Capítulo três
— Ela é maravilhosa — digo, o rosto parcialmente escondido pela caneca fumegante de chá.
Sentada no sofá na sala da casa de minha tia nessa tarde de domingo, alcanço a mão da minha prima em um aperto confortador, assistindo sua namorada agachada ao lado da Tia Cida em uma conversa sorridente que mais parece uma troca de segredos. Viviane ao meu lado suspira, ainda um tanto nervosa, mas não consegue deixar o sorriso longe do seu rosto.
— Ela é — concorda com um sussurro.
O almoço acabou há poucas horas e não foi difícil continuar a conversa. Luana é uma garota incrível e é inegável a felicidade das duas, ainda que o relacionamento seja recente. Não tenho certeza do que minha prima estava com medo, na verdade; ela nunca foi de ficar nervosa assim. Minha tia olha para a menina como se fosse uma preciosidade; namorada devidamente aprovada.
Sorrio ao ver a rápida e muito significativa troca de olhares entre as duas, um brilho apaixonado escorrendo de uma a outra. Apoio a caneca na mesinha de centro e me levanto, atravessando o pequeno cômodo até alcançar minha tia.
— Preciso de ar fresco. O que tu acha? Vamos dar uma volta e deixar essas duas aqui cuidando das louças? — sugiro, e recebo protestos falsos do casal que claramente quer algum tempo sozinho.
— Tá um dia bonito pra ir no parque — minha tia concorda, apoiando a mão na minha.
Após uma rápida conferência de que tenho tudo que ela possa precisar, estendo o braço para se apoie em mim e se levante da cadeira com mais dificuldade do que deveria. Alcançamos a porta em uma caminhada muito lenta, levamos três vezes mais tempo do que o normal para chegar ao parque e, quando o fazemos, sei que ela precisa de um descanso. A curta caminhada é o suficiente para que seja difícil de ela respirar. Ofereço uma garrafinha de água, que ela aceita, mas recusa o broncodilatador.
— Me conta, menina — pede, segurando minha mão. — Aquele bonitão, como está? E Rebecca?
Solto uma risada baixa, acomodando-me ao seu lado. Ela ergue as sobrancelhas, sugestiva, e balanço a cabeça em negativa.
— Rebecca está bem, vai ficar por lá mais alguns meses. Está, obviamente, arrumando mais problema pra vida dela — brinco, mesmo que seja verdade. Ignoro por completo a outra pergunta: — Essa época de final de ano é uma loucura. Tem menos de um mês de aula até o final do semestre e aquele abençoado do meu coordenador acha que dá para fazer milagre com os alunos a essa altura do campeonato.
— Ah, como se você não gostasse dessa confusão toda — implica, sorrindo e meneando a cabeça. — Desde pequena, não podia ver uma coisa quebrada que queria consertar. Reclama, reclama, reclama, mas não tem nada que te faça mais feliz do que cuidar dos outros. — Ela aperta meus dedos, os olhos escuros presos aos meus. — Quem está cuidando de você, minha filha?
Desvio o olhar a dispenso a pergunta com a mão.
— E como a senhora está? — questiono, passando os dedos pelo cabelo que ela insiste em manter pintado de loiro nas pontas. Ano passado era rosa. Só Deus sabe o que vai ser no próximo. Se tiver próximo.
— Velha — ela responde com uma tossida. — Fazendo hora extra nesse plano.
— Tia! — repreendo, e é a vez dela de me dispensar com a mão. É inegável de quem peguei essa mania.
— É verdade, sabe disso. Sua prima pode tentar negar, mas não você, Jéssica. Nunca você.
Arrumo a postura, sentindo nos meus ossos que não vou gostar do que quer que ela tenha a dizer a seguir. Tenho, descaradamente, postergado o assunto que sei que ela quer trazer à tona desde a última consulta com o médico. Por muitos anos, o diagnóstico de doença pulmonar obstrutiva crônica, essa mistura de bronquite com enfisema pulmonar, não foi uma sentença de morte. Não há cura, mas o tratamento certo ameniza os sintomas, ouvimos tantas vezes. As últimas consultas, contudo, não foram tão promissoras. O corpo dela está cansado, o coração está fraco, apesar de mal passar dos sessenta anos.
— Preciso te pedir uma coisa — declara, e fecho os olhos, sabendo o que vem por aí. Antes mesmo que qualquer palavra saia da sua boca, interrompo-a:.
— Não — decreto, acariciando seus dedos. — Já conversamos sobre isso.
— Já — concorda. — E você sabe que está errada.
Nego com a cabeça e recebo dois tapinhas fracos no dorso da mão.
— Você estava lá, querida. Ouviu o médico. Esse pode ser meu último Natal e não tem nada que você possa fazer quanto a isso.
