Capítulo dez
Alexia desistiu de me odiar. Ou, ao menos, declarou trégua temporária quando percebeu que, uma semana depois, eu tinha ido para casa somente para buscar roupa limpa. Acho que aceitou permanentemente minha presença quando o mês virou, minhas breves férias chegaram ao fim e, ainda assim, ao fim do dia era para cá que eu voltava.
Sinto-a se enroscar nas minhas pernas, miando por motivo nenhum aparente, enquanto estou sentada no sofá, dividindo minha atenção entre terminar de montar a aula que preciso dar amanhã e bebericar minha taça de vinho. Acaricio-a com a sola do meu pé por alguns instantes antes que ela desista e pule no sofá, subindo no meu colo, sapateando pelo teclado do computador antes de se deitar ali.
— Eu não queria trabalhar mesmo.
Não demoram outros dois minutos inteiros para que a porta da frente se abra e Henrique entre, o cabelo úmido pela chuva fina que cai lá fora. Livra-se dos sapatos e do casaco, dos fones de ouvido e da bolsa, meticulosamente dobrando e colocando tudo no lugar antes de vir até mim. Alexia recebe um afago na cabeça, eu recebo um beijo curto nos lábios.
— Como foi teu dia? — pergunto contra sua boca.
— Melissa mandou um "oi" — responde, oferecendo-me outro beijo curto antes de seguir para a cozinha.
Ao som da geladeira sendo aberta, sei que está atrás de água.
Sei, porque enxergar Henrique é como observar estrelas. A olho nu, vejo-o em todo seu conjunto, familiarizando-me com sua superfície inteira. Depois, sob uma lente ampliadora, são detalhes invisíveis, traços fáceis de descartar que se sobressaem.
Sei que está atrás de água, da mesma forma que sei que se irrita com essa minha análise minuciosa, então mantenho-a para mim. Não consigo evitá-la, contudo. Não quando passei as últimas semanas absorvendo tudo que pude de informações objetivas. Não quando li mais artigos sobre saúde mental do que sobre meu tópico de pesquisa do doutorado que começa em algumas semanas.
Então, ao som da água sendo derramada no copo, minha mente busca pelo termo, encontrando-o um segundo depois. Xerostomia, o que, pelo visto, é o mais presente dos efeitos colaterais do antipsicótico. "Boca seca", ele tentou explicar, "mas nenhuma quantidade de água parece ser o suficiente".
Virei uma enciclopédia ambulante. Talvez um tanto obcecada.
Posso vasculhar minha cabeça e encontrar tantos outros nomes que jamais imaginei que fosse ouvir. Acatisia é outro desses; apenas um nome complicado demais para a sensação de inquietação e irritabilidade que se convertem em uma ansiedade que faz com que ele simplesmente não consiga trabalhar. Sei que está em um desses dias quando se senta ao meu lado com o computador no colo e se levanta menos de um minuto depois; e repete isso vezes o suficiente para que eu apoie a mão em sua perna em um aperto delicado, atraindo seus olhos para mim.
— Por que tu não vai tomar um banho pra gente jantar?
Ele assente e suspira, esfregando o rosto e levantando-se.
Sigo para a cozinha e, verdade seja dita, acho que minha alimentação nunca foi tão boa quanto nas últimas semanas. Porque ganho de peso também está na lista interminável de efeitos colaterais, e ele e sua rotina precisa evitam que isso aconteça — embora eu não reclame da gordurinha sobressalente que ele carrega no quadril e é bem boa de morder.
E sei que não vou morder nada hoje, porque ele não está tendo um bom dia, e, quando isso acontece, a teimosia em forma de homem volta a hábitos antigos e me tranca do lado de fora.
Não o espero para jantar quando o banho se torna longo demais e sei que ele só está tentando ganhar algum tempo sozinho. Nessas horas, gostaria de ter em mim um pouco mais do que quer que leve as pessoas a simplesmente irem embora quando não se sentem bem-vindas, porque sei que é isso que uma parte dele quer: ficar sozinho com sua própria dor, como vem fazendo pelos últimos vai saber quantos anos. Mas não tenho, então, ao invés disso, sigo para o quarto, abro a porta e paro recostada na parede, encarando-o na cama, a pele ainda coberta por gotículas de água do banho que ele não secou.
De olhos fechados, tem a cabeça recostada na cabeceira, e espero, assistindo seu peito subir e descer ritmadamente. Eventualmente, seus olhos vêm até mim, silenciosamente pedindo que eu vá embora, silenciosamente pedindo para que eu o abrace.
— Quer comer aqui? — pergunto, sem sair do lugar, os olhos rapidamente pousando sobre as caixas de remédio perfeitamente organizadas na mesinha de canto.
— Eu não preciso de babá, Jéssica. — Não há grosseria na sua voz, apenas cansaço. Vergonha. Tristeza.
Dou de ombros.
— Eu também não precisava semana passada quando estava quase estrangulando alguém, mas tu me trouxe chocolate e me proibiu de sair da cama até eu terminar de assistir Glee do mesmo jeito — comento, arqueando uma sobrancelha.
— É diferente — murmura.
Estalo a língua, aproximando-me. Sento-me na beirada do colchão, mas não o toco; não o farei até que ele peça e me diga que é o que precisa.
— Todo mundo tem direito a ter dias ruins, criatura — rebato. — Se os meus são causados pelos meus hormônios descontrolados e os seus são causados pelos teus remédios, que diferença faz?
— A diferença é que seus "hormônios descontrolados" vão embora depois de dois, três dias, e um pote de sorvete. — Ele faz as aspas com as mãos, antes de estendê-las para alcançar os remédios, espalhando-os pelo colchão. — Eu preciso de uma farmácia inteira só para sair da cama de manhã, e de outra farmácia inteira para os efeitos colaterais dessa porcaria.
Com um suspiro cansado, ele esfrega o rosto, apertando as palmas contra os olhos.
— Eu honestamente não consigo entender o que você está fazendo aqui — murmura, os lábios pressionados um contra o outro. Quando abaixa as mãos, parece derrotado. — Você é linda, Jéssica. Ilumina a porcaria de um quarteirão inteiro só com a sua risada. Sabe que pode ter o homem que quiser. — Ele dá um peteleco leve em uma das cartelas de remédio e completa em um sussurro. — Definitivamente pode ter um homem que não precise de um aviso prévio de trinta minutos antes de ir para cama com você porque tem que dar tempo desse treco fazer efeito. Ou um que tenha uma libido constante e não passe semanas sem sequer conseguir pensar em sexo. Ou um que não demore três eternidade para gozar.
Estendo a mão e alcanço a cartela de Tadalafil, girando os comprimidos amarelos ovalados entre os dedos.
— A última vez que conferi, um cara demorar a gozar era uma coisa boa — implico, e ele me encara com duas cabeças tivessem nascido do meu pescoço. Com um suspiro, empurro todos os remédio para fora do colchão e me arrasto na sua direção, subindo no seu colo. — Fui correr mais cedo e não tomei banho. Estou toda grudenta, lide com isso — aviso, acomodando-me sobre suas pernas. Ele abre um sorriso pequeno e apoia as mãos na minha cintura. — Tu tem razão, eu provavelmente posso ter o homem que eu quiser. E isso significa que não tem nada que tu possa fazer para me impedir de te ter.
— Jéssica...
— Se tu está tão preocupado assim com a minha vida sexual, fique sabendo que tenho dois vibradores e cinco dedos em cada mão — completo, uma sobrancelha arqueada. Ele solta um grunhido e abaixa a cabeça, afundando-a na curva do meu pescoço. Levo as mãos às suas costas, acariciando sua pele quente, puxando-o para mais perto.
Não digo nada por algum tempo, e ele também não. Penso nas últimas semanas, na consulta com o psiquiatra em que ele me levou, nas outras duas com a psicóloga que fiz questão de ir. Não vou mentir, só estou começando a entender. Mas o ponto é que estou, finalmente, começando a entender.
Henrique ainda não me contou todos os detalhes dos seus anos mais jovem. Limitou-se a dizer que foi uma bagunça grande demais para que um dia ele consiga limpar, que cometeu erros que jamais vai poder consertar. Não me atrevi a invocar o nome de Danielle de novo, mas estou inquieta para saber dessa história, para saber o que ela ainda significa para ele. O que diabos ele enxerga quando fecha os olhos que tem tanto medo de me contar.
— Você não sabe quão complicado pode ficar — sussurra.
— Então me explica — peço mais uma vez. — Já disse, semanas atrás, e vou repetir quantas vezes precisar: não estou com pena, não estou com medo. Eu vou pro inferno contigo se precisar, segurar tua mão enquanto tu luta com seja lá que demônios são esses que traz. Mas preciso saber, Henrique. Não posso trabalhar no escuro. Não vou embora, mas também não quero ficar sem ter todas as informações possíveis.
Ele assente, passando uma mão pelo cabelo.
— Três anos — relembro-o, afastando-me um pouco para apontar de mim para ele. — Nós estamos nisso aqui há três anos e tu realmente acha que qualquer coisa que me conte vai me fazer te ver de outro jeito?
— Talvez.
— Não. A resposta certa é não.
Encaro-o por alguns segundos mais antes de soltá-lo e sair do seu colo. Vou até o armário, onde minha pequena coleção de livros começa a aumentar, conforme trago mais e mais exemplares para cá. Percorro os olhos pelas lombadas, até que encontro o que procuro. Abro-o e folheio, procurando o trecho certo.
Sinto seus olhos silenciosos sobre mim enquanto me aproximo, mas não ergo os meus em sua direção. Ao invés, encontro o parágrafo que procurava:
— "Não deveríamos amar apenas o que nos serve" — recito, os olhos percorrendo as frases destinadas a outro propósito, mas que me servem tão bem. — "Todo corpo sob a luz produz sombra, e a sombra faz parte de nós. É justamente na aceitação do imperfeito que vem a nossa força".
