Capítulo onze
Ela fica linda em tons pastéis.
Jéssica normalmente está vestida com cores chamativas que muito duvidosamente combinam entre si, e parece adorar. Mas ela fica linda em tons pastéis. Falei isso uma vez. Ela me respondeu que, já que gosto tanto assim, eu que comprasse uma camisa rosa-bebê e usasse, e a deixasse em paz. Foi nesse rompante, do qual tenho certeza que nem sequer se lembra, que me apaixonei por ela.
Acho que foi ali que me apaixonei por ela.
É difícil saber.
É difícil precisar um momento exato, um ponto na cronologia da nossa história, em que tudo tenha começado. Pode ter sido ali. Pode ter sido na primeira vez que ela pisou na minha casa, invadiu meu espaço seguro, estourou minha bolha de isolamento e, de alguma forma, não me desesperei. Parecia certo que estivesse ali, mesmo que todo o resto parecesse errado. Ou pode ter sido na primeira vez que fui em uma palestra sua e a forma como a mente daquela mulher funciona me fascinou irremediavelmente. Ou pode ter sido na primeira vez que ela, cansada de esperar pela minha boa vontade inexistente, se despiu na minha frente, arqueou uma sobrancelha e silenciosamente me desafiou a não cair de joelhos na sua frente.
Caí. É claro que caí.
Ou pode ter sido em qualquer outra interação aparentemente desimportante dos últimos anos.
É impossível traçar um caminho linear na nossa história.
É impossível traçar um caminho linear na minha história.
Eu me lembro que, assim que me mudei para Rio Grande e fui à primeira consulta com a psicóloga recomendada pela que eu costumava ver quando estava no Rio de Janeiro, ela me perguntou quando comecei a perceber que alguma coisa estava errada. Nove anos depois, ainda estou procurando pela resposta.
A verdade é que nunca vou ter a resposta para isso.
Quando percebi que a realidade em que eu vivo não é exatamente a mesma que todas as outras pessoas? Quando percebi que a forma como a minha mente funciona não é o normal? Que nem todo mundo vive sentindo-se inseguro (no sentido mais cru da palavra, de temer pela própria vida, segurança e destino; de acreditar que Deus te odeia, sua família quer te matar, seus amigos estão a todo momento falando de você pelas costas; e você não pode confiar em ninguém, afinal, não pode ler as mentes deles e saber exatamente o que estão pensando — ou talvez acredite que possa, dependendo do quanto está afundado na psicose que lentamente te domina quando os comprimidos mágicos que te mantêm na linha deixam de funcionar).
A verdade é que não percebi. Danielle percebeu por mim.
Danielle e seus dois anos cursados de psicologia que a faziam acreditar piamente ser conhecedora de todas as nuances da mente humana. Detentora de conhecimento o suficiente para consertar qualquer fio fora do lugar na minha cabeça.
Não era.
Mas ela tentou.
E cada vez que fecho os olhos, a imagem dela me invade, com sua voz suave, seus dedos no piano, sua certeza de que tudo ficaria bem. Ela invade minha mente como um lembrete pulsante de por que sei que sou tão ruim em relacionamentos — porque fiz um inferno do que tivemos.
Danielle me amou com cada célula do seu corpo e tentou com cada gota de determinação que tinha em si. Ela me deu tudo, se deu por inteiro, e nunca adiantou, porque Danielle se apaixonou por um homem instável, e foi a instabilidade que sempre a correspondeu. Sua dedicação foi o começo da sua ruína, porque cada passo dado em direção a uma sanidade que em muito me era necessária, era um passo para mais longe dela. Porque a verdade é que eu a amei, mas não do jeito que ela merecia, não do jeito que precisava. Não pelos cinco anos que ficamos juntos. Não quando nos casamos, no auge dos nossos vinte e um anos — ela, assustadoramente apaixonada; eu, desesperado para agarrar a única pessoa que parecia me amar incondicionalmente.
E não existe pedido de desculpas o suficiente por aqueles cinco anos que ela jamais terá de volta. Que sei que ela jamais vai admitir se arrepender de ter vivido.
Não acredito que existam pessoas ruins o suficiente para que a fé na humanidade seja perdida. Não acredito que existam pessoas más, que intencionalmente machucam outras, que desejam o pior a outro ser humano, não tanto assim. Mas acredito que ela facilmente é melhor do que a média. É um impulso natural de compadecer e tentar ajudar alguém que precise de ajuda, mas ela nunca soube como parar, nunca soube encontrar seu limite, aceitar o que está fora do seu controle.
Não. Danielle sempre acreditou demais em um final feliz. E me fez perceber que não tenho certeza se isso existe.
O que aprendi a ter certeza é que ter limites é importante. Que doar-se a outro alguém incondicionalmente pode ser uma ideia muito ruim. Que, por mais contraditório que possa parecer, resistir ao impulso se incansavelmente ajudar alguém pode ser a melhor decisão.
Eu explico:
Se você vir uma criança perdida na praia, vai tentar encontrar seus pais. É o que qualquer pessoa faria.
Se você vir alguém caído nos trilhos de um trem, vai tentar ajudar — ou ao menos tentar encontrar alguém que ajude.
Se você vir alguém prestes a se jogar de uma ponte, vai tentar impedir. Se alguém te parar na rua e disser que perdeu o emprego, que a mulher o abandonou, que a vida não faz mais sentido e não serve para nada; que não quer mais viver, que não vê motivo para isso, o diagnóstico vem rápido na sua mente, não vem? Depressão, talvez essa pessoa pareça suicida, e você absolutamente não quer que ninguém se mate. A ajuda vem. É oferecida, ao menos.
É fácil de criar empatia por esse cenário, porque, de uma forma ou de outra, todo mundo já se viu no fundo do poço em algum momento e sabe como uma mão amiga é necessária, bem-vinda.
Agora, se alguém te parar na rua e disser que os demônios vão me matar, eles não param de falar, por favor, faça-os parar, eles estão vindo para me buscar, por favor, por favor, você vai mudar de calçada. Você vai. Vai, porque vai ficar com medo. Vai, porque a loucura é visível demais para ser ignorada, e essa loucura deve ser temida. Foi assim que você aprendeu. Em todo filme que assistiu, em todo livro que leu. Você precisa proteger sua própria vida desse louco descompensado que está andando na rua conversando com demônios. Vai ignorar a parte em que ele implora por ajuda, porque o medo vence.
Porque loucos são imprevisíveis. Não é seguro ficar perto deles.
Mas Danielle não atravessou a rua. Ela ficou. Ela ficou, se casou com a loucura e tentou arrancá-la de mim com amor. Tentou me consertar, ignorando o motivo básico pelo qual psicólogos e médicos não devem atender familiares; seu julgamento estava nublado demais para enxergar o que estava na sua frente: não era de amor que eu precisava, era de internação em um hospital psiquiátrico, era de terapia, remédios, mecanismos para lidar com os parafusos soltos na minha cabeça, para aprender a viver em sociedade e enxergar a realidade como ela é.
Danielle achou que podia me amar o suficiente para que tudo ficasse bem.
Jéssica também acha.
Existe uma década separando essas duas histórias, e elas são diferentes demais para que sejam comparáveis; mas são similares o suficiente para que eu possa ignorar.
Preciso entender.
É isso que estou tentando fazer. Coisa que é extremamente difícil de realizar com Jéssica por perto a cada segundo. Sei o que ela está tentando fazer. Sei que está apenas tentando garantir que eu não a afaste, que eu saiba que não estou sozinho para o que precisar; sei que ela está exagerando no cuidado por nada além de boas intenções. Mas isso não torna minha vida mais fácil.
Ela também precisa entender.
Então, agora, deitado na cama com o rosto afundado em seu pescoço, seus braços ao redor do meu tronco, respiro fundo mais uma vez antes de me soltar do seu abraço. Posso sentir seus olhos queimando minha pele, acompanhando cada passo que dou quando me levanto da cama e sigo até o armário, tomado pela metade com suas coisas que vêm se acumulando nos cabides e gavetas pelas últimas semanas. Alcanço o caderno de capa verde e volto para a cama. Recosto na cabeceira e indico para que ela venha, e Jéssica vem. Se tem uma coisa que essa mulher não parece saber como fazer é hesitar; acomoda-se entre as minhas pernas, costas apoiadas no meu peito.
Apoio o caderno nas suas pernas e movo seu cabelo de lugar, liberando a faixa de pele do seu pescoço do lado esquerdo. Sorrio quando seu corpo chacoalha em um arrepio pelo toque dos dedos no seu pescoço e a aperto um pouco mais contra mim antes de respirar fundo e abrir o diário.
