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A cor do horizonte começava a mudar muito rápido diante dos seus olhos, em breve as primeiras gotas de chuva começariam a cair e pelo pretume que se formava não seria apenas uma simples pancada e sim um temporal. O caminho de terra por onde veio até chegar ao asfalto formavam alguns pequenos redemoinhos, as copas de algumas árvores quase dobravam. Ela observava essa dança perigosa da natureza pelo seu retrovisor enquanto que no seu para-brisa os primeiros borrões de chuva ficaram ali contidos. Pisou com mais pressão no acelerador e o barulho que o motor fez lembrava uma reclamação. Um pedido de socorro. De pausa. De exaustão. Então foi a vez do carburador engasgar e em apenas alguns metros junto com o cair da chuva mais intensa a velha caminhonete Ford não aguentou e parou e Fiona sabia que ela não sairia mais do lugar.
Fiona encarou novamente o horizonte agora totalmente irreconhecível por conta do temporal que assolava aquela pequena cidade no interior do Wyoming. Respirou profundamente tirando a chave da ignição para logo em seguida passar seus braços sobre o grande volante e deitar sua cabeça. Fechou seus olhos e ali ficou apenas escutando o sibilar desenfreado e assustador do vento passando pelas frestas dos vidros das janelas junto com o barulho dos pingos sobre a lataria daquela velharia que tanto amava. Sabia que havia passado da hora de trocar aquela relíquia, mas Fiona tinha alguns apegos e aquele automóvel definitivamente era um deles.
Por sorte esse tipo de chuva não durava muito tempo e depois de meia hora parada no acostamento correu seus olhos pela rodovia, vazia como quando deixou a estrada de terra da fazenda em que vivia. As árvores pararam de envergar e a poeira já havia sido dominada pela umidade da água e antes de descer da caminhonete Fiona olharia para os dois lados da rodovia. Do lado de fora do seu Ford F-100 modelo 1985 sentiu as gotículas geladas sobre sua face pálida. Caminhou rapidamente em direção ao capô abrindo logo em seguida. Fiona possuía muitas habilidades, porém mecânica nunca fora uma delas. Tentou. Olhou. Mexeu em alguns cabos, correu de volta para dar partida. Nada. Estava morto. Saiu novamente, agora com apenas uma garoa muito fina, quase que imperceptível molhando seus cabelos castanhos presos em um rabo de cavalo e enfiou o nariz de volta aquele emaranhado de fio e ferro.
— A moça precisa de ajuda?
Totalmente imersa em sua necessidade de desvendar o mistério daquele motor, Fiona sequer notou a aproximação de outro veículo. Talvez se esse fizesse tanto barulho quanto o dela quando funcionasse ela teria percebido, ou talvez não, quando concentrada Fiona entrava em um estado de transe que praticamente a levava para outro lugar.
— Pode deixar que eu faço isso.
Fiona encarou séria o homem desconhecido que enfiou a cabeça ao seu lado. Rapidamente se afastou e o observou ainda confusa sem imaginar de onde ele havia saído. Olhou ao seu redor e então viu outra caminhonete bem mais nova que a sua mais à frente. Nela havia algo escrito e Fiona deu alguns passos para trás para tentar ler.
"Ted Banner – Mecânico"
Balançou a cabeça como se não acreditasse em sua sorte, afinal, era algo que ela desconhecia. Pelo menos até aquele momento a sorte nunca havia lhe sorrido e Fiona estava prestes a completar quarenta anos naquele verão. Será que as coisas mudaria dali para frente, se questionava enquanto observava o homem desconhecido mexer no motor de sua preciosidade.
— Moça tenta dar partida.
Fiona ainda sem falar uma única palavra com o rapaz correu de volta para dentro da caminhonete e fez o que lhe foi solicitado e nada. Sorriu com desdém. Definitivamente a sorte não estava sorrindo, estava apenas lhe acenando e muito de longe.