Ergo o rosto na sua direção, sendo presenteada pelas duas poças límpidas que Henrique carrega nos olhos, tão perdidas e tumultuadas agora, mas que ainda abrigam a alma do homem que amo. Continuo saltando frases, construindo um mosaico do que preciso dizer:
— "Não existem binarismos na alma, apenas bom ou ruim. A vida não tolera a simplicidade da dicotomia. Bom versus ruim, certo versus errado. A vida é complexa, caótica, difícil" — completo, fechando o exemplar de capa esverdeada. Ele aperta os olhos, tentando ler o título, então ofereço-o em um sussurro: — Jornada das bruxas.
— Bruxas? — Henrique esfrega um olho e recosta a cabeça na cabeceira, já sem qualquer disposição para me afastar, virando a palma para cima e movendo os dedos para me chamar.
— Bruxas — confirmo, dando de ombros, colocando o livro na mesinha lateral, aproximando-me a passos lentos. Arqueio uma sobrancelha atrevida para ele, um dedo displicente circulando em sua direção. — Tu acha que isso é o suficiente pra me afastar? — Repuxo os lábios, e ele me presenteia com o primeiro sorriso em tempo demais.
Monto em seu colo, dedilhando a pele do seu braço, contornando as pintinhas esparsas cobertas por um bronzeado discreto demais.
— Não tem quantidade suficiente de amor que vá me consertar. Sabe disso, não sabe?
Tombo a cabeça para o lado.
— Tu não está quebrado para precisar ser consertado. Imperfeito, teimoso e com essa manina irritante de tentar me afastar, mas não quebrado.
Ele nega com a cabeça e fecha os olhos por um segundo.
Mordo o lábio.
— Meu aniversário do ano passado — começo. — Nova Hamburgo.
— Sei que seu sonho é ver as estrelas no outback australiano, mas isso era um pouco complicado demais — murmura, quase se desculpando. — Foi o melhor que consegui fazer.
— O melhor que tu conseguiu fazer foi uma viagem de seis horas dirigindo para acampar e ver estrelas — aponto o óbvio, mas ele ainda reage com um chacoalhar de ombros. — Tu odeia acampar, Henrique. Odeia viagem longa de carro.
— Era seu aniversário — responde, como se fosse toda a explicação necessária. E é. É exatamente o ponto que estou tentando fazer:
— Tu ficou comigo tantas vezes que já perdi as coisas, todas as vezes que minha tia precisou ir para o hospital, ou quando eu estava preocupada demais para conseguir ficar longe dela. Cansou de me levar almoço quando eu estava presa no trabalho, ou me trazer remédio quando estava doente. Tu sabe minha cor preferida, o que gosto ou não de comer. Nunca perdeu uma palestra minha. Henrique... — Faço-o olhar para mim, segurando seu rosto entre minhas mãos. — Eu não tenho motivo para não te amar.
Ele abre a boca, mas interrompo-o.
— E vou repetir isso quantas vezes precisar até tu entender. Não me importo. A essa altura, tu já devia saber que se tem uma coisa que não sei fazer é largar o osso. Desiste. Não vou a lugar nenhum.
Henrique me encara em silêncio por alguns segundos. Sua única reação é me enlaçar pela cintura e me tirar do seu colo, puxando-me para me deitar na cama ao seu lado, seu rosto no meu ombro, pernas enroscadas nas minhas.
— Na saúde e na doença, guri — murmuro, acariciando seu cabelo ainda úmido.
Sinto seu corpo tremer com uma risada baixa.
— Nós não somos casados, Jéssica. Ainda dá tempo de você fugir.
— Nos teus sonhos — implico.
Após alguns instantes de silêncio, acho que Henrique adormeceu e alcanço seus braços, tentando desvencilhá-lo de mim para tomar banho. Ele me aperta mais, contudo, e me acomodo de novo na cama. Com um suspiro, ele afunda a cabeça no meu pescoço, me abraça mais e começa a falar.
OI, MENINES!
Jéssica está se despedindo, por enquanto. No próximo capítulo, começamos a narração do Henrique.
Nervosa? Estou.
Desesperada? Um pouco.
Já sabem o esquema: segurem minha mão e vamos.
Deixo aqui a indicação do livro que a Jéssica pegou para citar: Jornada das Bruxas, da Karina Heid (vou deixar o perfil dela marcado em um comentário aqui >)
Recomendo fortíssimo a leitura (selo de garantia meu e da Jessi, né pouca coisa não haha). Aproveitem para dar uma olhadinha no perfil da Karina enquanto esperam pelo próximo capítulo que prometo que não vão se arrepender das preciosidades em forma de livro que vão encontrar lá
Amo vocês!
Até breve <3
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