— Tia...
— E não quero passar meu último Natal no hospital. Você conhece sua prima, sabe que qualquer tosse que dou, é para lá que ela me arrasta. Viviane tem certeza que algum milagre vai acontecer, mas Jéssica... — Ela aperta meus dedos. — Você sabe que isso não é verdade.
Abaixo a cabeça, recusando-me, mais uma vez, a aceitar essa insanidade. Não porque acho que ela esteja errada, não está. Mas porque ela tem razão: talvez meu maior pecado seja não saber a hora de desistir de alguém, e não estou pronta para desistir dela, por mais egoísta que isso seja, por mais que eu saiba que há tempos não há remédio que aplaque sua dor, por mais que eu saiba que algumas coisas simplesmente não podem ser consertada — os pulmões dela entram nessa categoria.
— E o que tu quer que eu faça, tia? Diga para Viviane que a coisa certa é deixar a mãe dela morrer em casa ao invés de te levar pro hospital na próxima crise que tiver? Que a gente não faça todo o possível?
— Mas você já fez todo o possível, Jéssica. Vivi não sabe o que é sofrimento na vida, mas você sabe. Ela espera finais felizes, sempre, e às vezes eles só não são possíveis. Às vezes a gente não tem as coisas da forma que espera, a vida nem sempre é justa. Você sabe disso.
Cada palavra é repleta de um significado que gostaria de não entender, mas entendo. Entender, contudo, não ajuda em nada. O que ela está me pedindo é algo que não posso fazer.
— Vamos aproveitar o dia e discutimos isso mais tarde, tudo bem?
Ela assente, e um sorriso breve desponta em seu rosto. No meu, contudo, não.
Estou com a mochila nas costas, pronta para ir embora depois de acomodar minha tia na cama para descansar depois da breve caminhada que drenou boa parte das suas energias quando desvio o caminho e bato na porta do quarto de Vivi. Sou recepcionada com um sorriso animado e dois tapinhas na cama. Vou até ela e Viviane imediatamente apoia a cabeça no meu colo. Os brincos enormes que sempre usa embolam no cabelo cortado na altura do queixo por um instante, mas não demora para que ela se acomode e me ofereça seus olhos brilhantes arregalados em expectativa.
Tomo um segundo para apreciar o quanto somos parecidas; não seríamos mais se fôssemos irmãs. A mesma cor de pele, os mesmos olhos escuros, as mesas unhas longas demais. Acaricio seu cabelo, toco de leve o piercing na ponta do seu nariz e me preparo para o que sei que preciso conversar com ela. Antes que eu tome coragem o suficiente para tal, Viviane desembesta a falar:
— Não lembro a última vez que estive feliz assim, Jessi — murmura, e o cintilar de lágrimas nos seus olhos me quebra mais do que imaginei que faria. Com um suspiro, ela continua: — Desde que me entendo por gente, não me lembro de ter conseguido esquecer dos problemas que nem faço com quando estou com ela. É como se o mundo inteiro deixasse de existir, como se tudo ficasse bem, porque eu finalmente estou feliz. Você sabe o que é se sentir assim?
Aceno com a cabeça. Eu sei, realmente sei. Às vezes, gostaria de não saber.
— Agora a gente só precisa começar a organizar o Natal.
— Falta um mês — concordo.
Viviane desembesta a falar, animada, recitando receitas, decorações, presentes, e limito-me a continuar o carinho delicado. Quando encontro uma brecha no seu monólogo desenfreado, disparo:
— O que acha de convidarmos o Victor esse ano?
A sobrancelha arqueada é a única resposta ao absurdo da sugestão. O irmão mais velho de Viviane nunca esteve por perto. Mudou de estado, esqueceu das duas, jamais demonstrou qualquer interesse na mãe. Não fez parte da vida dela em nenhum momento; quando vim morar aqui, convivi com ele por poucos anos antes que sumisse no mundo e mal mandasse notícias. Ele não estava aqui quando Vivi nasceu, não estava aqui quando o pai dos dois morreu, não estava aqui quando a mãe começou a adoecer, não estava aqui quando a situação piorou; não esteve aqui por mais que ligações esporádicas. Se não por posts em redes sociais, é provável que nada soubéssemos da sua vida, que sequer fôssemos capazes de reconhecê-lo.
— Pra quê? — ela pergunta, bufando. — Ele estar aqui ou não, não faz qualquer diferença há anos. E não é como se Victor fosse aparecer, de qualquer forma.
Arrasto o dorso do dedo pela sua bochecha.
— Talvez ele apareça, pela sua mãe. — Diante do seu desviar de olhar e tentativa de sair do meu colo, insisto: — Vivi, por favor. Eu sei que tu não quer aceitar em que pé as coisas estão, mas pode ser a última oportunidade de vocês três celebrarem um Natal juntos.
