Capítulo 2
Era um dia de sol sem nuvens. Fazia muito calor no estado do Texas. O ar-condicionado do carro mal dava conta de amenizar e as gotas de suor começaram a brotar em sua testa. Limpou com as pontas dos dedos e, logo em seguida, voltou a sua atenção para as anotações feitas recentemente em seu caderno de couro marrom, presente que sua tia lhe deu pela efetivação no Jornal El Dourado.
— Que esse caderno registre fatos importantes para as suas matérias! — A tia sentia muito orgulho daquela menina que criou como se fosse dela.
— Obrigada, tia! Deixarei guardado para o que deseja, quando uma matéria importante acontecer, pois por hora terei muita sorte se escrever sobre casamentos ou obituários.
Era o que todos esperavam no começo de carreira para Maria. Após onze meses, porém, chegou o pedido da entrevista. E uma das exigências era que Santiago a conduzisse. O caderno foi resgatado dentro das caixas de papelão da mudança recente, ainda em desordem. Maria e o namorado, Diego, faziam de tudo para que aquele apartamento recém-alugado se transformasse em um lar. O que não sabiam era que nenhum dos dois teria muita disposição ou talento para aquilo. Caixas e caixas ainda permaneciam empilhadas.
Olhou atentamente em tudo que seu editor a fizera anotar. Pesquisou em recortes de jornais antigos e várias matérias que encontrou pela internet sobre aquele homem que fizera questão da sua presença. Ainda não conseguia entender. Como ele sabia de sua existência?
— Relaxa, amor! Ele deve ter lido o seu blog.
— Não pode ser! Eles têm acesso à internet?
— Boa pergunta! O que importa é que o homem que nunca falou com ninguém decidiu que fará isso com você, então aproveite cada minuto.
— Confesso que estou com medo, Di.
— Eu também teria se estivesse na sua pele, amor. O que esse homem fez... — Diego desviou a atenção da estrada por um instante e segurou em sua mão. Ao fazer isso, percebeu que tremiam. — Vou ficar o tempo todo aqui e tem milhares de guardas lá dentro, não precisa ficar com medo... Ele não vai te fazer mal.
— Não é disso que tenho medo. — Maria desvencilhou-se do toque de Diego e tornou a enxugar o suor que se acumulava em sua testa. — E sim o fato de ter sido eu, sabe... A moça também era mexicana.
— Acha que é a forma que ele encontrou de reviver o que fez? Dizem que assassinos gostam de fazer isso, né? Guardam algo que os conectem ao crime e assim revivem as sensações.
— Esse é um dos meus medos, dele me usar para a sua necessidade diabólica, afinal dentro de alguns dias ele será executado e nunca mais terá essa chance. Mas sabe o que mais me amedronta?
Diego meneou a cabeça, olhando de relance para a estrada e depois para Maria, com aqueles olhos castanhos vivos olhando diretamente para os dele.
— Ele ficar lá do outro lado do vidro, apenas me olhando, e não dizer absolutamente nada.
Era com esse fator que Maria contava. O homem apenas queria tempo e atenção. Queria uma distração para aplacar aqueles últimos anos de isolamento. O seu último desejo era ficar diante de uma mulher semelhante àquela que lhe colocou ali dentro. Maria, religiosa que era, temia que ele lhe lançasse algo parecido a um mau-olhado ou coisa pior, e isso lhe perseguisse e lhe roubasse toda a sanidade. Dizem que foi isso que aconteceu com a sua esposa, após uma visita dela ao presídio. Dias depois a mulher se suicidou.
Enquanto Maria mexia suas pernas involuntariamente, em sinal de completo nervosismo, as do Silencioso eram algemadas, tornando seu caminhar lento e penoso.
Sua cela, ou melhor, a sua morada nos últimos treze anos, era a última daquele corredor estreito. Não estavam completamente sós. Outras almas condenadas por seus crimes dividiam aquele espaço minúsculo onde mal cabiam suas camas junto de suas culpas. Silencioso tinha um nome. Chamava-se Ethan Lewis. Maria soube quando leu sobre ele nas manchetes, porém o apelido adquirido se tornou mais forte que o nome de batismo.
O cinza das paredes passava pelos olhos amendoados de Ethan. Olhos cansados, junto com sua musculatura já sem vigor. Os anos haviam chegado para o homem, e o tempo levou qualquer resquício do dia em que se tornou campeão de rodeio pelo terceiro ano consecutivo, prêmio que lhe permitiu realizar o sonho do seu velho pai e treinador, o de possuir o seu haras e assim poder ser seu próprio patrão. Ethan estava orgulhoso naquele dia. Uma fivela nova adornava sua cintura e um cheque graúdo possibilitaria dar início ao sonho que não demorou muito para se concretizar.
— Preciso informar aquilo tudo que já sabe? — o oficial que conduzia Ethan até a sala de visita fazia a pergunta.
— De forma alguma, Michael.
Ficar nesse lugar por tempo demais possibilitava essa proximidade com o oficial. Michael Walters trabalhava na função fazia mais ou menos uns treze anos e estava no corredor da morte há seis. Não é raro que em determinado momento algo próximo a uma amizade surja entre esses homens, mesmo que estejam em lados opostos. Era o que acontecia entre os dois, além de que Michael era fã de rodeios e sabia muito bem quem Ethan Lewis havia sido no passado. Era ainda uma criança de seis anos quando Lewis derrotou seu adversário e se consagrou campeão daquele rodeio. Michael, junto de seu pai, conseguiu a proeza de tirar uma foto ao lado do seu ídolo. Quando Ethan apareceu nos jornais e no noticiário da televisão, o jovem Michael estava em uma fase difícil de sua vida, sem saber muito bem que rumo tomar. A namorada havia anunciado uma gravidez indesejada, o que forçou o rapaz a mudar seus planos. Um trem desgovernado passou por cima de seu corpo, tanto que nem deu importância ao que estava acontecendo com um dos seus ídolos juvenis. Apenas lembrou quem era aquele homem quando já estava trabalhando como carcereiro anos depois, naquela penitenciária.
— Muito bem.
Um barulho alto e metálico ecoou, fazendo Maria pular de susto em sua desconfortável cadeira. Seu movimento fez com que a caneta que levava caísse ao chão e, dessa forma, perderia a chegada do seu entrevistado. Quando enfim a busca pelo objeto que tanto precisava terminou, viu diante de seus olhos castanhos aquele homem com marcas de expressão bem pronunciadas e uma barba rala cheia de pelos grisalhos, tal como o cabelo mal cortado. Porém o que mais chamava a atenção eram os olhos que demonstravam mais do que um simples cansaço. E se perguntou: "Cadê o monstro horroroso? O Diabo é esperto e me enviou essa pessoa que em nada se parece com o assassino frio e meticuloso que matou aquela jovem conterrânea". Os olhares deles se cruzaram, e então Maria gelou. Silencioso, no mais absoluto silêncio, apenas observava e Maria sentia que era isso mesmo que ele queria: observar.
O homem se moveu e a garota, cada vez mais assustada, sentiu todas as moléculas do seu corpo querendo fugir dali e correr para a proteção dos braços do namorado. Conheceram-se na época da universidade. Maria Santiago, uma jovem estudante de comunicação, e Diego Joaquim Darín, aluno de engenharia civil. Diego tinha ascendência mexicana, porém havia nascido em solo estadunidense. Um rapaz meigo, educado e inteligente. Não muito mais alto que Maria. O que mais a encantava nele era a cor de seus olhos, quase pretos, e a sua voz macia. Quando ele cantava, Maria parava o que estava fazendo apenas para apreciar. O rapaz sentia-se constrangido, mas não parava, pois sabia que a namorada gostava. Maria só viria para a "América" com seis anos, quando a sua tia se casou com um americano e eles adotaram-na.
Rosa Santiago, nome de solteira, e posteriormente Rosa Santiago Braxton, nome de casada. Kevin Braxton e Rosa se conheceram quando Kevin, recém-formado em medicina, afiliou-se em movimentos humanitários e foi parar num vilarejo nos confins do México, local em que Rosa vivia com sua família, se virando como podia dando aula. Depois da morte da irmã mais velha, mãe de Maria, tudo ficou mais difícil para aquela família. A mãe, uma mulher ignorante e sem estudo, mal conseguia olhar para a filha "de barriga". Filha que tanto batia no peito e explanava o seu orgulho por ter ido para os Estados Unidos e conseguir lhe enviar praticamente todo o seu dinheiro. Essa parte aquela mulher desconhecia. Não sabia das privações e humilhações a que a filha se sujeitava para lhe enviar dinheiro todo mês. E quando a quantia não era satisfatória, a garota tinha de ouvir desaforos proferidos aos berros do outro lado do telefone.
Sua tia, Rosa, vendo tudo que sua irmã mais velha passara, quis possibilitar à sobrinha uma vida diferente da que sua irmã teve e, dessa forma, junto de Kevin, levou a menina consigo para o mais longe possível de um destino igual ou pior ao da mãe, e se esforçou para que a menina conseguisse avançar nos estudos. Maria seguiu sempre forte e determinada. Tinha apenas um ressentimento da tia, por ela nunca lhe ter falado sobre a mãe e aquilo a entristecia, mas também não podia negar que recebera muito amor em troca. Então, seguiu relevando, até que parou de se importar e deixou de questionar.
Silencioso segurou entre suas mãos, de dedos longos e finos, o objeto que possibilitaria a comunicação com a jovem jornalista. Colocou o telefone entre o ouvido e a boca e esperou que a menina repetisse o gesto. Maria levou alguns segundos para entender o que deveria fazer. Apesar de ter visto cenas assim em diversos filmes, documentários e noticiários, fazer parte desse contexto a fez estacar. Ethan esperou paciente, sem demonstrar qualquer reação que fizesse a moça sair correndo dali sem explicação, ou pior, sem poder ouvir o som de sua voz.
Maria, vendo o objeto no rosto do homem e outro idêntico ao seu lado, segurou-o entre suas mãos trêmulas, respirou fundo e encaixou da mesma forma que o Silencioso fazia do outro lado do vidro. E então uma voz diferente de tudo que imaginou dançou por seu cérebro e Maria arrepiou-se.
— Boa tarde, senhorita Santiago. Obrigado por ter vindo.
Enquanto processava aquelas palavras, flashes da última semana brigavam por espaço dentro de sua mente. Estava sentada diante de sua mesa na redação do jornal El Dourado, com pilhas e mais pilhas de artigos e recortes sobre o homem que estava esperando a sua execução há vinte anos.
— Não consigo entender por que tanta demora nesse processo! — Maria nunca havia se deparado com algo tão complexo.
— Os advogados entram com recursos, e com isso o processo se arrasta, fora que nosso sistema judiciário está longe de ser perfeito.
— Fico imaginando o que se passa na cabeça dessa pessoa que espera a morte por todos esses anos. Deve ser desesperador.
— Para quem?
— Como para quem?
— Acho que deveria pensar na família que esses desgraçados destruíram. Imagina se fossem executados quase que imediatamente, eles têm que pensar na merda que fizeram sim! E sofrer as consequências.
— Acredito que devam, Vincent, mas vinte anos! É muito tempo, ele passou praticamente a vida inteira atrás das grades.
— Ainda acho pouco.
— Credo, Vincent, onde está a sua compaixão?
— Com as famílias que perderam os seus entes queridos.
Essa era uma discussão perdida para Maria. O repórter com quem dividia a ilha estava naquela idade em que não aceitava argumentos contrários aos seus. Pode-se dizer que Vincent nunca aceitou e, talvez por isso, nunca avançou em sua carreira e permanecia escrevendo sobre os problemas do bairro.
Em casa, a sua busca por informações não acabava. Descobriu que a jovem que fora assassinada com um tiro no peito vinha de um vilarejo bem próximo ao seu. Porém, sobre quem a garota era de fato havia poucos dados, tudo estava concentrado em Ethan Lewis, o grande campeão dos rodeios nos anos de 1974, 75 e 76 e depois um dos maiores criadores de cavalos para competições. A fortuna que Lewis havia acumulado ao longo dos anos era incalculável.
— Fico me perguntando quem ficará com tudo isso. — Maria seguia intrigada com sua pesquisa.
— Talvez vá para algum parente. O homem não tinha filhos? — Diego sempre se mostrava atento e interessado em tudo que a namorada trazia de novo.
— Teve, mas morreu ainda criança, acho que em um acidente... — Mexia em seus papéis. — Onde está o artigo que li sobre isso?
— Amor? Para um pouco, descansa! Tudo vai dar certo.
— Di, você não entende como isso é importante para o jornal e para mim. Eu fui a escolhida entre os milhares de repórteres do nosso país!
— Muito estranho, não acha?
— Demais! Por isso todo esse meu nervosismo. Estou a ponto de explodir!
E Maria estava mesmo. Seu coração saltitava ali diante de Silencioso. As palavras teimavam em não formar um som para retribuir a saudação que o homem emitiu de modo tão firme e decidido. A voz dele era suave e constante. Imaginou uma voz grave e alta, mas era o oposto do que seu imaginário criou.
— Boa tarde, Silencioso... — Ethan sorriu ao escutar o apelido. Maria arregalou os olhos, incrédula do que havia proferido. — Perdão, Sr. Lewis.
— Difícil não sucumbir a esse apelido que me foi dado. Confesso que é melhor ser chamado assim do que pelo número.
Ethan apontou para suas vestes. Usava uma camiseta branca com números grafados em preto. Era a sua identificação dentro daqueles muros. As calças eram de sarja bege de elástico na cintura. Seu físico estava diferente do dia em que chegou ali. Ethan, no auge dos seus 57 anos, estava muito mais magro do que quando entrou, aos 37.
Ethan Lewis foi um dos jovens peões mais belos que as arenas viram durante os oito anos em que competiu profissionalmente. As mulheres praticamente saíam aos tapas em busca de sua atenção. Porém, apenas uma teve o privilégio de ocupar o seu coração, mente e alma. Caroline Anderson, este era o nome da mulher que tinha tomado Ethan de todas as outras.
— Não se sinta acanhada por conta disso. Mereço esse apelido, afinal nunca falei com ninguém da mídia antes — Ethan prosseguiu, percebendo o constrangimento na garota à sua frente.
— Posso lhe fazer uma pergunta, Sr. Lewis?
— Acredito que esteja aqui para me fazer várias.
— É... Sim — Maria respirou, estava passando atestado de burrice para aquele homem, era óbvio que estava ali para lhe fazer perguntas.
— Desculpe, não quis ser rude, acho que perdi o jeito de conversar com outras pessoas.
— Por que eu?
— Maria. ¬— Ethan observou a jovem atentamente. Ao ouvir seu primeiro nome, Maria mudou totalmente a expressão do seu rosto. — Chegaremos nessa parte, mas não será hoje.
— Gostaria que não me chamasse assim. — Calafrios percorreram seu corpo quando aquele homem disse de forma tão íntima o seu primeiro nome. Aquilo a incomodou profundamente.
— Como queira. Esse encontro será mais uma forma de apresentação entre nós, até porque temos pouco tempo e para que eu possa lhe contar o que precisa saber sobre esse crime que me colocou aqui, teremos que ter vários encontros. Está tudo bem para você?
— Certamente.
— Muito bem. Falarei com o meu advogado para que ele possa providenciar uma forma de nos falarmos em um local apropriado, e assim consiga reter tudo que lhe disser. É muito importante isso... — Ethan era incisivo, ponderado e intimidador, a forma como falava com a jovem demonstrava que estava no controle e que ela nada poderia fazer para mudar aquilo — ... Que consiga transcrever exatamente da forma como eu contar.
Maria apenas lhe observava, sem saber o que dizer. O caderno de couro estava ali na sua frente, com todas as perguntas que ensaiou naquela semana com seu chefe, e não adiantou de nada. Ethan falaria — da forma que ele desejava e não como Maria presumia.
— Até semana que vem, Srta. Santiago.
Ethan devolveu o telefone para seu local de origem, sem dar chances de Maria sequer pensar em argumentar. Não pôde vê-lo chegar, mas o via saindo. Alto. Muito mais do que imaginou. Braços longos, caídos ao lado do corpo esguio. Ele não virou para trás. Ela viu a porta de metal barulhenta se fechando. Recolheu suas anotações, assinou o mesmo livro de horas antes e deixou o prédio cinza. No estacionamento, Diego lhe aguardava ansioso para saber tudo que havia acontecido atrás daqueles muros rodeados de arame farpado.
xXx
Meus amores esse foi o primeiro encontro entre Maria e Silencioso. E aí me conta quem aqui estão tão ansioso quanto Maria em saber o que ele tem para dizer? Eu estou ansiosa em saber o que vocês estão achando.
Se estiverem gostando que tal dar aquela estrelinha também?
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro