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Capítulo I.

          AS ruas ladrilhadas e bem-feitadas de lamparinas a gás e o estilo arquitetônico grunderzeit¹ era a essência de todo o reino de Preston, principalmente de sua capital Lan Epona. Nela, prosperavam as áreas do conhecimento como os estudos ambientais e os ofícios da arte que a tornara tão prestigiosa.

          Afastado da vida urbana, situava-se o condado Gerwin: rodeado de belos jardins, suculentas hortas, lagos cristalinos e os arcaicos estábulos, àquelas terras pertenciam ao antigo conde Malachai Gerwin, que, após tantas dívidas tivera o título de “conde” vendido à mercê de um comerciante regional. A sua desgraça fez a família e toda a propriedade tolerar duma tamanha desdenha doutros nobres, e para padecer mais, o primogênito de Malachai; Lothaire S. Gerwin, possuía a nefasta reputação de Devasso Lúgubre dentre a aristocracia. O apelido dava-se a taciturna e a imoral presença que, apesar da tentadora beldade e elegante voz, sequer alguma dama desejara-o — nem mesmo as desesperadas solteironas. Nos poucos bailes e rodadas esportivas que o convidava, embebecia do álcool solitário e só os bem escutava os maus burburinhos sobre sua pessoa. Lothaire desprezava-os com exatidão. Comparecer sozinho ou com a família, cercado daquela mesquinha gente fazia-o desdenhar… E como desenhara aquele noviço homem de pele pálida com corpo másculo e alto, de olhos âmbares e fios loiros e claros.

          Para os Gerwin, seus dias na alta sociedade já se marcava a ruína. Até que, numa súbita alvorada de sexta-feira do final de inverno, o adoentado e manco grão-duque Mathias Zimmermann visitaram-nos acompanhado de sua esposa Laurine e de sua filha única Romane Zimmermann: uma noviça dama recém-debutada de dezoito anos e que agora desejara casar-se imediato com Lothaire. Era encantadora e alegre a sua mocidade, tal como os encaracolados fios ao ombro e os olhar vívido e oceânico que cintilara ardente. Seu miúdo e pequeno corpo, devido à juventude, tornara-se adorável num vestido de cores púrpuras e puro linho com mangás bufantes e listradas. Nas poucas ocasiões que Lothaire estivera com Romane, jamais a constatou interessado nem imaginara que o visitaria com a proposta.

          Pouco se sabia dos verdadeiros motivos do acordo. Na verdade, o grão-duque Mathias apenas declarara que, pela própria trágica velhice e o demasiado interesse da filha casar-se somente com o primogênito de Malachai, além do incondicional apoio da mãe, podia-se Lothaire casar-se com ela. Apesar dele questionar a senhora e o senhor Zimmermann com rispidez, sequer perguntara a moça sobre a súbita decisão. Enquanto o Lothaire ficou com a pulga atrás da orelha, seu pai, fascinado com a possibilidade do futuro título de grão-duque do filho e a reerguida dos Gerwin como triunfo, aceitara sem hesitações.

          Foi apenas um “Quando criamos um acordo, criamos uma parceria²!” e pronto…! Os infelizes anos dos Gerwin retornaram à nobreza como uma formosa fênix. Escanteara no salão de chá, quando Lothaire percebeu ao escutar tais palavras um lascivo sorriso de Romane escondido detrás dum leque francês bordado a iris brancas. O sorriso secreto, que somente ele conhecera, intrigou-lhe.

          Passaram-se as semanas e o casamento fora disposto no início da primavera, rigidamente bancado pelos Zimmermann e aos acordos da noiva. Durante a organização, Lothaire não viu sua noiva e a família, mas nem os procurara, nem mandou as tradicionais flores. A capela da Santa Helena: posse do grão-duque, foi o exato lugar selecionado para a cerimônia e as suas celebrações aconteceriam na mesma terra. As cortinas e os tapetes persas tintado à bergonha integravam os coloridos vitrais de Santos, os arranjos de peônias e os candelabros e talheres de ouro. Em bancos amadeirados, acomodavam-se a mais elite sociedade de Preston e aristocratas estrangeiros que, ao som do piano, harpa e violinos, fofocavam sobre o repentino casal. Afinal, por que uma angelical senhorita se casaria com um horrendo rapaz de família intitulada? Tiveram que impedir incontáveis vezes Lothaire de terminar com a cerimônia, para evitar vexame. Ele abominara os convidados sórdidos, aquela hedionda melodia e abominara aquela maldita capela… Senão, abominara ainda mais sua esposinha meretriz, — que o fez estar ali, abominando tudo e todos.

          Decidiu então recitar na mente “Megera Domada” de William Shakespeare — sua predileta peça teatral a fim de perpassar o tempo. Enquanto recitava, ignorou os convidados, a família da noiva e a própria e respondera somente o necessário ao padre.

          — Queremos dar as boas-vindas a todos os escolhidos para testemunhar essa celebração do amor… — “… O que os meus olhos viram, não posso manter para mim…”.

          — … Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo… — “… O fogo queima onde quer que seja posto…”.

          — … Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos… — “… Pobre alma, incapaz de controlar a sua própria língua…”.

          — … Que Deus conceda ao casal a graça dos filhos e alegria… — “… Quebre primeiro, depois discuta…”.

          — … Infundi, Senhor, nos corações destes esposos o Espírito do vosso amor… — “… Vai, segue teu caminho…”.

          Lothaire somente percebera o fim da cerimônia ao averiguar aquele resplandecente Sol que, enquanto se despedia, manchava o céu de tons avermelhados.

          — Que tempo perdido. Ao menos poderia ler e até assear minhas caças. — resmungou solitário num recamier³ rodeado duma escultura de mármore do Eros e uma fonte de pássaros, também marmóreo, onde repousava um corvo. O seu rosto desdenhoso refletiu-se ao ponche alcoólico e nem a bebida agradava-lhe — já que o impediram de beber irish moonshine⁴ com charuto. Os passos súbitos de Romane fora percebido; seu rendado vestido branco com lírios bordados e as joias de safira angelizara sua rosácea face com soltos cachos. Questionou num tom grosseiro: — O que faz aqui?

          — Procurei-te em todos os cantos. Irão cantar minha harpa favorita. — Aos ouvidos de Lothaire, sua voz era como um estridente zumbido de abelha. Uma claríssima pombinha repousou na fonte com o corvo. — Deveria ir.

          — Não me obrigue a nada, senhorita… Romane. — levantou-se repudiado e bebeu outro gole do ponche.

          — Entendo… Uma pena, pois adoraria te mostrar…  

          — Não irei.

          — A harpa é música de Deus…

          — Não irei! — repetiu e logo aproximou-se a baixa dama, que ainda permaneceu estatelada: — Caso veio apenas para incomodar-me, então se retire.

          — Não vim para te incomodar.

          Cerrou-lhe os punhos e a sobrancelha, já impaciente:

          — Então qual é a sua intenção? Ridicularizar-me como os outros desta detestável cerimônia? Diga-me, senho…

          — Jamais faria isso! — revelou-se sem hesitar: — Antes de debutar-me, sempre de ti guardei minha admiração e interesse! Aliás, recusei todos os meus pretendentes apenas para casar-me contigo, Lothaire!

          Escutar o seu nome perambular em seus lábios fez formigar a alma dele de maneira íntima. Lothaire… Lothaire preferira desconhecer aquela nova sensação que invadira seu peito.

          — Apenas isso?

          — Não. — respirou, com as bochechas de tons de rubros: — Também devo confessar-te que sempre desejei comprovar teu apelido.

          — Quando comprovar, irá arrepender-se. — alisou o cabelo, sarcástico.

          — Não, não irei!

          “Divorciarei dela a alguns meses”, mantivera seu pensamento para esconder o fogo que se queimava no peito.

          Tal pensamento acompanhou-lhe na noite nupcial em acomodações num luxuoso e rococó hotel de Verena; algo incomum para as tradições familiares. No fundo d'alma, Lothaire repudiava cada mínimo ornamento glaceado que o enojava, e como, — até preferia passar as noites nas barrocas pontes com os pobres em Eponine que aquele singelo hotel vadio e, quando possível, evitava a sua novíssima esposa; com temor de florescer as antigas sensações, entretanto, a noite nupcial fora escolhida e não se havia escapatória.

          Numa camisola de ceda e os cabelos soltos, Romane encolhera-se distante na cama e tímida com a pele rosada, desfrutava da boa-imagem de Lothaire retirando os sapatos e meias, a gravata, o terno e o colete.

          — Mudei de ideia Lotti. Quero adiar os meus comprometimentos. — disse ainda acanhada.