A risada seca que escapa da boca dela talvez devesse ser alerta o suficiente para o que vem a seguir, mas não é. Viviane se levanta do meu colo e joga os ombros para trás, empinando o queixo e olhando-me com uma aspereza que não consigo reconhecer.
— Você realmente precisa parar de se comportar como se ela fosse morrer amanhã — imputa.
Estendo a mão para alcançar a dela, mas sou rejeitada quando bruscamente a puxa de mim. Isso não me impede de continuar:
— E tu precisa parar de se comportar como se nada estivesse acontecendo, Vivi.
Tento colocar todo o amor e cuidado que sinto pelas duas na minha voz, mesmo sabendo que isso não tira o peso das palavras. Não tira. Parece piorar a situação, porque o olhar dela se torna raivoso como poucas vezes vi. Seu lábio tremula e um dedo vem em riste em minha direção. Quando fala, é entredentes e venenoso:
— Não é porque você odeia sua mãe que precisa tentar matar a minha, Jéssica.
Minha boca cai aberta por um instante, mas Viviane não fica para ver. Levanta-se da cama e some do meu campo de visão. Mordo a parte de dentro da bochecha, sentindo o nariz arder e a garganta arranhar, recusando-me a deixar qualquer lágrima escorrer; não me lembro a última vez que chorei, não começarei agora. Ouço-a andar de um lado para o outro no quarto, resmungando coisas que pouco entendo; ouço um palavrão aqui, outro ali, mas minha atenção está voltada para a parede do quarto que encaro como se fosse a única coisa capaz de me impedir de desabar em um milhão de pedaços.
Sinto a cama afundar atrás de mim um instante depois, uma mão em meu braço direito, um queixo apoiado em meu ombro esquerdo.
— Jessi, eu não...
— Tu quis dizer cada palavra, Vivi — interrompo, cobrindo a mão dela com a minha, ainda sem olhar na sua direção. — E sei que não quer pensar nisso, eu também não quero. Mas eu quero menos ainda me arrepender de não ter aproveitado cada segundo com ela porque me iludi acreditando que eles iam durar para sempre.
Viro a cabeça o suficiente para encará-la com canto de olho.
— Sei que tu não quer isso também. E tudo bem se não quiser se dar ao trabalho de tentar colocar senso na cabeça oca do seu irmão, eu não podia me importar menos com ele. Mas eu me importo contigo, e com a nossa mãe. Não se esqueça que foi ela quem me criou.
Levanto-me da cama e deixo um beijo na testa de Viviane. Murmuro um "eu te amo" e saio do quarto a tempo de deixar uma única lágrima solitária escorrer.
Quando enfio a chave na porta de casa, algumas horas depois de sair da casa da minha tia, sinto como se tivesse corrido uma maratona. Não, sou capaz de correr uma maratona e não me sentir assim; parece mais com um atropelamento por caminhão. Contrariando minha própria mania de organização, largo tudo que posso em qualquer lugar e me enfio debaixo do chuveiro. Quando minha mente voa para Rebecca e a possível bronca que ela me daria pela quantidade de água que estou gastando pensando na vida, decido me vestir e ligar para ela, sem realmente parar para pensar na diferença de fuso horário.
Com uma caneca fumegante de chá, acomodo-me na cadeira da mesa da cozinha, o computador aberto à minha frente. Após alguns toques, o rosto da minha amiga pipoca na tela, as olheiras um pouco mais fundas do que eu recomendaria, um sanduíche em mãos.
— Qual foi a última vez que tu dormiu, guria? — pergunto enquanto ela acena animada do outro lado. Espero alguns segundos enquanto ela grita alguma coisa em inglês para quem quer que esteja com ela no que reconheço como sendo a área comunitária da acomodação estudantil.
— Não sei, não lembro — declara com um sorriso orgulhoso no rosto que me faz balançar a cabeça em reprovação.
— Se tu morrer, não vai terminar teu projeto — aviso, erguendo uma sobrancelha, sabendo que é inútil. Nós duas somos muito parecidas em muitas coisas, mas completamente diferentes em outras; esse é uma delas. Não vivo para o meu trabalho como Rebecca faz. Amo o que faço e sou muito, muito boa nisso, mas não existe a menor chance de eu perder noites de sono e brincar com a minha saúde mental como ela faz, por vontade própria. Minhas prioridades são outras, e tudo bem. Precisamos de coisas diferentes para ser feliz.
— Como foi na sua tia? — pergunta, voltando para outra mordida do seu sanduíche. Suspiro e começo a falar, talvez mais do que eu faça normalmente: Becs está mais do que acostumada com minha habilidade nata de desconversar e não sofrer por dramas que não tenho controle.
Hoje, contudo, estou sofrendo. Todo mundo tem seus dias ruins e abraço os meus ao invés de tentar lutar contra eles.
— Estou agradecendo aos céus que as aulas estão acabando e eu vou poder passar mais tempo lá com ela daqui a algumas semanas — concluo após alguns minutos de monólogo.
— Sinto muito, Jessi — diz, e abro um sorriso fraco.
— Me distrai. O que tu anda aprontando?
A hora seguinte vai embora rapidamente, com Rebecca tagarelando desenfreada sobre bobagens que me fazem rir. Estou na terceira caneca de chá quando ela parece cansar e voltar sua atenção para mim. Reconheço sua expressão travessa quando apoia o queixo na mão e abre um sorriso de lado; sei qual a pergunta implicante que vai sair da boca dela.
— E o Henrique, como está?
Sei que está esperando minha mesma reação de sempre: uma revirada de olhos e o encerramento da chamada, mas pego-me mordendo o canto da boca e suspirando. Rebecca arregala os olhos e deixa a boca cair aberta.
— Jéssica?
— Não sei mais o que fazer — murmuro, jogando a cabeça para trás. — Honestamente, não consigo entender aquele homem.
— O que está acontecendo aqui? Você está pronta para finalmente admitir que gosta dele? — pergunta, verdadeiramente chocada. Não posso culpá-la; passei os últimos três anos negando a essa insinuação e insistindo que nada tinha acontecido. Rebecca sabe da primeira vez que transamos, mas jurei de pé junto que não tinha significado nada, porque não tinha, mas não a atualizei quando começou a, de fato, significar.
Não sei bem quando isso aconteceu, se foi quando ele me beijou no seu jardim, se foi quando eu o beijei debaixo de um céu estrelado de lua nova. Tudo que sei é que aconteceu.
— Henrique tem o surpreendente dom de ser a pessoa mais confusa que já conheci! — admito com um choramingo. — Ele me quer por perto o tempo inteiro, Rebecca, mas no segundo em que eu tento dar um passinho a mais...
Assisto-a recostar na cadeira e me encarar com pura satisfação no olhar. Sempre fui a primeira a dar uns bons tapas nessa guria toda vez que ela se envolvia em dramas desnecessários por causa de homem, e aqui estou eu. Reviro os olhos e deixo-a aproveitar o momento, ciente da ironia cósmica da situação.
— Já considerou que ele, não sei, realmente só goste de você, mas sexo não seja tão importante quanto é para você?
Aceno com a cabeça, simplesmente porque o próprio já me disse isso vezes demais. Repito para Rebecca o que sempre pulsa em minha mente:
— Até onde eu sei, o nome disso é amizade.
E é muito menos do que quero.
— Jessi... — Há uma mistura de diversão e incredulidade na voz da minha amiga, e não posso culpá-la. Solto um grunhido, e ela uma gargalhada. — Eu sei que você está irritada com ele, e com razão! — Rebecca se apressa em completar quando aperto os olhos na sua direção. — Mas sem agredir o amiguinho. Você já usou seu réu primário e eu não tenho dinheiro para pagar sua fiança.
Rio, finalmente.
— Henrique não sabe disso — murmuro, voltando para outro gole do chá. Contrariando o que esperava, ao invés de me acompanhar na piada, a expressão de Rebecca se fecha um pouco e ela tomba a cabeça para o lado.
— Não, não sabe. Vocês não sabem muita coisa um do outro, e honestamente isso não se parece nem um pouco com a forma como você costuma levar a vida. Honestidade é importante, você quem me ensinou isso.
Bufo, dispensando-a com a mão, sentindo o primeiro bocejo me alcançar.
— Pare de usar bons argumentos contra mim, isso não é do seu feitio — protesto, assoprando um beijo para a tela. Rebecca julga em silêncio minha tentativa de escapar, mas não me impede. Uma rápida rodada de despedidas depois, estou na cama, desativando qualquer despertador que eu tenha programado para amanhã.
Não tem santo que me faça aparecer naquela reunião amanhã.
Antes de pegar no sono, contudo, giro o celular entre os dedos por alguns instantes. Por fim, decido enviar uma mensagem. É só então que noto uma não lida de horas atrás que me faz sorrir e revirar os olhos.
É lua nova nessa quinta. Sua favorita.
OI, MENINEEES!
Como anda o final de semana de vocês?
Sentiram saudades do Henrique nesse capítulo? Prometo que ele volta no próximo! Mas agora me contem: concordam com a Rebecca, que Henrique gosta da Jéssica e sexo só não é tão importante assim, ou tem mais coisa aí? E, mais importante, no que raios a Jéssica gastou o réu primário dela? haha
Amo vocês!
Até breve <3
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro