Capítulo 19
Maria entrou na sala destinada à entrevista de cabeça erguida, encarando Silencioso, sentado como das outras vezes, com as mãos presas pelas algemas. O estômago dela revirou ao ver um sorriso saindo daqueles lábios. E foi então que percebeu que ele estava com o rosto todo machucado. Nesse momento constatou que não era uma pessoa boa. Não teve pena, sentiu que aquilo que estava estampado na cara do homem era muito pouco.
No fundo da sala, no canto direito, havia um guarda atento à movimentação. O homem observava calado cada movimento dela. Se Ethan não estivesse tão ansioso por esse último encontro talvez tivesse percebido, como o seu amigo Michael percebera, que havia algo incomodando a moça sentada na cadeira de metal gelada.
— O que aconteceu com você? — Maria sentiu que deveria fazer essa pergunta, não por se importar, mas por saber que era o certo a fazer.
— Me meti em uma briga. Já estou melhor.
— Tudo bem.
Com essa resposta, Ethan perceberia a mudança de comportamento da garota. Na última vez que estiveram diante um do outro podia jurar que havia até um lampejo de amizade, e agora sentia que tinham voltado ao primeiro encontro. O muro estava ali.
— Parabéns! — Ethan voltou a se pronunciar.
Maria, quieta e sem encarar Ethan nos olhos, arrumava o gravador sobre a mesa, escutando as palavras que ele dizia com entusiasmo. Um arrepio atravessou sua espinha. Uma das fitas que trazia consigo caiu ao chão, e então olhou dentro dos olhos amendoados do homem.
— Pelo quê? — A voz saiu mais ríspida do que ela gostaria. Estava difícil de disfarçar.
— Essa aliança no seu dedo. Não estava aí da última vez. Estou te dando parabéns pelo noivado, espero que ele seja um homem bom para você — e ele estava sendo totalmente sincero quanto àquilo.
— Sr. Lewis, agradeço, mas minha vida particular não é o assunto aqui. Podemos começar? Hoje é nosso último encontro e espero que lembre que me prometeu responder a todas as perguntas no final. — Maria voltou a se concentrar nos preparativos para poder ligar o gravador e terminar logo com tudo aquilo.
— E farei — a voz de Ethan mudou, havia perdido a alma naquele instante.
— Como são várias, e não sei o quanto ainda falta me contar sobre a sua vida, vamos começar o mais rápido possível. Ele poderia sair? — Maria apontou com a cabeça para o oficial no fundo da sala.
— Infelizmente não. — Ethan voltou-se para Michael, estático, encarando-lhe de volta. — Não se preocupe com ele, nada do que será dito sairá daqui. Confio nele. — E voltou a olhar Maria com tristeza.
— Se quer assim... Não me importava de ficarmos sozinhos. — Realmente Maria não se importava, não tinha mais medo daquele homem, o que Maria sentia era outra coisa.
— Fico feliz em saber disso.
— Não fique. — Maria apertou o botão de gravar e o colocou diante de Ethan, que seguiu com a sua história.
Ethan não tinha como saber, mas a mudança do comportamento de Maria vinha da visita que ela havia feito no dia anterior à sua tia. Ela tentou adiar, estava concentrada em seu texto e no que aconteceria nesse último encontro com o homem condenado à morte. Sua curiosidade seguia incontrolável para saber o motivo que levou Silencioso a dar dois tiros no peito da amante. Saiu da redação do jornal e foi direto para a casa da tia, apenas avisando Diego que aquela noite no jantar não estariam juntos.
O ônibus lotado. Final de expediente, as pessoas ansiavam por chegar até suas casas, tirar as roupas, tomar um banho demorado, sentar confortavelmente em seus sofás, assistir televisão e encher a barriga de comida. Algumas pessoas conseguiriam fazer tudo isso, outras não. Maria estava no segundo time.
Rosa esperava a sobrinha. Suas mãos tremiam e transpiravam. Estava nervosa, deixando o marido preocupado. Aquela condição poderia fazer com que tivesse uma recaída. A mulher tinha que ser forte, a conversa deveria ter acontecido há muitos anos quando aquela carta chegou aos seus cuidados. A garota ainda era muito jovem e a dor sentida em seu peito pela ausência da irmã querida ainda estava latente. A justiça tinha sido feita, e dessa forma achou que sempre permaneceria no esquecimento. Mas agora, diante dos últimos acontecimentos, sabia que a hora era aquela. Tinha que ser de seus lábios. Tinha que contar a sua versão primeiro.
— Caroline não voltaria, essa era a única certeza dentro do meu peito. Meu pai faleceu pouco tempo depois que ela partiu e fiquei completamente sozinho, até que ela surgiu. Como bálsamo no meio desse mar de tragédias...
Ethan seguia com sua história para o ponto em que conheceu Gabriela Hernandez. Maria tinha seus olhos fixos nos dele e dessa vez foi ele quem se sentiu incomodado. Remexia em sua cadeira. Os pulsos doíam com o contato das algemas. Pensou em desistir. Michael o conhecia bem demais para perceber que o homem não estava confortável. De novo veio em sua mente a cena dele com as mãos ensanguentadas contra o concreto de sua cela. O sangue seco ainda permanecia lá, apenas sairia quando outro detento ocupasse aquele lugar.
Maria escutava aquela história da mesma forma que ouviu aquela que sua tia tanto evitou contar, e que na noite anterior resolveu trazer à tona. Foi recebida pelo tio. Normalmente, ele tinha um sorriso no rosto que contagiava as pessoas, um homem calmo e de fala mansa. Maria, quando morava ali, passava horas conversando com ele, sentados na varanda. O tio bebendo sua cerveja e Maria comendo jujubas, um vício que mantém até hoje. Dessa vez, não houve um sorriso e o coração da garota se comprimiu.
— Como ela está?
— Ansiosa e nervosa, não sei se isso que ela quer fazer é uma boa ideia. Maria, minha filha, peço que tenha paciência, tente se controlar ao máximo. A situação dela não é nada boa.
— Nossa, tio! Está me deixando aflita com tudo isso.
Maria seguiu para o quarto principal. A tia aguardava sentada na cama. Nas costas, vários travesseiros, e os pés enrolados em uma manta. Apesar do calor que fazia, sentia frio nos pés. Isso era obra do nervosismo. Nervosismo que também conseguia ver em Ethan. Ele passava as mãos alternadamente sobre o local em que as algemas lhe marcavam. De tanto fazer esse gesto, Maria pôde ver as suas mãos tomadas pelos machucados. Suas últimas cicatrizes.
— Eu estava no meu canto usual, no final do balcão, terminando a minha cerveja, quando eles passaram por mim. O rapaz a puxava pelos braços e ela a todo custo tentava se soltar. Não conseguia entender com exatidão o que falavam, apenas escutei um "não" sendo dito aos berros e logo em seguida aquele animal lhe batendo. Não pensei duas vezes e lhe meti um soco na cara...
Ethan já não olhava Maria nos olhos. Se seguisse com ela o encarando não conseguiria contar tudo que precisava. E foi avançando nos anos que passaram juntos. O quanto ela era especial. Delicada, amorosa, generosa, divertida e sorridente, e como ela tinha lhe trazido de volta à vida. Então, algo inédito aconteceu. Maria deu um soco na mesa. Michael deu alguns passos em sua direção. Ethan, com as mãos presas, faria um sinal para o amigo permanecer onde estava.
— Se ela era tão incrível como você está descrevendo, por que a matou? Sabia que ela tinha família? Tinha pessoas que se importavam com ela! Ela tinha uma filha!
A tia deu sinal para que a sobrinha sentasse do seu lado na cama. Maria colocou a bolsa pesada no canto perto da porta e seguiu para o lugar indicado. Assim começou a sua explanação sobre o passado daquela menina.
— Está sabendo de tudo? — Ethan a encarava.
— Estou — Maria tinha raiva no olhar.
— Desde quando?
— Minha tia me contou ontem. Eu tentei te escutar até o final, mas estou com tanto nojo de você que... que... quero que você morra!
Maria levantou-se bruscamente. Se a cadeira não estivesse pregada ao chão teria tombado. A garota andou até a porta que separava aqueles dois mundos e olhou pelo vidro. Um corredor vazio foi o que encontrou. Respirou fundo algumas vezes, deixando o vidro embaçado, e então seus olhos tornaram a encontrar os de Ethan.
Lágrimas escorriam pelo rosto daquele homem machucado. Michael, sem entender o que estava acontecendo, permaneceu em posição de alerta. Ethan abriu e fechou sua boca várias vezes, e em todas Maria apertava seus olhos tão parecidos com os dele.
— Fala alguma coisa, seu covarde desgraçado! — Maria berrou o mais alto que conseguiu e avançou.
Michael, por mais alerta que estivesse, não conseguiu explicar a agilidade daquela garota que em menos de um segundo estava debruçada naquela mesa a centímetros do rosto de Silencioso.
— Senhorita! Preciso que se afaste. — Michael se aproximou, ainda sem agir, estava confuso com tudo aquilo.
— Não tenho medo dele — Maria encarou o oficial.
— Não é com ele que estou preocupado nesse momento. Por favor. — Michael apontou para a cadeira. — Queira se sentar ou teremos que terminar por aqui.
Maria encarou os dois. Os olhos faiscavam de raiva. Seu corpo estava rijo. Seus pelos ouriçados. Se Maria fosse um animal selvagem estava pronta para dar o bote. Ethan sabia disso. Michael também.
— Ethan Lewis! Sr. Lewis! Silencioso! Tantos nomes, mas sabe qual prefiro? — Maria fez uma pausa, sentando-se novamente em sua cadeira. — Assassino.
— Talvez seja melhor encerrar por aqui... — Michael não conseguiu continuar a frase, Maria seguiu com sua acidez.
— Me lembro que, dias antes de te conhecer, até discuti com um colega de trabalho que é a favor da pena de morte. Falei em compaixão. Quer saber? Meu colega tem razão, o que acontece aqui é muito pouco para o que vocês fizeram...
— Eu não sabia... — Com muito esforço, a voz de Ethan começou a voltar. — Só soube quando estava aqui, preso. Eu ia chegar nessa parte, não era para ter sido assim.
— Era para ter sido como? Você mentiu o tempo todo para mim! — Maria pressionava um dos seus dedos indicadores no tampo da mesa, quando na verdade ela queria desferir socos no homem à sua frente.
— Nada do que contei aqui foi mentira. — Ethan tentava se justificar mesmo sabendo que tudo aquilo poderia ser em vão.
— Não? Se você sabia de tudo, por que só agora?
— Do que adiantaria? Estou preso. Condenado à morte. O que poderia oferecer? — Ethan tornou a encarar Maria, buscando dentro de seus olhos alguma resposta. Encontrou o vazio.
— Tem razão, nada. Quando você a matou perdeu qualquer direito.
— Não fui eu quem a matou!
Olhos se arregalaram dentro daquela sala intimidadora. Tanto Maria quanto Michael estavam confusos com a revelação. Michael estava mais perto do que o permitido, e Maria, que antes havia jogado seu corpo para trás na cadeira, voltou com ele para a frente, esperando o término daquela explicação.
— Maria... Caroline voltou e Gabriela foi embora. Não se despediu, simplesmente partiu da noite para o dia. Deveria ter me informado sobre ela, mas não fiz. Voltei para minha vida confortável ao lado da minha esposa. Quase dois anos depois ela voltou e tudo aconteceu...
— Ela voltou, seu desgraçado, para contar que teve um filho com você... Ou melhor, uma filha. Eu!
Maria não aguentou mais. O choro saiu do peito e tomou conta de seus olhos. Ethan também olhava a menina com lágrimas escorrendo pelo seu rosto. Desejava abraçá-la. Ter a filha pela primeira vez em seus braços. A dor de saber que nunca poderia abraçar e aninhar aquela moça em seu corpo lhe dilacerava.
— Soube disso anos depois, minha filha...
— Não me chame assim! Você não é meu pai! — apontava o dedo em riste para o homem sentado à sua frente. — Se não foi você, quem foi?
— Gabriela cometeu um erro quando voltou. Deixou que Caroline soubesse. Há coisas que apenas ela sabe, o que sei é que os disparos foram feitos um pouco antes de eu chegar ao quarto do motel. Arrombei a porta e vi o corpo de Gabriela esvaindo em sangue e Caroline com a arma apontada. Ela deve ter contado. Não entendo por que ela fez isso. Não entendo também por que Caroline a matou. Talvez soubesse que ficaria com a garota. Anos se passaram até que, num belo dia, Caroline veio me visitar. Foi quando ela me contou sobre você. Foram anos tentando te encontrar. Quando achamos, você estava bem. Não podia estragar isso.
— Ethan? Por que assumiu a culpa?
Michael interrompeu. Não conseguia entender o motivo daquele homem ter feito tal ato. Assumir a culpa de um assassinato sabendo que casos assim levam à pena de morte naquele Estado.
— Por quê? — Maria tornou a questioná-lo diante do silêncio que se instalara.
— De certa forma, sempre fui o responsável pela sua morte. Não apertei o gatilho, mas ela só teve aquele destino por minha culpa. — Ethan tornou a baixar a cabeça para logo em seguida levantá-la. — Não devia ter lhe trazido para o meu mundo. Eu sempre soube que em algum momento ela teria de ir, e sabia que ela gostava de mim. O amor que sentia por Caroline não era algo bom ou mesmo saudável. Ela também havia sido vítima de minhas escolhas. As duas nunca deveriam ter me conhecido.
— Sabe o que você fez quando tomou essa decisão? — diante do silêncio de Ethan, Maria prosseguiu. — Você tirou de mim a chance de ter um pai. Um pai de verdade, de sangue. Aquele pai amoroso que Peter teve. Por mais amor que meus tios me deem, e sou muito grata a eles, eu poderia ter tido você. — Maria apontaria agora em sua direção, de forma branda.
— Se eu soubesse de você, Maria, jamais teria tomado essa decisão. Quando Caroline me contou, não soube raciocinar direito. Fiquei transtornado. Me bateram, fiquei internado. Quando saí da enfermaria era tarde para fazer qualquer coisa. A única pessoa que poderia me tirar daqui estava morta. Caroline cometeu suicídio. A arma era minha. Continha minhas digitais. Gabriela era minha amante. O cenário estava montado e eu estava banhado com o seu sangue. Havia apenas três pessoas naquele quarto e duas delas estão mortas e enterradas.
Olhos de pai e filha se colidiam. Suplicavam por uma chance, aquela que não viria mais. Ele já a amava mesmo antes de conhecê-la. Soube que estava certo quanto a esse amor quando colocou seus olhos pela primeira vez através daquele vidro sujo de digitais e viu os olhos de sua juventude o olhando de volta. Ela tinha até as sardas que os anos levaram colocando em seu lugar rugas de tristeza, desespero e incapacidade. Ela enfim entendeu o que era toda aquela confusão de sentimentos gerados nesses encontros. O sangue reconheceu de onde havia vindo e a alma machucada precisava ser curada e ela sabia que somente ele tinha essa cura.
— Eu vou ser mandado embora por isso. — Michael, ignorando o protocolo, retirou as algemas dos pulsos de Ethan. — Se você quiser, garota, pode chegar perto... Sejam breves. — Seguiu em direção à porta para vigiar se vinha alguém e também tentar dar um pouco de privacidade aos dois.
— Não sei nem o que fazer... — Maria tremia.
— Apenas me abrace.
xXx
Amores vou deixar os comentários por conta de vocês. Um abraço e um beijo no corações de vocês.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro