Capítulo nove
Dessa vez, quando cruzo a porta da casa de Henrique, ele não parece desorientado e irrequieto; apenas moderadamente confuso ao me ver. Sentado no sofá, suas sobrancelhas crispam conforme me aproximo. Alexia, em seu colo, servindo de apoio para o caderno de capa esverdeada, me concede alguns segundos de atenção antes de voltar a ignorar minha presença, acomodando-se um pouco mais no colo do dono.
Deixo minha bolsa em um canto no chão e sacudo o chaveiro de Rebecca para ele de novo, que abre um sorriso de canto e apenas assiste em silêncio meus movimentos um tanto hesitantes. Quando o alcanço, sentando-me ao seu lado, Henrique me estende a mão, enroscando nossos dedos, levando o dorso da minha mão ao seu rosto para um beijo delicado.
— Não achei que fosse te ver por mais alguns dias — comenta, fechando o caderno e apoiando-o no braço do sofá. Alexia mia, protestando pela perturbação. Solto a mão de Henrique para acariciar a cabeça peluda e, apenas para não quebrar tradições antigas, recebo uma mordida leve dos dentes afiados antes de ela voltar a me ignorar.
— Com quem ela ficou esses dias? — pergunto, olhando para a bola de pelos movida a ódio que voltou a dormir pacificamente.
— Levei comigo pro Rio — explica, acariciando-a. — Minha irmã a trouxe de volta ontem.
— Lívia? — Franzo o cenho; ele assente. — Ela está aqui?
— Foi para Pelotas, a família do namorado dela é de lá. — Ele balança a cabeça e abre um sorriso. — Noivo.
Arregalo os olhos e abro um sorriso maior ainda.
— Lívia vai casar? — pergunto, a voz um tanto esganiçada em animação. O sorriso babão no rosto dele não deixa espaço para dúvidas do orgulho e carinho que tem pela irmã caçula, bons sete anos mais nova que ele.
Há um momento de silêncio confortável demais, sorrisos sinceros e olhares cintilantes. Não sei o que se passa na cabeça dele, mas sei o que se passa na minha: seja lá o que seja isso aqui, seja lá o que estivemos brincando de fazer nos últimos anos, seja lá que nome se dê, fazemos parte da vida um do outro. Henrique esteve comigo em todos os momentos difíceis dos últimos anos, e em todos os momentos bons também. Dói saber que, o que quer que esteja escondendo de mim há tanto tempo, ele teve que lidar sozinho, porque não me permitiu apoiá-lo como sempre me apoiou, ajudá-lo como sempre me ajudou.
O sorriso escorre do meu rosto e desvio o olhar. Henrique suspira, a mão alcançando minha coxa em um aperto delicado.
— Chá? Acho que você vai precisar de uma bebida quente.
Ele passa Alexia para o meu colo e se afasta. Toma seu tempo antes de voltar com uma caneca e estender uma mão para mim. Alcanço-a e deixo que me conduza para fora. Mesmo sendo meio de tarde, a temperatura hoje resolveu cair. Encolho-me um pouco dentro da roupa, e logo ele aparece com um casaco de moletom grosso que não lembro de tê-lo visto usar um dia; tenho quase certeza que as únicas vezes que a peça encontrou o caminho para fora do armário foi quando eu a usei. Com a caneca em mãos, aproximo-me dos fundos do pequeno jardim, percorrendo os dedos pelas pétalas delicadas das suas flores. Por sobre o ombro, vejo-o se acomodar em uma das cadeiras de bambu, a apreensão em seus olhos tornando o momento mais dramático do que gosto que seja.
Viro-me na sua direção, mas não me aproximo.
— Por que tu veio embora? — pergunto, tomando um gole curto.
Henrique suspira.
— Não achei que você fosse aparecer tão cedo — murmura, dando de ombros. — Tenho uma consulta daqui a pouco. — Puxa o celular do bolso, conferindo as horas. — Daqui a uma hora e meia. — Estou a ponto de perguntar "consulta de que", mas ele se adianta, respirando fundo antes de soltar: — Psiquiatra. Preciso ajustar minha medicação.
Franzo o cenho, aproximando-me, por fim. Sento-me na grama única de frente para ele, pousando a caneca aos meus pés, o queixo apoiado em seu joelho.
— É isso que tu está com tanto medo de me dizer? — pergunto, confusa. — Que toma remédio para alguma coisa? — Seu silêncio vem como uma confirmação, mas não adiciona nenhuma explicação adicional. Estendo as mãos e toco suas panturrilhas em um carinho delicado. — Ansiedade, depressão...?
— Esquizofrenia.
Henrique cospe a palavra de uma vez só, em um sussurro recheado de vergonha, culpa e medo. Talvez demore mais do que alguns poucos segundos para que eu entenda; quando o faço, não sei como reagir. Aperto um pouco mais as mãos em suas panturrilhas e, mesmo quando ele desvia o olhar, mantenho os meus presos a ele.
— Tudo bem... — começo, hesitante. Quero dizer que não havia motivo algum para me esconder qualquer coisa, ou me afastar, ou se comportar como se carregasse em si o maior pecado já cometido na história da humanidade; ao mesmo tempo, minha mente assume caminho próprio e viaja, vagando pelos últimos anos, tentando entender como não percebi, como não notei, como não soube, procurando por sinais, explicações, qualquer coisa. Antes que eu consiga fazer meu cérebro e minha boca se alinharem, contudo, vejo uma lágrima escorrer pelo seu rosto, os lábios pressionados em uma linha fina.
— Eu não sou um monstro, Jéssica — sussurra, a voz dolorida.
— Não acho que seja — garanto, levando uma palma à sua bochecha. Tento puxar seu queixo na minha direção, mas ele não vem com facilidade. Quando finalmente me olha, vejo anos demais de problemas que não conheço transbordando por suas íris.
— Mas está, nesse momento, tentando me visualizar falando sozinho, ou preso em um hospício, ou fazendo tratamento de choque, ou correndo na rua com uma faca na mão, ou qualquer outra representação hollywoodiana que consiga lembrar. — Ele pausa, e quero dizer que não, que ele está errado, mas não posso, não de verdade. Henrique abre um sorriso triste, de lado. — Está tentando decidir se sou perigoso ou não. Mesmo que me conheça há boa meia década e saiba que não sou.
— Henrique...
— Não mente. — É uma súplica. Há desespero e nada mais no pedido enquanto ele me olha, esperando uma resposta ou qualquer outra coisa.
Entendo, aqui, o que ele me disse antes de sair da casa da minha tia: ou eu viro as costas e vou embora, ou terei perguntas o suficiente para essa conversa durar o dia inteiro.
Gostaria de dizer que sou uma pessoa melhor, de garantir que a primeira possibilidade não cruzou minha mente em momento nenhum. Passou. Por meio segundo, uma fração de pensamento racional; o suficiente para ele perceber que meu corpo agiu sozinho e retesou, afastou-se por centímetros que fossem; e meu rosto se converteu no que sei ser uma expressão de dúvida e incerteza.
A segunda possibilidade, contudo, ganha.
— Não vou mentir — prometo, estendendo uma mão para ele, oferecendo o dedo mindinho, que ele alcança e engancha no seu com um projeto de um sorriso nos lábios. E é aqui que qualquer decisão está tomada: não tenho ideia do que isso significa, mas passei os últimos anos virando o mundo de cabeça para baixo, porque qualquer coisa valia a pena ter esse sorriso direcionado a mim. Continua valendo. Umedeço os lábios e arqueio os sobrancelhas. — Então... Sem falar sozinho? — pergunto, revestindo minha voz com qualquer divertimento que consigo encontrar em mim, fazendo surgir em meu rosto um sorriso sapeca que sempre arranca uma risada dele.
Funciona; e quando o som atinge meus ouvidos, acomodo-me um pouco mais em seus joelhos.
— Não, eu falo sozinho sim — corrige, passando a mão em volta do pescoço, ondo os fios dos fones de ouvido estão pendurados. — É por isso que uso isso o tempo inteiro. Você sempre acha que estou cantando alguma coisa.
Sinto minha boca cair em um O perfeito, e ele dá de ombros, parecendo envergonhado.
— É por isso que nunca consigo descobrir o que tu escuta! — protesto; talvez acometida pelo absurdo inesperado da situação, solto uma risada. Afundo o rosto em seus joelhos por um instante, balançando a cabeça. Levanto o rosto para encarar sua expressão serena e um tanto confusa. — Desculpa, não estou tentando fazer graça de nada, mas...
— Pode fazer graça — ele corrige. — Honestamente, é a única forma de lidar com as coisas às vezes. Se eu tivesse vinte anos, talvez ficasse puto da vida com você, mas tenho quase quarenta. São... — ele joga os olhos para cima, tentando lembrar — quase vinte anos lidando com isso. Aprendi a rir de mim mesmo há muito, muito tempo.
Assinto, sem realmente entender.
Aponto para o colo dele com o indicador.
— Posso?
Henrique pisca algumas vezes e move a cabeça em positivo. Vejo-o engolir em seco quando me levanto, os olhos acompanhando meus movimentos quando me acomodo sobre suas pernas, aninhando-me contra seu peito. Seus braços me envolvem, e ele arqueia o tronco quando embrenho as mãos por dentro do seu casaco, meus dedos gelados contra sua pele quente.
— Deus, Jéssica, você realmente precisa começar a usar luva.
— A gente está no meio do verão, me deixa — reclamo, apoiando a cabeça em seu ombro.
Sinto o reverberar baixinho no seu peito quando ele ri, o toque quente da sua mão acariciando minha pele, a familiaridade do seu cheiro, da sua voz, do seu abraço. A diferença, contudo, é que é a primeira vez que Henrique parece estar inteiro comigo — sem me manter a uma distância segura, sem se recusar a se entregar para mim.
— Por que tu não me contou antes? — pergunto, a boca pousada em seu pescoço, vendo pelinhos finos arrepiarem com o ar quente que sai dos meus lábios.
Ele suspira, pesado.
— Quase ninguém sabe. Minha família, minha chefe...
— Rebecca — completo, torcendo o nariz por um segundo, incomodada, sentindo-me um tanto traída pelos dois.
— Não fica brava com ela — pede, acariciando meu cabelo.
Bufo, mas deixo de lado por ora. Com minha amiga me entendo depois. Henrique fica em silêncio por alguns instantes, o carinho constante nos meus fios.
— É um diagnóstico, não uma sentença de morte, mas... Com o tempo percebi que as pessoas costumam ter duas reações normais quando descobrem: pena ou medo. Ou se afastam, ou começam a me tratar como se fosse incapaz de viver em sociedade e tomar conta de mim mesmo, como se não prestasse para nada. — Ele cola a boca na minha testa. — Acho que fiquei com medo de ser o caso com você.
Sinto-o balançar a cabeça, e me afasto o suficiente para encarar seus olhos.
— Não estou com medo. — Tombo a cabeça, repuxando os lábios. — E da última vez que conferi, tu tinha um doutorado, uma lista interminável de artigos publicados e um emprego em uma das melhores universidades do país. — Tiro as mãos de dentro do seu casaco e as arrasto por seu peito, subindo para os seus ombros. — E se isso não fosse o suficiente, talvez minha memória esteja me traindo, mas tenho bastante certeza de que tu sabe fazer meia dúzia de coisas com essa língua que prestam pra muita coisa também — murmuro, erguendo o queixo na sua direção.
O olhar que ele me dirige é de pura incredulidade, uma sobrancelha arqueada, um sorriso crescendo aos poucos em seus rosto antes de seus lábios descerem aos meus.
O beijo é lento, como nunca antes foi. Tem um gosto diferente, sem a camada constante de hesitação e apreensão. É longo, doce, úmido, quente. E só é interrompido pelo apito estridente do celular em seu bolso, o toque conhecido do alarme.
— Médico — murmura contra a minha boca, soltando-me para silenciar o aparelho. Acaricia minha bochecha. — Me espera aqui? Nós ainda temos muita coisa para conversar.
— Posso ir contigo? — peço, mordendo o canto do lábio.
— Não precisa — avisa, a mão percorrendo meu pescoço, movendo meu cabelo de lugar para dedilhar minha pele.
— Eu quero — insisto. — Tu me avisou que eu ia ter um milhão de perguntas, e eu tenho. Se eu puder conversar com seu médico, talvez...
Alívio corta seu rosto pela primeira vez desde que cheguei. Não preciso que ele explique para que eu saiba o motivo: não estou minimizando a situação, nem agindo por impulso. Ele tem razão, qualquer vaga ideia que eu tenha sobre a doença vem de filmes, livros ou o que for. Como o bom cientista que é, Henrique sabe que nada facilita mais o entendimento de alguma coisa do que dados bem concretos e bem explicados. E é disso que estou atrás.
Não, não estou indo a lugar nenhum. Mas não significa que eu não precise entender muito bem no que estou me metendo. Preciso.
Henrique solta uma risada baixa.
— Ele vai adorar finalmente te conhecer — murmura, balançando a cabeça. Arqueio uma sobrancelha.
— Tu andou falando de mim por aí, foi? — implico, circundando-lhe o pescoço com as mãos.
— Talvez.
Ele deposita um beijo curto em meus lábios antes de me levantar e avisar que vai trocar de roupa. Sento-me novamente na cadeira no quintal, apanhando a caneca com a bebida já fria enquanto o espero. Levam dez segundos para que eu desista da inércia e não me incomode em conferir as horas para tentar fazer a conversão de fuso horário antes de puxar o celular do bolso e ligar para Rebecca. Chama vezes demais até que a ligação caia; e tento de novo. Quando ela atende, sua voz está sonolenta; a minha, acusatória.
— Tu não me contou — digo, após ela ter a chance de dizer apenas o meu nome sussurrado. Há um silêncio do outro lado da linha que se estende por segundos o suficiente antes que ela suspire para que eu tenha certeza que ela sabe o motivo da ligação abrupta.
