CAPÍTULO ÚNICO
Como de costume, Noah conseguiu acordar antes do primeiro toque do despertador digital irritante. Depois de árduos meses de treino controlando o horário de sono, já não mais despertava com o peito acelerado ao ouvir o jingle tão doce e aveludado quanto a sirene de uma usina nuclear — e, infelizmente, ele experimentou na pele o quão ruim poderia ser. Sentou devagar no colchão, espreguiçando ao ponto de ouvir a sua coluna estalar melodicamente, deleitando-se com a sensação estranha, porém libertadora e até mesmo prazerosa.
Tocou os pés sem meias no chão, sentindo o frio do piso gelado do quarto percorrer todo o seu corpo a partir deles, espalhando irritantes ondas de calafrios por todo o seu ser, tremendo até na alma, antes de realmente levantar e caminhar para fora do cômodo com passos lentos e preguiçosos, arrastados, uma vez que o mesmo nem ao menos queria sair do calor aconchegante das grossas cobertas enquanto afundava devagar no travesseiro.
Contudo, o dever o chamava, e ele era obrigado a atender.
A porta automática abriu assim que Noah se aproximou, revelando o pequeno corredor que o obrigava a se abaixar se não quisesse bater com a cabeça no teto ou no arco que abria para a sala. Não havia uma janela sequer no trajeto, iluminada apenas pelas tiras translúcidas de LED que desligavam caso não houvesse movimentos próximos, e como o homem costumava ficar enfurnado em apenas um cômodo por vez, aquilo acabava por passar a maior parte do dia desligado. Era uma boa economia de energia.
O pequeno cômodo seguinte era dividido entre cozinha e sala, apelidado carinhosamente por Noah como “Cozala”, e ainda sim era estranhamente confortável pra ele, ou era mais provável que ele tivesse apenas se acostumado com o espaço, ou falta dele. Dirigiu-se diretamente para a máquina de café, tirando de lá uma xícara cheia até o topo com o líquido cafeinado de fragrância forte, sendo a mesma, infelizmente, a última dose do estoque. Ao lembrar disso, decidiu apreciar o líquido encorpado devagar.
Voltou para a sala e deitou-se confortavelmente no sofá de dois espaços, com o rosto virado para a janela. Muitas casas teriam a vista de um jardim, outras de várias outras residências ou avenidas, algumas teriam até mesmo um amplo espaço verde de um sítio. Já no caso de Noah, tudo que a janela oferecia e o limite que seus olhos viam era um deserto avermelhado de chão rochoso. Não havia uma planta sequer, mesmo que morta, ou animais, ainda que aves; sem nenhum tipo de movimentação externa; sem nenhum sinal sequer de vida além das paredes daquela pequena residência. Um ambiente morto em praticamente todos os aspectos, tão monocromático ao ponto de conseguir causar fortes enxaquecas, que levou muito tempo até que não mais afetasse o homem.
Aquela era a descrição esperada de um planeta inabitado e sem registro conhecido de vida.
Noah deu um cansado e repetitivo suspiro antes de bebericar o café quente. A vista já não lhe cansava os olhos, muito menos transmitia aquela sensação desesperadora de abandono que o afligiu por meses, mas ainda o incomodava. Não mais o sentimento de abandono, mas solidão involuntária, como tivesse se tornado um ermitão sem a consciência de que estava o fazendo, e aquilo era o que tornava toda a melancolia pior do que deveria ser.
Ainda sim, ele não ia se deixar abalar daquela vez. Olhou pela janela mais uma vez, ainda teimando com a razão de que, no momento que insistisse, poderia aparecer algo além de poeira naquela terra seca. Porém, nada mudou, assim como ele já tinha plena consciência de que iria acontecer. Por muito tempo ele o fez, gritando internamente para que alguma coisa mudasse, mas acabou por se acostumar de que só havia ele ali.
Contudo, o estrondo de algo metálico caindo com força no chão o lembrou que não estava tecnicamente sozinho lá, e seu “companheiro de alojamento” fazia questão de lembrar Noah constantemente disso, ainda que fosse nos momentos mais inoportunos. Não precisou nem ao menos virar o rosto na direção do estrondo para ver com o rabo do olho uma pequena figura metálica remexendo-se no chão, utilizando de todos os seus esforços para levantar.
Visto tal situação, Noah apenas suspirou.
— Quantas vezes eu vou ter que te pedir pra tomar cuidado ao andar pela Cozala, Iasv? — disse tomando mais um gole pequeno do café. — Eu já te consertei semana passada por causa disso, não temos mais tantas peças pra ficar te reparando por ser um robô idiota.
O pequeno objeto metálico resmungou em resposta a Noah, conseguindo colocar-se de pé logo em seguida. A Inteligência Artificial de Suporte à Vida, abreviado carinhosa por Noah para “Iasv", era um robô humanóide rechonchudo de aproximadamente 50 centímetros, de coloração branca e azul com uma tela display que mostrava suas divertidas expressões faciais, se é que Noah poderia chamar assim. O energético assistente robótico oferecia os mais diversos aspectos de suporte, tanto no dia a dia, quanto nos trabalhos em geral do homem, saindo de seu lado apenas quando recarregava suas baterias ou quando Noah o expulsava do banheiro para ter um momento de privacidade.
Contudo, o pequenino era extremamente desengonçado, muitas vezes perdendo seu equilíbrio e tacando-se nos mais aleatórios locais e móveis, o que obrigou Noah a aprender como consertá-lo em todas essas situações. Não que aquilo o irritasse, pelo contrário, acabava criando situações em que ele acaba por ver Iasv como uma criança em crescimento que necessitava de supervisão constante, o que ajudava bastante a distrair a solidão que às vezes batia na janela.
— Me desculpe, Dr. Myers. — a voz de Iasv era aguda e traquina, tal qual fosse realmente uma criança, ainda que falasse de forma tão formal. — Certamente o meu centro de equilíbrio acabou por ser deteriorado em algum momento de nossa viagem, e suas mãos tão delicadas quanto o coice de um cavalo ao mexer em meus componentes com toda certeza ajudaram a piorar minha situação, Doutor.
Noah gargalhou com a resposta. Iasv conseguia ser mais sutil e sarcástico do que qualquer outro robô ou andróide que ele já havia visto em seus anos de vida, o que era um alívio. Ele não teria paciência para ficar ensinando uma máquina a entender seus sentimentos apenas para conseguir manter uma conversa.
O homem olhou para a xícara. O líquido negro e aromático ainda deveria oferecer, ao menos, mais três goles, e o antepenúltimo foi tomado naquele instante, servindo de combustível para Noah se dirigir para o cômodo ao lado devagar, sendo seguido por Iasv com seus passos curtos e rápidos, tentando acompanhar as passadas longas, ou normais neste caso, do companheiro. Era quase como ser seguido por um filhote de cachorrinho.
— Por acaso o senhor está indo registrar suas gravações diárias, Dr. Myers? — questionou o robozinho com um rosto curioso estampado em seu display.
— Você sabe muito bem que sim, Iasv. — Noah respondeu com tranquilidade, já sabendo do irritante costume do assistente de fazer perguntas retóricas. — Você sabe de toda a minha rotina.
— Mas o senhor não cansa de sempre executar essas atividades repetitivas, Dr. Myers?
— Não acha irônico um robô, que é programado justamente para executar atividades repetitivas, me questionar sobre eu estar fazendo atividades repetitivas, Iasv?
— Eu sou um robô totalmente diferente dos outros, Dr. Myers! — ele proferiu com firmeza e orgulho, agora com um rosto confiante.
— Sim, sim, claro que é…
O curto diálogo chegou ao fim quando a porta automática do cômodo abriu, revelando um pequeno e extremamente organizado laboratório, onde Noah ficava por horas trancado: iluminado com LED branco e paredes azul-claro, o ambiente era confortável aos olhos e ainda sim conseguia mantê-lo desperto por horas a fio; haviam equipamentos de laboratório lotando as prateleiras e mesas do recinto, além de diversas telas com dados em mudança constante e gráficos; estufas e incubadoras lotadas de materiais e amostras, estas que já estavam há tanto tempo lá que, caso fosse possível, teriam criado vida ou simplesmente desintegrado, e essa era uma das razões de Noah constantemente observá-las durante o dia.
O ar era resfriado, fazendo todo o corpo do homem arrepiar no momento em que seus pés adentraram no local. Não importava mais se ele usaria um jaleco com seu nome bordado em linhas verdes neon ou apenas um pijama preto pois, depois de tanto tempo, não o havia feito ou faria questão de fazê-lo. Em meio a grãos de areia, rochas avermelhadas em Separadores e papéis com resultados insatisfatórios, Noah não se sentia sozinho. Era como estar de volta aos velhos tempos. Contudo, os velhos tempos não voltariam, ainda que ele tivesse passado muito, mas muito tempo mesmo, esperando para que voltassem.
Ele se dirigiu a sua mesa, onde a cadeira preta acolchoada lhe esperava pacientemente. Ao sentar e repousar sua xícara no descanso de copos no formato do rosto de um panda fofo, Iasv lhe escalou a perna, conseguindo assim, ainda com dificuldade e tropeços, subir à mesa. Para Noah, ele parecia um brinquedinho automático, um megazord em miniatura que tinha na infância, enquanto o assistente tentava arrumar a bagunça nas papeladas da mesa. Era uma vista divertida para o homem, situação que ele poderia considerar como de extrema raridade.
— Você sabe que, quando eu terminar hoje, tudo estará desorganizado, não sabe? — Noah o indagou, esperando se distrair com as respostas de Iasv.
— Um ambiente de trabalho organizado é de extrema importância para um cientista, já que isso acaba por ajudar o usuário a se concentrar e ter mais rendimento em seu serviço, Dr, Myers. — respondeu o robozinho, monótico, arrumando uma enorme pilha de papéis ao lado de uma caneca com canetas coloridas — Me é simplesmente incabível que seu ambiente de trabalho seja desorganizado desse jeito. O senhor deveria ter vergonha na cara e repensar sobre sua falta de organização, Dr. Myers.
— Às vezes esqueço que você consegue ser irritantemente robótico, Iasv. — ele deixou escapar durante um suspiro teatral.
— Caso o senhor tenha esquecido, eu sou um robô, Dr. Myers, eu devo agir como tal.
— Sendo irritantemente robótico e monótono?
— O senhor é um homem com declarações realmente confusas, Dr. Myers. Meu sistema de respostas não é de seu agrado? — dessa vez, ele apresentava uma careta confusa e cômica. — Talvez o senhor pudesse substituir por um parâmetro melhor, mas o senhor precisaria aprender a manusear meu sistema antes.
Uma gargalhada carregada preencheu o ambiente. A interação com Iasv era tão orgânica que Noah facilmente esquecia que ele era um robozinho com um sistema bem avançado que só estava lá para auxiliá-lo em situações difíceis, e para o homem, toda situação atual possível era monotonamente difícil.
Bebericou mais um pouco do seu café enquanto assistia seu assistente terminar a organização. Pilhas e pilhas de anotações feitas como se fossem rabiscos, algumas destas realmente não passavam apenas de rabiscos, registros de uma pesquisa que Noah já não via mais sentido em continuar, utilizando-a apenas como desculpa para poder manter-se concentrado em algo para não se perder na imensidão universal na qual se encontrava há tanto tempo.
Há tanto tempo.
— Iasv, que dia é hoje?
— De qual sistema, Dr. Myers? — ele perguntou em resposta sem se distrair da sua atual missão: empilhar oito lápis como se numa fogueira ritualista.
— Do meu, Iasv. De onde eu vim.
— Um momento, Dr. Myers.
Houve um período de silêncio com Iasv estático, fazendo com que o último lápis prestes a ser empilhado derrubasse todo o restante que haviam sido mal posicionados. Era difícil Iasv demorar para responder algum comando, mas isso Noah já esperava: o próprio havia mexido em alguns códigos para que fosse realmente demorado. Foi algo que ele se viu obrigado a fazer após situações desesperadoras no passado que ele faria de tudo para evitar.
Quando Iasv voltou a si e viu a pilha caída de sua antiga missão, sua tela digital esboçou uma reação irritada para Noah, que tornou-se neutra antes de pronunciar a resposta:
— Dia trinta e um de dezembro de dois mil e oitenta e cinco, Dr. Myers.
Noah suspirou. Depois de parar de contar o tempo para não surtar há anos atrás, ele havia esquecido que o planeta em que estava localizado possuía a mesma rotação da Terra. A ignorância sobre isso era uma benção para alguém que há tempos não via uma alma viva além da sua, sem a pressão interna de contar os minutos para voltar para casa.
Ele não voltaria para casa tão cedo, infelizmente sabia muito bem disso. Se ele fosse voltar, não teria simplesmente largado a razão pela qual o levou até onde estava.
Olhando para seu dono, o display de Iasv transmitia um emoji tristonho. Ele não era programado para ter sentimentos, nenhum robô jamais havia sido, mas seu sistema havia sido preparado para reagir a cada mudança de humor que Noah esboçasse, que foram catalogados antes do lançamento de sua missão através de vários e vários arquivos de gravação e fotografias.
— Já fazem quantos anos, Iasv? — perguntou o homem, com o olhar perdido entre a xícara de café e infinitos pontos radiais no espaço. — Três, quatro anos?
— Já fazem 9 anos, 364 dias, 8 horas e…
— Me poupe desses pequenos detalhes, tá bom? Basta dizer que falta só 1 dia pra…
— Faltam menos de 15 horas para completar 10 anos em que o senhor se encontra residindo neste posto planetário, Dr. Myers. — corrigiu o robô.
Os olhos abaixaram. Não por sono, não na tentativa de evitar lágrimas que ele sabia que jamais viriam, mas sim por simples cansaço. 10 anos haviam se passado num piscar de olhos, ou na velocidade de uma lesma sobre concreto arenoso, ele já não sabia mais dizer. A ignorância sobre o tempo também era uma maldição, uma via de mão dupla. Estar num lugar há cinco anos-luz de onde nasceu que possui os mesmos horários de dia e noite não tornaram ali uma estadia reconfortante, muito pelo contrário: fazia com que Noah se sentisse angustiado, com a noção interna tão grande de que estava tão longe e ao mesmo tempo tão perto de todos que conhecia.
Ainda sim, estar ali era o que mais desejou em toda a sua vida. Ser responsável pelo catalogamento e estudo de uma nova região antes não explorada por sua falta de recursos naturais para a propagação da raça humana, ainda que apenas pelo conhecimento material de seus minérios não encontrados na Terra, era uma grande responsabilidade que desde pequeno Noah desejou para si. Analisar, cavar, registrar e catalogar diferentes tipos de minerais que poderiam ser utilizados de tantas formas o mantinham em sua reta de sanidade, tendo momentos de contato com sua Base apenas por mensagem, uma vez que as ondas não conseguiam captar com força o suficiente para estabelecer uma ligação, ainda que apenas por voz.
Dias e noites passavam num piscar de olhos, o tempo fluia de maneira mais rápida do que ele sequer poderia cogitar, e ter Iasv ao seu lado, querendo ou não, tornava a situação menos robótica, por mais irônico que fosse. Dormir, acordar, comer, trabalhar e dormir. Era uma rotina mais repetitiva ainda do que quando estava se preparando para conseguir passar nas provas de admissão, era óbvio que seria, mas Noah conseguiu superar o cansaço e a monotonia. Ele conseguiu superar tudo para poder continuar no trabalho que lhe foi confiado.
Um dia, contudo, não responderam o relatório diário. Noah supôs ser algo que viria a acontecer em algum momento devido a instabilidade da rede de conexão, então apenas aguardou uma resposta sempre que enviava seus relatórios, assim como já havia sido instruído anteriormente.
Passaram-se três dias.
Duas semanas.
6 meses.
4 anos e meio.
Noah nunca mais obteve resposta do centro de comando. No começo, o desespero instaurou no ser de Noah. Estar sem contato com nenhum superior numa terra quatro há anos-luz de sua casa preencheu a cabeça do cientista, deixando-o sem reações além de medo e pavor por semanas à fio, impedindo-o de dormir e comer, remexendo em cada ligação de cabos e sistema no computador para conseguir restabelecer contato com algum ser vivo.
Tudo em vão. Ele não era técnico, havia sido instruído a permanecer calmo caso essa situação viesse a ocorrer e prosseguisse seu trabalho normalmente, registrando e enviando suas pesquisas diariamente juntas de seus relatórios, pois haviam lhe prometido que ainda iriam receber os arquivos ainda que o sistema de comunicação caísse.
Ele permaneceu em seu posto, mas não tinha mais a esperança de que a base na Terra realmente estivesse recebendo seus relatórios. Trabalhar tornou-se apenas uma âncora para a sanidade de Noah, mantendo-o firme em sua “missão”, que agora não passava de uma razão para ele não enlouquecer.
Seu olhar revirou a sala e pousou na pequena câmera exposta em cima da mesa num tripé flexível e alongado. Era aquela máquina que registrava as atividades diárias em vídeo de Noah na melhor qualidade que uma câmera poderia oferecer. Os procedimentos diários de registro de vídeo serviram não apenas para que ele pudesse ter acesso constante aos acontecimentos que ele eventualmente esqueceria, mas também para que Noah pudesse confirmar o quanto os anos não lhe sorriram: a pele caramelizada de seu rosto estava com mais rugas e pequenas rachaduras do que deveria, os olhos castanhos carregados com olheiras profundas e um vazio tão imenso quanto do universo; o cavanhaque, antes bem cuidado todos os dias, agora havia se tornado uma barba cheia e mal-cuidada, assim como seu cabelo ondulado, tão grande e mal cuidado que agora caía constantemente em seus olhos.
Para um homem de apenas 38 anos, Noah estava muito mais do que acabado, nem lembrava aquele rapaz de corpo, rosto e mente atraente que possuía o sonho de poder fazer algo que fizesse a diferença no mundo.
Como em piloto automático, ele estendeu a mão para iniciar uma nova gravação, mas parou no meio do caminho.
— O que houve, Dr. Myers? — questionou o pequeno parceiro. — O senhor não vai começar seus registros?
Noah olhou para Iasv e pela primeira vez em muito tempo seus olhos brilharam. Não um brilho alegre ou travesso, mas um brilho triste, como se uma pequena pepita de ouro brilhando no meio de um lamaçal. Um brilho que o assistente robótico jamais seria capaz de identificar em seu sistema.
O cientista levantou da cadeira calmamente e caminhou até a prateleira mais próxima, analisando as amostras ali expostas. Ele dedicou milhares de horas, literalmente anos, a cada uma delas, procurando dados úteis, elementos novos que pudessem oferecer algo realmente bom. Não foram anos infrutíferos, pelo contrário, os resultados acabaram sendo melhores do que ele especulou que seria no início da missão, mas uma pergunta circulava sua mente nos últimos meses, uma pergunta que o fez planejar algo que ele inicialmente não queria realizar:
— De quê adianta tudo isso se não vão ver?
Noah ouviu um baque metálico igual ao acordar atrás de si passos metálicos se aproximarem, indicando que Iasv havia descido da mesa da pior forma possível. Com o canto do olho, ele viu que o pequenino assistente parou ao lado de suas pernas, encarando-o com um enorme ponto de interrogação em sua tela.
— O que quer dizer, Dr. Myers? O senhor enviou todas as suas pesquisas e relatórios para a Central, é claro que eles estão vendo tudo isso!
Noah balançou a cabeça. Iasv era divertido e parecia uma criança irritante e persistente, mas ele ainda era apenas uma máquina. Eles estiveram juntos sozinhos nos últimos quase 10 anos, mas isso não seria tempo o suficiente para que o robô pudesse compreender alguns pensamentos obscuros do solitário homem.
Mesmo assim, ele sorriu para o assistente.
— Não é nada, não se preocupe, Iasv. Eu só tô perdido em alguns pensamentos por causa da fome. — disse com o tom mais confiante que conseguia manter.
— Mas é claro, o senhor apenas tomou um café! Apesar de ser saudável e ajudá-lo a manter o metabolismo correndo devido à cafeína, o senhor ainda possui a necessidade de nutrientes e carboidratos! — argumentou de volta, com a voz metálica levemente alterada. — O senhor precisa se alimentar!
Foi ao ouvir isso que um estalo ecoou na cabeça de Noah. Uma ideia.
— Já que é assim, por quê não vamos almoçar logo e ver um filminho, hein?
O homem não esperou a resposta do robozinho para já se virar e disparar até a porta automática, mas parou antes de atravessá-la. Girou nos calcanhares lentamente e analisou todo o recinto de cima a baixo: respirou fundo o ar gelado, divertiu-se com o brilho das amostras e reclamou consigo mesmo por nunca arrumar de verdade a mesa e sempre deixar tudo para Iasv fazer. Ele fez tudo isso em apenas 3 segundos, mas pareceram anos de experiência e lembranças que fazia questão de lembrar todos os dias.
Noah costumava sempre fazer isso: analisar o ambiente antes de sair para ter certeza que tudo estava no canto certo. Contudo, aquela vez seria diferente, então tratou de analisar tudo com seus olhos cansados antes de recuar de costas com Iasv em seu encalço antes das luzes se apagarem e as portas fecharem, como se aquela fosse a última vez que seriam abertas por qualquer um.
Ambos se encaminharam até a “cozala”. Abrindo a geladeira enquanto Iasv se aconchegava no sofá, Noah notou que havia apenas mais um conjunto de ração, junto de um solitário pote de suco de laranja; a ração era composta por três pedaços de carne de hambúrguer, purê de batatas e arroz integral, tudo extremamente mal temperado e sem o sabor que realmente deveriam ter, mas Noah já havia acabado por se acostumar com aquela situação, afinal, pelos últimos anos aquilo havia sido tudo que ele possuía para digerir.
Ele retirou o prato da geladeira e deixou-o esquentar por alguns instantes no pequeno aquecedor elétrico ao lado da cafeteira, se dirigindo com o mesmo para o sofá. Como já era uma atividade recorrente para afastar o tédio, Noah havia deixado preparado a pilha de DVDs ao lado do braço do sofá, ao alcance fácil de sua mão. Não era uma pilha grande, mas lhe rendeu literais anos de distração. A lista de filmes partia de comédias datadas da época de seu pai até filmes de ação que foram lançados um pouco antes da sua viagem.
Escolheu um aleatoriamente, encaixou o disco no aparelho e voltou ao sofá já devorando lentamente a sua refeição. Noah de fato não assistia ao filme, há anos parara de fazer isso, apenas os reproduzia para que o recinto parecesse ter um pouco mais de vida, ainda que de forma artificial. Alguns CDs já possuíam tantos arranhões de repetição que sequer funcionavam, mas foram justamente eles que ajudaram Noah a não sentir-se tão sozinho naquele pequeno lugar no meio de um deserto infinito.
Iasv, como de costume, estava vidrado na tela. Noah achava estranhamente curioso o fato de Iasv, um pequeno robô com registro de todos os acontecimentos do último século, ficava totalmente concentrado toda vez que assistia algo com ele. Sabia que devia ser apenas algum modo de espera dele, algum tipo de stand-by, mas realmente era como se aquele ser mecânico prestasse atenção a tudo que passasse na tela, como se tivesse algo a aprender.
Contudo, não havia nada que Noah fosse aprender. Ele já estava chegando na casa dos seus 40 anos, não estava em nenhum relacionamento e perdera os últimos dez anos numa missão fracassada, jogando aquele sonho pelo qual ele tanto batalhou fora. Não havia nada num filme melodramático de romance ou ação clichê que fosse lhe dar uma nova perspectiva de vida, somente uma breve distração para fazer-lhe esquecer da solidão infinita que o cercava.
Numa longa e severamente cansativa sequência, um filme foi sendo reproduzido após o outro, enquanto o sol lá fora repousava em seu leito de descanso e as três belas luas surgiam para dar o ar da graça. Durante a noite, a paisagem desértica se tornava sombria, mas acolhedora, como um sussurro misterioso. Muitas vezes Noah gostava de vestir seu traje e sentar do lado de fora numa cadeira e observar a imensidão do vazio, e naquela noite não seria diferente.
Noah desligou a televisão ao notar que as luas já estavam em seu ápice.
— O que houve, Dr. Myers? — questionou Iasv, num tom confuso e até um pouco incomodado pelo homem ter atrapalhado a excêntrica cena de beijo do casal principal do filme.
O homem, contudo, não respondeu. Levantou devagar e deixou o controle do aparelho no braço do sofá, encaminhando-se na mesma velocidade para a cabine de despressurização. Iasv, ao notar o caminho que seu companheiro estava trilhando, desceu num salto desajeitado e pousou de forma segura no chão, acelerando seus passos para alcançá-lo. Noah conseguia ouvir Iasv e seu caminhar metálico cômico ecoando pelo chão, o que fez com que deixasse escapar uma risada por entre os lábios, que perdeu-se antes mesmo de um segundo.
A cabine era totalmente branca do chão ao teto, mas de laterais infláveis, bem diferentes das paredes sólidas do restante do habitat. Pendurada no cabide ao lado da porta de entrada havia o leve e branco traje de exploração de Noah: já estava com alguns pequenos remendos e sua coloração já estava ficando amarelada devido os anos de uso e não tão bons cuidados por parte do homem, mas em estado perfeito para uso, visto que sempre o utilizava à noite, ainda que apenas por alguns poucos minutos.
— A programação de sempre, Dr. Myers?
— Sim, sim, a programação de sempre, Iasv. — respondeu em tom desanimado enquanto vestia seu traje atenciosamente. — Desta vez, quero que você venha comigo.
— O senhor tem certeza? Geralmente o senhor diz que “é o único momento em que eu tenho um pouco de paz entre a imensidão do universo e você, Iasv.” — retrucou o robô, imitando perfeitamente a voz de Noah neste último trecho, o que fez com que outro riso escapasse sem sua vontade enquanto encaixava o capacete. — Por que o senhor quer que eu vá desta vez?
Noah parou por alguns instantes após ouvir a indagação de seu pequeno companheiro. Não estava em seu planejamento inicial levá-lo consigo, mas num último momento surgiu um lampejo em sua mente, lembranças de ocasiões onde Iasv havia mudado, ainda que sem intenção, totalmente o rumo do dia do pesquisador. Não seria justo simplesmente deixá-lo lá.
Contudo, ele não respondeu a pergunta, apenas continuou conferindo se todo o seu equipamento estava de acordo: o sistema de alimentação de oxigênio estava bem e estável, ainda com carga completa que duraria boas horas, ainda que não fosse necessário, bem como o regulador de temperatura interno mantinha a sensação térmica dentro do traje confortável; não havia nenhum sinal de vazamento ou ruptura, então permanecia intacto e recomendado para uso, exatamente como deveria estar.
Pegou seu pequeno companheiro nos braços e caminhou até a porta de saída. Cada passo lhe remetia uma lembrança daquele local, como se a cada centímetro que se aproximasse da porta, todos os momentos dos últimos dez anos lhe açoitassem a consciência, fazendo-o perder o ritmo do caminhar em alguns momentos. Era uma simples trajetória de apenas cinco metros, mas se assemelhava a andar contra o sentido de uma rápida escada rolante, como se todo o corpo de Noah pesasse mais a cada passo, agindo de forma totalmente contra sua vontade e planejamento de tempos.
Com uma dificuldade que não deveria existir, finalmente conseguiu abrir a porta, e então a imensidão desértica lhe atingiu em cheio. Vendo do ponto de vista da janela do habitat, aquilo mais parecia um wallpaper animado para a tela do computador do que qualquer outra coisa, mas lá fora, onde Noah conseguia sentir o solo arenoso e rachado pelas botas, tudo parecia muito mais assustador, mas de certa forma até mesmo reconfortante. Era como olhar para a infinitude do alcance da visão sobre o mar, exatamente como amava fazer quando criança. Essa sensação ficava sobreposta ao incômodo de saber que, mesmo se andasse quilômetros em linha reta, tudo que mudaria seria apenas o surgimento de alguns conjuntos rochosos um pouco maiores do que ele.
Com um cansado suspiro, Noah colocou Iasv no chão, que foi diretamente para um assento metálico preso com pregos e cordas de nylon há quase sessenta centímetros no chão. O homem adquiriu o costume de sentar-se lá em algumas noites, uma vez que o clima durante a manhã era insuportavelmente quente e sufocante mesmo com o equilíbrio térmico do traje, apenas para poder conversar um pouco consigo mesmo em voz alta, até mesmo xingar sem filtros todo o azar que o colocara naquela situação, sem a interferência da preocupação constante de seu pequeno parceiro robótico. Além disso, havia também a preocupante sensação de liberdade que Noah nunca conseguiu explicar, mas que sentia sempre que estava lá.
Ele se sentou devagar. Iasv assistiu com uma expressão curiosa, como se não soubesse o que deveria fazer. Com um sorriso descontraído, Noah pegou o companheiro e o sentou em seu colo, como se o mesmo fosse um animal de estimação, e tornou a olhar para o horizonte. Sem a poluição ambiental e a selva de prédios e arranha-céus, o homem conseguia contemplar perfeitamente o céu noturno, com centenas de constelações não catalogadas e as chuvas de asteróides que constantemente ocorriam, sem contar a beleza hipnotizante das luas de lá. Elas eram bem mais próximas que a Lua da Terra, ou talvez fossem bem maiores, Noah já não sabia bem dizer, mas também não passavam de informações, assim como muitas outras, sem muita importância para ele. A tranquilidade e beleza que exalavam lhe eram suficientes.
Noah esticou o antebraço e conferiu o sistema de oxigenação na tela, níveis regulares e capacidade em 98%. Aquilo lhe concederia mais sete horas de oxigênio, mas ele não pretendia ficar assim tanto tempo. Movendo rapidamente os dedos pela tela, digitou o código de corte de suprimento de sistema, suspendendo o sistema em seguida. Ele teria apenas mais 10 ou 5 minutos até todo o abastecimento acabar, exatamente como ele já havia planejado.
Contudo, Iasv virou sua atenção diretamente para ele. O homem havia esquecido por um momento que todos os sistemas relacionados à sobrevivência estavam diretamente conectados ao sistema principal do robô, ainda que seu nome deixasse isso muito claro.
— Dr. Myers, meu sistema está indicando que o abastecimento de oxigênio do traje foi suspenso. — informou com os dados de observação em sua tela. — Pode ter ocorrido algum erro, então recomendo que voltemos agora para o habitat, onde faremos um check-up no sistema e traje.
Noah, contudo, não respondeu.
— Dr. Myers?
— Não é um erro, Iasv. — respondeu Noah, finalizando com um pesado suspiro. — Eu que cancelei o abastecimento.
— Mas por que, Dr. Myers? — Iasv questionou. Por um segundo, Noah quase conseguiu sentir desespero na voz do seu pequeno companheiro. — Sem oxigênio, o senhor irá…
Antes que pudesse terminar sua monótona e óbvia fala, Noah sentou Iasv de frente e pressionou os dedos contra seu peito por alguns segundos, até que uma pequena comporta lateral abriu. Ali, em meio a fios coloridos e circuitos que havia visto milhares de vezes durante as limpezas periódicas, havia um minúsculo reator brilhando em azul-celeste e ametista: o “coração” de Iasv.
— Sabe, eu já estou aqui há muito tempo, Iasv. Essa missão era para ter durado… muito menos tempo. — começou Noah, mexendo seus dedos cuidadosamente por dentro do robô. — Eu levei anos para finalmente entender que eles não iam receber os relatórios, não iam enviar um resgate, então apenas vivi um dia após o outro, tentando me manter são, não pirar e fazer alguma besteira.
Enquanto falava, Iasv permaneceu em silêncio. A sua tela estava sem nenhum código de expressão, apenas com um brilho baixo alternado, como se estivesse realmente ouvindo Noah. Ele sabia que seu companheiro tinha a função de ouvinte psicológico em seu sistema de auxílio, mas naquele momento, diferente das outras ocasiões, era extremamente real. Era como ter seu melhor amigo lhe ouvindo diretamente, e pelos últimos anos, Iasv havia deixado de ser uma máquina e se tornado aquilo que Noah precisava.
O que Noah estava fazendo era simples: tentando esconder a tremedeira em seus dedos dentro de Iasv, que seria facilmente capaz de notar isso. Assim como mais cedo, seu corpo tremia hesitante, não acompanhando as milhares de ideias e aceitação que tinha em sua mente, mas aquilo não o impediria. Ele já havia pensado demais, cogitado todas as situações, teve anos para isso, além de que todos os suprimentos haviam acabado. Ainda que ele pudesse ter água, morreria de fome em não muito tempo.
Voltar atrás não era mais uma opção.
— Dr. Myers, eu não entendo. — o pequeno robô voltou a argumentar.
— É claro que não, Iasv, e eu nunca poderia pedir para que entendesse. — Noah respondeu com a voz pesada, já sentindo seus olhos arderem. — Você fez seu trabalho muito bem. Obrigado.
A tela do robô assumiu um brilho azulado reconfortante enquanto exibia um emoji sorridente.
— Talvez as suas desastrosas modificações em mim tenham servido para realmente ajudar mais, Dr. Myers.
Desta vez, Noah gargalhou alto, sentindo as lágrimas quentes escorrerem pelo seu rosto. Foi uma gargalhada sincera, com vida, algo que ele não esperou fazer num momento igual àquele. O visor em seu capacete começou a embaçar com as gotículas da sua respiração, as lágrimas descendo sem filtro ao retirar com a ponta dos dedos o reator de Iasv. Ele permaneceu brilhando por alguns segundos antes de sua luz dissipar completamente ao brilho do luar, e a tela do monitor finalmente desligou completamente.
O homem abraçou com força o corpo metálico de seu fiel companheiro e olhou para o belíssimo e iluminado céu estrelado acima.
Tratou de ignorar os avisos sonoros de alerta em seu capacete sobre a baixa capacidade de oxigênio enquanto admirava as estrelas. Tratou de ignorar toda a dor em seu peito e os violentos espasmos que lhe jogaram ao chão, tentando lutar contra seu instinto natural de sobrevivência enquanto seus órgãos morriam lentamente numa indescritível dor lacerante apenas para admirar um pouco mais aquele céu noturno estrelado que por anos cobriram sua cabeça e foram amaldiçoados por aquele que agora se deleitava com seu o belo e único brilho sem fim ao despedir-se do deserto que lhe cercava.
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