— Aqui. — Aponto com o indicador quando encontro a página que procuro, a que marca a data pouco mais de um mês antes do Natal. Volto mais algumas páginas, para os dias anteriores àquelas duas semanas que não apareci no trabalho. — Aqui, na verdade.
Ela aponta para o cabeçalho da página, a unha em um laranja vibrante tocando a minha superior da página.
— "Duas horas"? — lê, virando o rosto na minha direção. Em uma mania que há muito aprendi a apreciar, raspa os dentes pela minha quase inexistente barba, mordiscando a linha do meu queixo.
— Horas dormidas — explico, e parece ser o suficiente de informação para que ela volte a atenção para as páginas e as folheie, encontrando uma sequência de "três", "cinco", "duas", até parar na página em que a linha não está preenchida. Antes que precise preguntar, explico: — Não dormi nada nessa noite.
— Tu sempre dorme oito horas, cronometrado — ela responde, as sobrancelhas franzidas, o tom quase provocativo, porque é verdade.
Privação de sono talvez seja a coisa mais perigosa para mim. Lembro-me da minha psicóloga me explicar que noites sem dormir podem, potencialmente, desencadear problemas em qualquer pessoa. Incapacidade de se concentrar, irritabilidade; em casos extremos, alucinações. O problema é que automaticamente me enquadro nos "casos extremos". Poucas noites sem dormir são o suficiente para que eu perca parte da conexão com a realidade. Simples assim.
Vejo coisas que não estão ali.
Ouço coisas que não estão ali.
O caminho para mergulhar em uma realidade que ninguém compartilha comigo é curto e muito rápido de ser atravessado.
Por isso, o diário. Diários, no plural. Datados, preenchidos, um para cada ano.
Quando estou bem, nada está fora do lugar. Em um hábito entediante, acordo, vou para o trabalho, volto para casa; vejo amigos, leio, cuido de Alexia; estudo, preparo aulas, como, tomo banho, durmo. Uma vida deliciosamente ordinária e rotineira como de qualquer outra pessoa. Quando não estou bem, percebo que não estou; eventualmente. Por alguns dias, contudo, é difícil notar que qualquer coisa saiu dos trilhos — que não estou dormindo bem, comendo direito, liguei para a minha mãe? Tomei banho? Esqueci alguma reunião? Troquei a comida da Alexia? —, então ter minha vida rotineira e entediante anotada faz tudo ficar mais fácil. Se não posso confiar na minha memória, posso confiar no que escrevo.
Duas noites sem dormir? Sei que preciso adiantar minha consulta com a psicóloga; talvez tomar algum remédio para dormir, mesmo que não esteja sentindo nada ainda.
— Pedi folga no trabalho por isso — explico, os dedos afundados no seu cabelo. A textura dos seus fios e o cheiro da sua pele são, como sempre, embriagantes e atrativos demais. — Precisava dormir e me afastar de qualquer situação estressante demais por uns dias.
Ela se ajeita no meu colo, montando nas minhas pernas de frente para mim, as palmas em meus ombros.
— Odeio que tu tenha ficado sozinho aqueles dias todos — murmura, balançando a cabeça.
Suprimo o impulso de dizer que gostaria de ter ficado sozinho, sem os pensamentos agitados e as vozes que não me pertencem ocupando um espaço que não a pertencem. Ao invés, deleito-me da sensação contraditoriamente satisfatória que é cuidar de alguém, para variar. Abraço-a, acolho-a, acalento-a em meus braços, sussurrando um "está tudo bem" diante dos seus olhos marejados, encantado pela dualidade dessa mulher.
Jéssica é um furação. Imparável. Incontrolável. Forte e devastador. Toma controle do que quer, dobra o mundo às suas vontades. Ao mesmo tempo, se entrega e sofre pela dor alheia na mesma medida em que ignora sua própria.
— Me promete que não vai fazer isso de novo — pede, a voz um tanto chorosa abafada pela sua boca afundada em meu pescoço. — Promete que não vai sofrer sozinho assim.
— Não — respondo de imediato, parcialmente assustado, parcialmente divertido pelo olhar assassino que ela me oferece ao se afastar em um pulo para me encarar. Alcanço seu rosto. — Não vou prometer isso. Às vezes preciso ficar sozinho. Às vezes, preciso de um abraço, às vezes tentar me tocar é a pior coisa que você pode fazer. Eu não sei até estar lá. Não posso te prometer.
Ela suspira, contrariada, odiando não poder controlar isso, tenho certeza. Joga a cabeça para trás e encara o teto, franzindo os lábios.
— Tá — concorda com um resmungo. Volta a me olhar. — Posso marcar outra consulta com a sua psicóloga? Sozinha? Ainda tenho um trilhão de perguntas.
Assinto, sorrindo para o seu interesse, antecipando a longa conversa entre as duas mulheres, dada a quantidade de abas abertas no computador de Jéssica da última vez que olhei. Não me incomodo por ter virado seu dever de casa, por ela estar me estudando com o mesmo afinco que coloca no seu trabalho. Em alguma medida, faz com que eu me sinta bem tê-la tão interessada assim em cada detalhe.
O que me lembra:
— Já que sua aula amanhã é só depois do almoço, posso te levar a um lugar de manhã? — pergunto, alcançando seu pescoço em um dedilhado delicado. — Tem uma coisa que quero te mostrar.
Ela confirma e estende as mãos pela minha nuca, embrenhando os dedos pelo meu cabelo, puxando os fios um pouco longos demais.
Aqui, trazendo-a para minha boca, sei que o assunto está encerrado. Ela não pergunta do que estou falando, e conheço essa mulher a tempo o suficiente para saber que é a sua forma de dizer que não importa: ela vai para onde eu quiser levá-la.
Jéssica assume o controle da intensidade do beijo com muita facilidade, prendendo-me a ela, fazendo-me orbitar ao seu redor. Seu beijo é doce. Carrega o gosto suave de vinho e algo a mais que é só dela. Ainda que nenhuma palavra escape da sua boca, o traçado suave dos seus dedos pelo meu abdome é a pergunta silenciosa, que respondo subindo as mãos por dentro da sua blusa, alcançando seu seio.
A peça some do seu corpo, todas as peças somem do seu corpo. Diante da visão do corpo mais bonito que já vi na vida, frustração ameaça despontar; mas é silenciada com a mesma rapidez quando ela se inclina pela beirada do colchão. Ouço-a mexer por entre as cartelas de remédio jogadas no chão por um segundo antes de voltar ao meu colo, a garrafinha térmica de água que vive ao lado da cama da mão, um sorriso arteiro nos lábios.
Então, ela se apropria do seu maior superpoder: a capacidade inata de transformar qualquer situação na perfeição que carrega na alma.
Com uma sensualidade lasciva, leva a garrafa destampada aos meus lábios, substituindo-a pela própria boca antes que eu tenha a chance de engolir o líquido gelado. Sinto-a transferir para a minha boca o comprimido antes preso entre seus dentes, e mal tenho tempo de engoli-lo antes do gemido estrangulado me escapar da garganta quando ela puxa meu lábio inferior com força, distraindo-me instantaneamente do que tinha o potencial de ser um momento constrangedor — transformado em uma troca íntima demais, voluptuosa demais com seus lábios descendo-me o pescoço
Abraço-a pela cintura, colocando-a debaixo de mim. Sugo seu lóbulo e, com as unhas presas às minhas costas, Jéssica deixa claro que meu maior medo não se concretizou: ela deseja o homem à sua frente sem reservas, sem ressalvas, sem hesitações.
— Eu amo você — sussurro no meu ouvido.
— É claro que ama, eu sou adorável. — A última palavra sai em um gemido, minha mão subindo por dentro da sua coxa. — Desce — pede, arqueando o corpo, os dedos passeando pelo meu queixo.
Sorrindo, escorrego a boca pela sua barriga.
— Você é impossível — sussurro, alcançando-a onde me pede.
Deixo que seus gemidos preencham o quarto pelos minutos seguintes. Pelas horas seguintes.
Deixo que Jéssica me leve com ela, aproveitando a serenidade de um dia que terminou bem, ciente de que nem todos serão assim.
Torcendo para que ela ainda esteja aqui quando os ruins chegarem.
OI, MENINES!
Pois muito que bem, foi dada a largada. Vou aproveitar para tricotar com vocês um tiquinho aqui. A cadência da narrativa do Henrique talvez fique confusa em alguns momentos. Talvez vocês tenham notado algumas divagações um tanto "quê?"; se não ainda, em algum momento nos próximos capítulos vão se deparar com algumas. A história dele não é linear, vamos conhecer um pouco do passado dele ao mesmo tempo em que vivemos o seu presente. Alguma ideia do que vamos encontrar por aqui?
Amo vocês!
Até breve <3
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