— É infelizmente é o que suspeitava. Vou ter de guinchar sua caminhonete e levar até a minha oficina.
— Mas tem conserto?
— Tem sim, pode ficar tranquila. Percebo que trata muito bem dele. — o rapaz abaixou o capô fechando para logo em seguida caminhar em direção a sua caminhonete.
— Presumo que Ted... — Fiona apontava para o nome grafado na lateral do automóvel enquanto Ted voltava com o cabo para prender na sua caminhonete. — seja você. Fiona. — então ela lhe estendeu a mão. — Obrigada por me salvar.
Ted com a mão vazia retribuiu o gesto e seguiu fazendo o seu trabalho. Era ágil e rápido. Fiona reparou nisso e também que deveria ser forte pelo porte físico que possuía. Braços torneados com músculos que ficaram bem aparentes naquela camiseta preta justa e a calça jeans mesmo que surrada e um pouco suja de graxa deixava evidente pernas também trabalhadas. Notava que era um homem com um pouco mais de quarenta anos, não muito mais que isso, seus cabelos quase não tinham fios brancos, eram de um castanho mais escuro que o dela.
— Pronto. Posso te deixar aonde estava indo.
— Não quero abusar da sua boa vontade, mas seria de grande ajuda. Mais uma grande ajuda.
— Que isso. Entra que eu te levo. Estava indo para onde?
Seguiam em direção a caminhonete de Ted. Fiona foi para o lado carona e Ted sentou no seu lugar costumeiro desde que voltou da sua última missão do Afeganistão. Algo que Ted evitava falar.
— Estava indo para loja de ferramentas do senhor Maxwell e em mais alguns lugares, mas me deixando lá eu já consigo me virar.
— Então vamos para lá.
Ted deu partida e sempre que isso acontecia o seu rádio ligava e com ele alguma música de rock dos anos setenta, suas preferidas tocavam. Seguiriam em silencio apenas com a melodia entre eles até o destino de Fiona. Ela tentou puxar em sua memória a última vez em que foi carona de alguém. Isso já tinha muito tempo. Tempo demais. Mais do que o desejado por ela. Tempo em que Joe McCarthy vivia por ali.
A chuva já havia passado quase não tinha mais nuvens carregadas no céu. Estava voltando a ser azul. Um azul intenso e imenso, de uma grandiosidade que a afrontava mostrando o quanto a sua presença naquele mundo era insignificante. Ela gostava do cheiro do pós-chuva que vinha do mato. Inspirou um pouco mais profundo e aquele ato chamaria atenção de Ted ao seu lado que deixou de prestar atenção nas músicas e a mirou através do espelho retrovisor. Não queria que ela percebesse que ele a encarava. O que ele reteve nesse momento furtivo fora um sinal que ela tinha bem próximo ao canto do lábio inferior esquerdo, o lado para onde ela constantemente repuxava seus lábios.
— Chegamos. — Ted dessa vez deixou que seus olhos quase negros encontrassem os castanhos dela.
— Mais uma vez muito obrigada por ter me salvado. Parece que um anjo te colocou naquela estrada.
— Na verdade foi a dona Philomena que me fez ir consertar sua máquina de lavar.
— Você também conserta essas coisas?
— Normalmente não, mas dona Philomena sabe ser persuasiva.
Fiona apesar de ter passado a sua vida inteira naquela cidade não fazia ideia de quem seria dona Philomena, e pela forma como ele falava sentia que era alguma senhora da qual ele tinha algum apresso e gostou daquilo. Fiona gostava desse tipo de pessoa, que se dispunha ajudar a outra, talvez por ter pouco disso dentro de casa dava valor ou até mesmo invejasse quem tinha certo tipo de carinho. Um carinho incondicional, apenas um dever de fazer o bem sem ver a quem.
Ela deixou a caminhonete e seguia em direção a entrada da loja, foi quando percebeu que não tinha combinado valores, prazo do serviço, ou seja, absolutamente nada. De alguma forma desde que ele a abordou na beira da estrada sentiu-se aérea.
— Meu Deus! — Fiona retornou colocando sua cabeça pela vidraça do carro que estava aberta do lado que havia descido. — Não combinei absolutamente nada com você.
— Já estava terminando de anotar aqui meu contato e ia te entregar. — Ted passou para ela um pedaço de papel em que anotou seu nome e telefone.
— Sabe mais ou menos quanto tempo deve levar para ficar pronto? — Fiona pegou o papel, observou rapidamente o que estava ali escrito e o guardou no bolso traseiro de sua calça jeans.
— Vou tentar fazer o mais rápido, mas possivelmente terei de encomendar algumas peças, convenhamos essa sua belezura já é praticamente uma raridade.
— Eu bem sei. — Fiona quase esboçou um sorriso naquele momento e se conseguisse sorrir seria o primeiro em quinze anos, nem seus sobrinhos que ela amava mais do que tudo nesse mundo conseguiam essa façanha. — Quem normalmente toma conta dos automóveis da fazenda é o seu Jonhson...
— Quer que ele conserte?
— Não! — Fiona diria alto demais a deixando surpresa por sua reação, afinal era o que ela devia ter feito assim que seu Ford parou na estrada, ter ligado para o mecânico da família Calloway, mas por algum motivo não o fez, o que a levou encarar o resquício de chuva e abrir aquele capô e tentar consertar o que jamais saberia consertar e então um completo estranho parou e lhe ofereceu ajuda e ela sentia naquele momento que talvez ele estive oferendo até mais do que isso, mesmo que ele ainda não soubesse. — Leve o tempo que precisar. Faz assim anota também o meu telefone e me liga quando estiver pronto que vou buscar e te pagar, lógico.
Ted pegou outra folha do seu bloco de papel que sempre levava consigo e anotou o nome da moça séria e muito quieta e o seu telefone. Quando chegou em sua oficina trinta minutos depois de tê-la deixado anexou o papel com seus dados em um painel que ficava ao lado do computador velho e ultrapassado do seu escritório na oficia que havia montado na parte mais afastada e de periferia daquela pequena cidade ruralista do Wyoming. Estava vivendo ali já tinha cinco anos e sentia que havia acertado em sua escolha em deixar o passado de terror vivido na guerra para trás e seguir com algo mais leve e como a sua mãe um dia lhe disse: normal.
Dona Ava não gostou nada quando soube do seu único filho varão que este se alistou no exército assim que terminou o ensino médio. Uns anos antes o pai os havia deixado e Ted não via outra solução para trazer alimento a sua casa senão entrar para o serviço militar, pelo menos curto prazo aquela seria uma alternativa que permitiria que sua irmã dois anos mais velha terminasse seu curso de secretária e assim conseguisse um emprego decente e que trouxesse a mãe e a ela certo conforto. E sem o pai ele sentia-se nessa obrigação de manter a vida que tinham como antes e por conta do seu orgulho se alistou e se jogou no horror da guerra.
Não que fora fácil seu retorno. Ainda sentia os reflexos dos traumas daqueles anos em conflito. Muitas noites mal dormidas, sonhos constantes, pesadelos, crises de ansiedade, período de insônia e ter voltado para um lar vazio não ajudou em nada. No período em que esteve no Afeganistão à doença levou sua mãe, e a única irmã vivia sua vida inserida em outra família, não achou justo fazer com que ela lidasse com um homem repleto de fantasmas, isso ele teria de carregar consigo sozinho e a noite era o pior momento, o momento em que esses fantasmas ganhavam rostos sem nomes. Resolveu deixar tudo para trás e mudar completamente de vida com o dinheiro que tinha guardado conseguiu comprar essa oficina mecânica e sente que foi a melhor decisão que tomou em sua vida. Os pesadelos quase não o assombram mais desde que iniciou em sua nova jornada. Tenta manter-se em paz e afastado de grandes confusões. Virou um homem caseiro algo que a irmã acharia muito estranho para o garoto rueiro que ajudou a mãe a criar. Quantas e quantas vezes saíram iguais loucas pela vizinha em sua busca para vê-lo aparecer com a cara lambida dali alguns dias como se nada tivesse acontecido. Como quando meteu-se em uma briga por conta de uma namoradinha de escola e desse ato resultou a quebra do seu nariz, motivo dele seguir achatado até hoje, toda vez que ele se olha no espelho lembra do olhar de horror de sua mãe e das duras palavras que ela lhe disse e depois dos afagos em seus cabelos. Ele sabia que muitos dos fios da cabeça inteira branca de sua falecida mãe ele fora o responsável e ele tinha certeza que se tivesse ficado e não voltado para o combate ela ainda estaria viva. Tanta coisa teria sido diferente se tivesse ficado, mas não podia mudar o passado então seguia olhando para o seu presente, raramente pensava no futuro. Depois de ter destruído tanta coisas pelo caminho com sua arma de fogo sabia que o futuro não passava de uma utopia e que o presente e esse sim merece ser vivido e apreciado e era o que fazia naquele momento com a cabeça dentro do capô do Ford F-100 modelo 1985 enquanto desmontava seu motor para saber qual peça deveria encomendar.
Como um bom profissional que se tornara identificou o problema rapidamente realizando a encomenda da peça. A única coisa que desagradou fora justamente o prazo de entrega, apenas dali uma semana, gostaria de entregar a caminhonete mais rápido para a moça e assim poder vê-la o quanto antes. Durante esses anos em que estava vivendo ali sabia algumas coisas sobre a família Calloway. Eram muito importante na comunidade o patriarca Robert Calloway já havia ocupado até o posto de prefeito da pequena Green River, isso antes de Fiona nascer, ainda quando ele vivia na mais completa felicidade com sua finada esposa Cora. Depois da morte da esposa Robert perdeu a vontade de fazer muitas coisas e vivia dedicado a suas fazendas na região. Evitava ficar em Green River, praticamente delegou a administração desta fazenda a Joe McCarthy um jovem e promissor rapaz cheio de energia e ambições, o filho que ele desejou e nunca teve. Levou consigo para as outras fazendas mais próximas da capital Cheyenne suas duas primeiras filhas Kristen e Reese, enquanto que o pequeno bebê Fiona ficou aos cuidados dos empregados e de Joe.
Somente quando Joe decidiu seguir outro rumo em sua vida foi que Robert voltou a morar em Green River para desespero de Kristen e Reese que acabaram culpando Fiona por essa decisão. Ter crescido longe das irmãs fizeram com que não criassem laços afetivos e Fiona sabia que elas e o pai a culpavam pela morte da mãe que morrera ao lhe dar a luz. E Fiona fez e ainda faz de tudo para lhe agradar mesmo com todo o desprezo que eles lhe demonstram. Mesmo com toda a frieza e descaso. Nem os funcionários são tão mal tratados por eles como Fiona. E por isso que ela desde a volta dos seus parentes de sangue se fechou em um casulo escuro, úmido, frio e solitário. Até aquele encontro ao acaso com o mecânico na estrada após o temporal. Ele veio como os raios de sol iluminar sua vastidão negra e foi pensando nele que seguiu o resto do seu dia com um sorriso tímido em seus lábios pouco usados, tanto de palavras, quanto de afeto.
— Demorou para voltar hoje. — Robert sentou no seu lugar a mesa, no topo, em sua postura austera apesar da doença o estar fazendo curva-se mais do que ele gostaria. — Achei que ficaria sem jantar.
— Sabe que não deixo te faltar nada pai. — Fiona pegou o prato do pai e começou a montá-lo.
— Já falei mais de uma vez para não me chamar assim. — o homem seguiu resmungando algo que Fiona não conseguiu identificar e desejou não ter feito. Desde o diagnóstico de câncer terminal há cinco meses o pai agia a cada dia de forma mais deplorável com ela, a última ação dele fora a proibir de chama-lo de pai.
— Devo chama-lo como? Sr. Calloway? — Fiona lhe entregou o prato com a comida que o médico permitira a qual Robert detestava.
— Exatamente. — o homem olhou para aquele pedaço de frango praticamente sem cor e fez uma careta. Robert Calloway é um homem de expressões marcantes. Nariz e orelhas grandes. Há também grandes bolsas embaixo dos seus olhos miúdos que se perdem ainda mais por conta de suas sobrancelhas espessas. E agora no auge dos seus setenta e três anos suas linhas de expressões estão mais e mais marcadas a barba branca tenta amenizar esses sinais dos anos, mas nada disfarça a amargura que carrega em seu peito e que agora encontra um alvo para seu alivio. Fiona sua filha caçula. — Que droga de comida é essa?
— A que o doutor permitiu. — Fiona resignada também fez seu prato com o alimento de um doente.
— Merda de doutor! Duvido que ele coma essa merda.
— Se ele estiver tão doente quanto o senhor talvez coma.
— Merda de doença! — Robert jogou o prato contra a parede atrás de Fiona. Esta podia jurar que ele errou o alvo.
— Está ficando louco?
— Recolha essa merda. — Robert levantou e seguiu para a sala sentando em sua poltrona diante da televisão murmurando palavras desconexas, das quais Fiona sabia que se referiam a ela.
Ainda sentada à mesa diante do seu prato com o alimento intocado encarou atrás de si a bagunça que o pai causou. A pouca fome que possuía – desde o diagnóstico do pai quase não se alimentava direito o que acarretou em uma perda significante de peso e para uma pessoa magra como ela ficava evidente não apenas nas roupas como em seu semblante, seu rosto estava a cada dia mais fino. – fora substituída pela necessidade de manter aquele lugar limpo e habitável, afinal o homem sentado à poltrona só sabia reclamar e Fiona estava cansada demais de tudo isso. Ela desejava um pouco de paz. E talvez só conseguisse com a partida dele e isso a deixava horrorizada por simplesmente pensar nessa possibilidade e por conta disso seguia resignada na sua função de filha dedicada.
Recolheu os alimentos junto dos cacos de vidro do prato estilhaçado e os jogou no lixo da lixeira. Depois veio com um pano úmido terminando a limpeza deixando o chão e a parede imaculados como outrora. Retirou a mesa, mas antes deixou um prato montado, sabia que mais tarde, quando estivesse sozinho ele se alimentaria, embalou esse prato com papel filme e colocou dentro do formo para manter aquecido. Lavou a louça suja deixando no escorredor. Com tudo limpo e organizado se despediu do pai na soleira da porta da cozinha que dava para área externa da fazenda. Caminhou com a luz da lua lhe guiando até o estábulo, acendeu uma luz fraca que ficava na entrada, verificou animal por animal que ali estavam protegidos até chegar ao seu xodó. O cavalo que Joe McCarthy havia treinado especialmente para ela. Um lindo cavalo de pelo marrom que ela dera o nome de Raio por causa da mancha branca entre seus olhos que lembram a forma de um raio. Ela acariciou sua crina e seu dorso e depois como se ele soubesse do que ela precisasse abaixou sua cabeça a deixando que colocasse sua testa na sua. Raio era sua válvula de escape. Era o seu amor incondicional. Ela sentia-se amada por ele, e por conta disso ia até ele todos os dias pela manhã quando o libertava pela fazenda e a noite quando ele lhe abençoava com uma noite de sono.
Fiona trancou o estábulo e seguiu alguns passos em direção ao celeiro. Certificou-se que este também estava fechado, caminhou ao seu redor indo em direção a um velho casebre de apenas um quarto. Casebre que há vinte e três anos fora a morada de Joe e que há dezessete passou a ser a sua. Fiona deixou a sede principal da fazenda quando sua irmã Reese se casou com seu grande e único amor Adam. Sentia não pertencer mais aquele casarão em que recebia o casal apaixonado nos feriados e férias. Era uma afronta ao seu coração partido que a irmã fazia questão de machucar toda vez que a encontrava. E ali naquele pequeno lugar sentia que podia ser ela mesma. A Fiona apaixonada por cavalos, a moça simples de poucos anseios que desejava apenas ser aceita e amada. Raio a amava, mas não era suficiente, Fiona sabia disso, mas ignorava com todas as suas forças. O medo de se machucar a dominava. Porém esse medo havia dado uma trégua, deitada depois de um dia agitado se permitiu a lembrar do rosto do homem que a socorreu na estrada. Fiona puxava em sua memória os detalhes quando se permitiu a fazer algo que raramente fazia: olhar as pessoas nos olhos. Ela pode ver olhos pequenos e espertos lhe encarando de volta. Olhos castanhos brilhantes, cheio de vida, mas também com segredos. Um nariz alargado e achatado, certamente algo no passado havia acontecido com ele e sentia-se curiosa em saber o que poderia ter sido. Percebeu em suas mãos largas que talvez a outra pessoa tenha sentido o peso delas e pelo músculos desenhados em seus braços fora algo justo.
— Fiona! O que está acontecendo com você?
Ela dormiria e acordaria com essa pergunta por dias. Durante seus afazeres na fazenda que a ocupavam praticamente o dia todo, até a hora do jantar com seu pai, esses pensamentos no homem da estrada fez com que essas tarefas seguissem mais agradáveis e fácil de se lidar.
— Patroa! — um dos capatazes da fazenda a chamava assim que a viu entrar no celeiro. — Um tal de Ted te ligou...
— O que ele queria? — Fiona correu em sua direção de forma animada, algo que raramente fazia. Fiona tem um andar muito característico, anda devagar com a postura curvada. Sua postura apenas muda para uma de confiança quando está cavalgando em Raio e naquele momento era o que o capataz via, como se Fiona estivesse em cima de Raio.
— Então ele disse que a caminhonete vai ficar pronta na sexta. Quem é esse Ted? Assistente do seu Jonhson?
— Não. É outro mecânico.
— Ih! Seu pai sabe disso?
— Ele não precisa saber. — Fiona o encarou séria. — Eu vou pagar com o meu dinheiro, ele não precisa saber de nada e você vai ficar de boca fechada.
— Ficar eu fico patroa, mas é que seu pai quem me deu o recado.
Aquela informação fez com que toda a postura de confiança e ar de felicidade evaporasse. Saiu do celeiro novamente curvada com seu ar de cansada. Para surpresa o pai não a questionou sobre o conserto da caminhonete no jantar. Robert estava acostumado com aquela velharia dando defeito e como seu funcionário, julgou que o rapaz que havia ligado e lhe dado todas as informações sobre o conserto e valores fosse um dos funcionários do seu velho amigo Jonhson.
Era quinta-feira, um dia antes do combinado. Ted tinha deixado à caminhonete pronta na noite anterior. Trabalhou nela até a madrugada. O desejo de ver a dona daquela relíquia era seu incentivo. Aproveitou o pouco serviço que tinha limpou a caminhonete por dentro e a lavou por fora. Estava como nova. Sentia orgulhoso do seu trabalho e Ted podia sentir-se assim era um ótimo profissional. A verdade é que Ted sempre foi muito bom em tudo que se atreveu fazer. Se não fosse o destino ter levado seu pai no auge do seu sonho poderia ter se tornado um grande jogador de futebol americano, ao invés se tornou um excelente atirador de elite. E agora orgulhava-se sendo esse simples mecânico de uma cidadezinha no interior do Wyoming.
Trocou suas roupas sujas de graxas colocando calças jeans limpas e uma camiseta branca e por cima sua jaqueta também jeans. Na caçamba da caminhonete colocou uma de suas motocicletas, uma Honda CB750 Cafe Racer 1973. Amarou com todo o cuidado e partiu para a fazenda dos Calloway.
Ted passava por essa estrada sempre que precisava fazer algum reparo no rancho da velha Philomena, uma senhora falante e amável que morava afastada do centro da pequena Green River mais por comodidade do que praticidade. Logo quando se mudou para este lugar perdido na terra como dona Philomena chamava, Ted ficaria com um dos seus quartos que ela costumava alugar e assim nasceu uma amizade entre eles. A senhora lembrava muito o jeito de sua mãe e por conta disso Ted jamais conseguia negar o que fosse a dona Philomena e sempre que podia lhe fazia uma visita. Só que dessa vez ele não iria até o pequeno rancho dessa senhora acolhedora e falante, ele finalmente entraria na estrada particular que o levaria até a grande fazenda Calloway.
Pensou que o caminho lhe impressionaria mais. Não foi assim que aconteceu. Era apenas grandes pastos e cercas pintadas de branco margeando a estrada estreita. Viu alguns gados espalhados pelo pasto e mais nada. A entrada alguns quilômetros adentro também não tinha nada de austero. Apenas grandes portões de madeiras também pintados de branco que estavam abertos, como se o convidasse a entrar. Andaria apenas alguns metros e avisou o casarão cede. Dois andares de madeira branca. Ambos andares possuíam varandas largas. Imaginou Fiona ali debruçada no parapeito do andar superior olhando para ele embaixo. Sentiu que ela ficaria linda dessa forma e não sabia dizer o motivo. Seus pensamentos seriam interrompidos em breve por um homem velho com ar de ranzinza.
— Posso te ajudar rapaz? — Robert se aproximou de Ted ainda dentro da caminhonete.
— Vim devolver a caminhonete da Fiona.
— Minha caminhonete você quer dizer. Nada aqui é da Fiona.
Ted o encarou sério e Robert percebeu a mudança de humor do rapaz. Sentiu-se satisfeito por isso.
— Você não trabalha para o senhor Jonhson, se trabalhasse saberia disso. Você pode deixar a caminhonete ali perto do celeiro. — Robert apontou para o local indicado e começou a voltar para o casarão. — Fiona deve estar lá também, veja com ela o pagamento, não vou pagar por esse conserto que não aprovei.
Robert entrou no casarão enquanto Ted em silencio o viu partir seguindo em direção ao celeiro, mas a sua vontade era de voltar e dizer poucas e boas aquele homem.
— Que filho da puta arrogante! — Ted estacionou e desligou o motor, desceu da caminhonete e olhou ao redor. Alguns tratores e equipamentos de fazenda espalhados. Podia ver alguns peões mais afastados em seus afazeres e ambas as portas do celeiro aberta, com alguns passos já estava dentro e avistado Fiona conversando com um rapaz com traços de imigrante mexicano. Ela usava uma roupa parecida com o dia da chuva. Uma calça jeans ajustada em seu corpo magro e uma camiseta xadrez em tons de verde e o rabo de cavalo prendendo seus cabelos.
Ted não passaria despercebido por muito tempo o rapaz que estava de frente para entrada pode vê-lo se aproximando e fez um sinal com a cabeça para sua patroa que virou-se na direção apontada. Se tivesse um espelho diante de Fiona ela teria visto algo que ela raramente via: seu sorriso.
— Oi. — Fiona abandonou o funcionário e seguiu em direção ao Ted com ar confuso.
— Sua raridade ficou pronta, vim te devolver.
— Sério? — novamente Fiona sorriu, aquilo já estava ficando rotineiro na presença de Ted. — Bruno me disse que ficaria pronto amanhã, na sexta-feira, ele deve ter errado...
— Não ele está certo. Falei que ficaria pronto só amanhã, mas acabei terminando antes. E aí quer dar uma olhada?
— Claro!
— Está ali fora.
— Vamos lá.
Os dois seguiram até a saída do celeiro lado a lado e então Fiona não conseguiu se conter quando viu seu Ford F-100 todo limpo e com os parachoques brilhando.
— O que você fez? — Fiona já não escondia sua felicidade e seu sorriso era de genuína alegria. Um sorriso largo mostrando seus dentes perfeitamente alinhados e lindas covinhas que se formavam em sua bochecha. — Está como nova! Obrigada. Muito obrigada!
— Calma. Ainda não escutou o ronco do motor para saber se ficou bom.
— Vendo ela desse jeito eu acredito em você.
Ted jogou a chave para Fiona que agarrou no ar e correndo seguiu para dar partida e ele estava certo o ronco do motor a faria gargalhar alto. Bruno seu funcionário que estava ali o tempo todo não acreditava na cena que estava vendo. Ele nunca tinha visto a patroa feliz.
— Cara tu fez um milagre acontecer. — Bruno se aproximou de Ted.
— Como assim?
— Eu nunca vi essa mulher tão feliz como hoje. — Bruno o encarou. — Na verdade eu não sabia que ela sabia sorrir quem dirá gargalhar e ela mais do que ninguém merece.
— Tá perfeito! — Fiona desligou o motor e foi em direção aos dois homens que lhe observavam com interesse. — Se viu Bruno? Tá como nova.
— Vi sim patroa.
— Obrigada mesmo Ted pela dedicação.
— Só fiz meu trabalho.
— Um maravilhoso por sinal. Bom não só de elogios você vive. Preciso te pagar.
— Faz parte do processo.
— Só que você me pegou desprevenida, como disse que ficaria pronto só amanhã não tenho todo valor.
— Não tem problema. Eu que me adiantei você acerta outro dia.
— Não acho justo, mas infelizmente eu não tenho como sair daqui agora para tirar o que lhe devo. — Fiona demonstrava inquietação, se tinha algo que ela detestava era esse tipo de coisa, ficar em dívida com alguém.
— E seu pai? — Bruno interfere, é um habito frequente dele, Robert o recrimina, Fiona era incapaz.
— Isso é algo meu Bruno, meu pai não tem nada com isso.
— Ah! É mesmo você nem queria que ele soubesse...
Fiona o encara de forma brava e Bruno para de falar e então ela se volta para Ted que os observava com atenção.
— Vi seu pai quando cheguei e ele disse que não pagaria o conserto.
— Ele te disse isso? Desculpa, meu pai anda com muitos problemas.
— Não tem que se desculpar por ele e também já disse que não precisa me pagar hoje, eu que vim antes do combinado.
— Faz assim leva a caminhonete.
— Claro que não.
— É o mais correto a ser feito, amanhã pego ela com você e te pago.
— Fiona eu sei onde você mora, sei que não vai me dar calote.
— Nisso ele tem razão. — novamente Bruno interfere e dessa vez recebe dois olhares de recriminação.
— Está certo. Amanhã acerto com você.
— Agora sim estamos nos entendendo. — Ted lhe estendeu a mão como para selar o acordo, Fiona aceita o gesto lhe oferecendo a sua.
Ted seguiu em direção à caçamba da caminhonete para pegar sua motocicleta enquanto Fiona lhe observa de longe. Novamente ela reparou em seus braços e mesmo com a jaqueta se mostram fortes. Sentiu um desejo súbito de ser abraçada por ele. Julgou que seria acolhedor ser envolvida por aqueles braços grandes, largos e fortes. Ele já em cima de sua motocicleta prestes a dar partida Fiona o interrompeu:
— Teria algum problema de ir levar seu pagamento no final da tarde? Até que horas costuma ficar...
— Pode ir no horário que desejar eu moro atrás da oficina, mesmo que já esteja fechada estarei por lá. Amanhã te espero.
Fiona ficou ali parada esperando Ted sumir de suas vista e mesmo quando o fez ela permaneceu no mesmo lugar por alguns instantes só saindo depois de Bruno lhe tirar de seus devaneios. Devaneios dos quais ela desejava permanecer para sempre.
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