— Não — responde por fim. — Não contei. Está tudo bem? Você tá bem? Henrique está bem?
A sequência de perguntas é um tanto afobada, e sei que a preocupação é real; mas estou irritada.
— Por que tu não me contou?
— Jessi...
— Está todo mundo bem, Rebecca. Por que tu não me contou?
A última frase sai um pouco chorosa, denunciando que qualquer raiva rapidamente dá lugar à necessidade que ela me dê colo. Não menti. Não estou com medo. Mas estou confusa e perdida, e não estou acostumada a me sentir assim. Rebecca suspira de novo, e posso visualizá-la esfregando o rosto antes de me presentear com uma voz serena demais.
— Pelo mesmo motivo que não contei para ele que você foi presa depois de atear fogo no carro do seu ex-namorado. — Não há qualquer julgamento ou acusação na sua voz, apenas uma explicação calma demais. — Não é minha história para contar, não é meu passado para explicar. Você tem o direito de escolher quando ele vai saber, e ele tinha o direito de escolher quando você ia saber.
Recosto a cabeça no encosto da cadeira e fecho os olhos.
— É diferente — sussurro. — É completamente diferente.
— Não é. — A voz é carinhosa e acolhedora; posso quase senti-la me abraçando. — Até porque não sei de todos os detalhes do que quer que tenha acontecido quando ele era mais novo. Sei que tem uma história ali, e sei que é pra você que ele quer contar.
Diante do meu silêncio, Rebecca sabe que, contrariando nosso histórico, venceu a discussão.
— Eu amo você. Amo vocês dois. E espero ser a madrinha do casamento e dos filhos de vocês em um futuro muito próximo. — Rio, balançando a cabeça para a loucura dela. — De verdade, Jessi. Espero que fique tudo bem. Mas, se não ficar...
— Não te pediria pra escolher um lado, Becs — adianto-me, levantando-me da cadeira. Pelas portas de vidro, vejo-o trocar a comida de Alexia e acariciar a cabeça da bola de pelo. Sinto o peito apertar e esquentar ao mesmo tempo, a incerteza brigando por espaço com o amor que nunca conseguiria deixar de sentir por ele; disso eu sei.
— Se não ficar, vou estar aqui — completa.
Murmuro um "eu te amo" antes de desligar e entrar na casa, atraindo a atenção dele. Agachado perto da parede, a gata meio embolada no seu colo, Henrique me olha. A barba rala que sempre me arrepia. Os fios castanhos e macios que encontram sempre o caminho por entre meus dedos. O nariz fino, as sobrancelhas grossas, os lábios macios. O mesmo homem que conheci, o mesmo homem que amo tão incansavelmente pelos últimos anos.
Isso não muda nada. Certo?
Ele apoia Alexia no chão e me estende a mão.
Entrego a minha, enganchando nossos dedos, o calor da sua pele aquecendo a minha.
— Pronta?
Não.
— Lidere o caminho — brinco, apontando com a cabeça.
Ele o faz, guiando-me até a porta, apenas para parar e me puxar para um abraço um instante depois.
— Obrigado — diz baixinho no meu ouvido. — Por não ir embora antes de tentar entender.
Acomodo-me a ele, lembrando-me das suas palavras do dia anterior: Henrique não queria me amar, e não queria que eu o amasse. Talvez ele esteja certo. Qualquer que seja o caso, não posso evitar mais do que ele; não quero evitar.
Eu o amo. Amo tudo que há de belo, e todas as partes que não são tão belas assim. E não sei se amor é capaz de tudo suportar, mas não vou desistir antes de tentar.
OI, MENINES!
Pois muito que bem. Aí está.
Quando estruturei o roteiro desse livro, pensei muito em que momento essa revelação seria feita. Podia ser no começo, e talvez vocês entendessem alguns traços do Henrique antes. Mas decidi que seria melhor que descobrissem junto com a Jéssica, para que tivessem a chance de amá-lo como ela ama, ou ao menos entender esse amor antes de quaisquer julgamentos.
Henrique teve razão ao dizer que tudo que a maioria de nós sabe sobre o transtorno é o que vemos em filmes; eu aprendi TANTO estudando para escrever esse livro e me deparei com tanto esteriótipo e conceito errado apresentados em filmes que não está nos gibis
Então, agora vocês terão a voz do especialista no assunto. A narração do Henrique começa em breve; só tem mais um capítulo da Jéssica antes de nós mergulhamos na cabeça dele.
E de vocês, espero o mesmo acolhimento da nossa menina: estigmas de lado, vamos aprender juntas.
Amo vocês
Até breve <3
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