo os meus riscos: posso perder o meu emprego, o aconchego de um quarto, água e alimento para sobreviver, como também a minha dignidade e a minha vida. Minha própria vida! — O aristocrata cerrou os próprios punhos, vulnerável perante as suas declarações. Afinal, apesar de comprometer protegê-la do ultrajante futuro, nem o destino garantia-lhe. — Diga-me: o que tenha a perder?

          — Posso protegê-la, senhorita… — falara, ainda esperançoso.

          — Não me prometa o futuro, pois somente Deus conhece-o. Se há tanta confiança, prometa-me o agora. — Um silêncio alastrou-se e Ambrose permanecera quieto. Os dois sentiam-se tomados pela dubiedade e hesitação. Nada era preciso. Ela constara-o estática, todavia, havia-se o cintilar das lágrimas em suas íris: — Irei retirar-me, porque já terminei o meu serviço. Com toda a tua licença. — saiu da biblioteca, deixando-o ali. “Qual o sentido de ter o destino e a sucessão como acompanhantes, se me sinto só?”, lastimara retraído, em meio a estantes e estantes.

          O seu serviço fizera veloz Augusta somente para lamuriar-se às escondidas no seu pequenino aposento compartilhado. Às oito horas da noite, banhava-se silenciosa. O choro enredava-se com a água banhada do caneco. Vestiu então a sua camisola e pegou escondida no armário, da divisão de Dulci: a Imagem da Nossa Senhora Imaculada Conceição (um regalo de Leopold a mulher). O corpinho gessado, trajado num vestido licoroso e um manto azul como os céus, tivera nas mãos uma sucinta bíblia sagrada com cruz de símbolo. A criada ajoelhou-se à cama, com a Imagem em mãos. Naquele martírio, esquecera-se das rezas e orações que Dulci e a senhora Burchard ensinaram-lhe, entretanto, pouco se importou.

          — Nossa Senhora Imaculada Conceição, ajudai-me e tirai-me esta dor no meu peito! — suplicara: — Tire essa dor… Esse sofrimento! Que felizardo é este meu amor por ele, mas amá-lo dói, e dói muitíssimo! — após implorar, guardou-a cuidadosa. Deitou-se na cama e sentiu os castigos pesarem-se nos ombros pecaminosos.

          Sentia-se melindre.
          Sentia-se pecadora.
          E pior, sentia-se só.

          Ambrose também estava desolado. Porém, quarta-feira ainda era e os dois teriam de suportar toda a angústia nos peitos ao entreolharem-se nos horários de expediente dela. Porque tratavam-se de patrão e empregada, em suma.

          — Ambrose, sequer garfara. Aconteceu-lhe algo? — Ele ainda ficou taciturno e sem apetite ao jantar, como um peso morto (bem o descrevera). Sua irmã insistiu: — Ao menos, coma o salmão.

          — Perdoe-me. Estou exausto. — omitira, pois não estava somente “exausto”, mas com a alma à esfacelo num vazio precipício. — Poderia redizer?

          — Estou preocupada contigo, pelo menos, coma algo.

          — Não sinto a fome, irmã.

          — Tente, então. — aconselhou a mãe. — O que incômoda-te?

          — Nada, minha mãe. — omitiu outra vez.

          — Caso continue com esta sua fragilidade... Frequente a missa amanhã. As palavras do padre Hess te ajudarão. — sugeriu.

          — Nossa mamãe está corretíssima, Ambrose. Fará o melhor para ti. — À mesa de jantar, o jovem homem afogara-se numa amargura quieta. Apesar de não lacrimejar, a alma contorcera-se num infinito sofrimento.

          Perdoa-me, folha seca,
          não posso cuidar de ti.
          Vim para amar neste mundo,
          e até do amor me perdi.
          (...).

          E não pude levantá-la!
          Choro pelo que não fiz.
          E pela minha fraqueza
          é que sou triste e infeliz.
          Perdoa-me, folha seca!
          (...).

          Tu és folha de outono
          voante pelo jardim.
          Deixo-te a minha saudade
         – a melhor parte de mim.
          (...).¹

          “Realmente ela me abandonara?”, “Será eterna nossa separação?”, pensou. Uma ínfima recusa borbulhou em seu peito, tal como uma revolta. Que lastimável situação! Perdera a mulher e todas as audaciosas escolhas e lutas diante do futuro. Seria essa uma oportunidade para finalmente aceitar o seu destino, como as profetizações da cartomante? Um corpo tão esbelto e másculo quanto as artes visuais e a luxúria masculina tornara-se oco e tão padecido quanto as rosas e cravos que presenteara a senhorita.

          Às escondidas sob a cama; com receio de olhar (e também, da descoberta de Dulci), o buquê apodrecera aos poucos. Os cravos e as rosas faleciam, como Ambrose e Augusta.

          “Nesta folga dominical, visitarei a basílica... Talvez, um milagre retirará esse tormento de minha alma”, refletiu a moça antes de dormir.

GLOSSÁRIO e REFERÊNCIAS:

• ¹: trecho do poema: “Canção de Outono”, de Cecília Meireles (1901–1964).

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