          — Não, não… — Já bufara estressado: — Fez-me retirar os sapatos e parte de minha roupa, ademais a suspensão da visita num bar. Feche teus olhos e vire.

          — Não quero.

          — Por quê?

          — Te… Tenho algo a revelar-te. — respondera trêmula.

          — Então revele.

          — Eu… Eu… — fungou e de olhos marejados tomou-lhe finalmente a coragem e disse: — Sou uma mulher desonrada, Lothaire! Esta é minha verdade, meu pecado! Perdoe-me por minha impureza!

          Ele analisou-a de sobrancelhas franzidas e com estreito olhar questionou-a:

          — Quem te tirou a pureza?

          — Um dinamarquês real que prometera conceder sua linhagem. No fim, levou minha inocência contigo quando fugiu para sei-lá-sabe-se-onde. — remoeu as lágrimas: — Como uma ingênua menina de treze anos, enganei-me ao acreditar em suas rasas promessas, pois as acreditei como uma maresia profunda… Perdoe-me, Lotti.

          — … Que meretriz… — falou depois de um silêncio. Um sinistro riso saíra de seus lábios, tão fugaz quanto a inocência de Romane, que prometera guardar aquele momento nas lembranças eternas. — Quer saber, teu castigo será esquecer-se daquele enfoiré⁵ e de teu pecado.

          Um satisfeito sorriso e uma alta gargalhada surgira dos beiços de Romane, que entrelaçou seus braços a Lothaire e puxou-o a si sem pensar. Daquela noite, fora o seu primeiro sorriso dentre muitos.

        Após a noite nupcial, os demais compromissos do casório foram estabelecidos e realizados com precisão. O dia passou-se, depois passaram-se as semanas, os meses e assim os anos. Em três anos, alvorada da morte de Mathias e Laurine, pais de Romane, alcançaram-lhe e os tiraram à vida e a filha fez-lhe o breve luto de um ano como homenagem. Depois dos falecimentos, Romane herdara o título legítimo de grão-duquesa como também Lothaire, que recebeu o título e o controle das grandes posses aos vinte e oito anos. Nos três anos de matrimônio, também houve finalmente o nascimento do primogênito do senhor Gerwin. De bochechas gordas e rosadas, tão pálidas quanto neve, dera-se o nome de Ambrose II — homenagem ao falecido avô da mãe. Apesar dos fios claros e loiros do pai, a criança era graciosa e apesar dos olhos da maresia herdados da mãe, era um capetinha. Quando o menino tinha os sete anos, Romane ficara prenha duma menina com nome de Lilith — desta vez, a mãe exigiu do pai a responsabilidade de nomear. Outra criaturinha atrevida e dócil, que tinha dos pais o olhar acastanhado e os cabelos ondulados de mel.

        Enquanto a infância perpetuava-os, apenas os gritos e fumos⁶ da governanta Burchard eram notados naquele palacete e eram comuns os machucados de criança esperta. Além dos crescimentos dos filhos, as bodas acompanhavam-lhes a cada ano. Quando o peso dos serviços militares e os dignos de seu título não estavam nos ombros, Lothaire passavam-se os momentos na família como excelente ouvinte, principalmente para sua mulher que ao deitar-se antes de dormir, tagarelava horas e horas sobre as crianças e a rotina — quieto com livro nas mãos, ele memorizava cada instante vivido dela ali. Assim como Lothaire, Romane sempre se permitiu a ensinar os filhos as artes e a lógica quando possível, já que eram assuntos de sua admiração. Como outros aristocratas, o mais excelente ensino tiveram Ambrose e Lilith: dominavam os aprendizados da arte e lógica, das ciências e matemática, além da etiqueta e línguas estrangeiras.

        Para Lothaire, o sentimento da conquista lhe acompanhava com a esposa e o mundo parecia tanto irônico. Afinal, a jornada dum mero intitulado a grão-duque e a presença de uma família exemplar eram invejáveis aos outros nobres — os mesmos que o ridicularizara anos atrás.

GLOSSÁRIO e REFERÊNCIAS:

• ²: referência ao filme “Jerry Maguire: A Grande Virada” de 1996.

• ³: estofado sem encosto de origem francesa.

• ⁴: bebida alcoólica de origem irlandesa, comumente chamada de “Poitín”.

• ⁵: termo vulgar francês de insulto, equivalente a um palavrão.

• ⁶: no sentido apresentado, refere-se a gíria popular “tomar/levar fumo”.

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