Capítulo 9
Os dias seguintes foram de muita festa para as famílias que tiveram o retorno de seus filhos. A cada novo guerreiro que chegava, Eira agradecia a deusa mãe por proteger Liam e trazido ela de volta apenas com uma cicatriz no rosto. O único problema é que ela só havia visto a do rosto e não as que estavam escondidas por baixo da roupa. Com um treinamento tão puxado e doloroso, era normal os guerreiros voltarem faltando partes do corpo como dedos, braços, orelhas. Por isso Eira estava mais que agradecida por sua amiga ter voltado inteira. Já bastava seu irmão, que não aceitava ajuda nenhuma.
Foram necessárias cinco mudanças de lua para que todos que haviam partido com Liam retornassem as suas casas. Quando todos chegaram, o Eolaí informou-lhes que a cerimônia ocorreria na terceira noite seguinte e lembrou-lhes que o ritual de purificação deveria ser feito assim que o sol se erguesse, na parte do rio que estava nas terras da aldeia. Sua mãe ou a mulher que os tenham criados deveria acompanhá-los, pois o ritual era considerado o primeiro banho de uma nova vida.
Quando os futuros guerreiros chegaram ao local, Alessa já estava amarrando o colete de Liam que, com os cabelos molhados, demonstrava já ter feito o ritual. Aqueles a não aceitar o treinamento dela reclamaram de haver feito o ritual separado deles, que o Eolaí não iria aceitar, mas antes de Liam responder, Alessa tocou em seu braço, sorriu para os outros e disse que havia sido o próprio Eolaí a ordenar que ela fizesse o ritual antes deles para que não houvesse nenhum problema com relação à sua honra. Depois puxou Liam pelo braço levando-a em direção ao santuário de Mórrígan onde ela ficou a espera até o momento da celebração. Apesar de já existirem algumas pessoas seguindo a outro deus, eles mantinham a tradição de intercederem aos antigos deuses para tudo que fosse necessário; fosse uma benção ou ajuda em uma batalha, eles eram sempre invocados. À noite os jovens foram vestidos com a túnica de tecido vermelho, camisa branca, braccae e botas, cor de terra e encaminhados até o salão de reuniões, que era agora bem maior que a 9 anos atrás, onde o Eolaí e Enid os aguardavam. O local estava enfeitado com espadas e guirlanda de flores e as pessoas se encontravam agrupadas dos dois lados deixando um espaço à frente de Devin, onde os futuros guerreiros estavam em duas filas, diante do mesmo, que se levantou fazendo com que todos os que ali se encontravam silenciassem.
— Hoje é um dia feliz para nosso clã, pois estamos reunidos para celebrar esses novos guerreiros que voltaram e vão prestar seu juramento de lealdade após tanto tempo de preparação. Sei que, graças aos deuses, estamos em um período de paz; nossa aldeia não tem sofrido ataques há um bom tempo, mas mesmo assim não podemos deixar de nos proteger, pois nunca saberemos quando nossos inimigos irão atacar novamente. Por isso agradeço por esses jovens terem escolhido se tornarem guerreiros, pois assim podemos continuar nesse período de paz, sabendo que seremos sempre bem protegidos.
Ao final ele fez um sinal e o primeiro guerreiro se aproximou e ajoelhou-se na frente do Eolaí.
— Assim como os antigos guerreiros juraram lealdade e proteção aos seus suseranos, eu também juro minha lealdade a vós, Eolaí. Juro lutar para protegê-lo e também proteger a minha família, minha aldeia, com todas as minhas forças, até o último momento de minha vida. — disse o guerreiro fazendo assim seu juramento de lealdade e depois levantando-se.
Quando este ficou de pé, duas mulheres se aproximaram, uma de cada lado e retiraram a túnica e camisa deixando-o apenas com o braccae, depois pegaram potes de cerâmica que continha uma tinta azul e começaram a fazer desenhos intricados no rosto, tronco e braços dele. Enid se aproximou, colocando a mão direita na cabeça dele, dizendo baixo uma prece à deusa da guerra, enquanto jovem repetia em voz alta:
Mórrígan Mórrígan, rainha corvo
Eis-me aqui para servir-te
Torna meu coração forte e valente
Que não me falte coragem
Nas lutas da vida
Grande Mórrígan
Que eu seja digno de erguer a tua espada
Não para atacar sem honra
Mas para defender
A mim e a tudo aquilo
Em que meu coração acredita
Após o fim da prece, as mulheres terminaram os desenhos Enid sorriu para o jovem dizendo para todos escutarem:
— Com a benção de Mórrígan, nossa protetora nas batalhas, eu lhe saúdo e lhe recebo como guerreiro desta aldeia. Sê valente, destemido e leal.
O guerreiro fez uma reverência ao Eolaí, logo depois Carrick se aproximou trazendo um manto nas cores da aldeia, vermelho, verde e dourado, que logo foi preso em seu ombro, em seguida recebeu sua espada de bronze e o escudo circular. Quando este se afastou juntando-se aos guerreiros veteranos, um dos outros jovens da fila, se aproximou e o ritual foi ocorrendo igual ao anterior, até que, chegou a vez de Liam se aproximar, mas antes que pudesse ajoelhar o Eolaí ergueu a mão detendo-a.
— Você passou por todo esse treinamento com o único propósito de proteger a Bean Uí Eira — ele se virou para sua filha e pediu para que ela viesse ao seu encontro. Timidamente ela caminhou até o pai e este a colocou onde estivera antes, na frente de Liam — E é a ela que você deve fazer seu juramento de lealdade.
Eira e Liam se olharam por um tempo, como se conversassem silenciosamente, depois um sorriso aparecer nos lábios de Eira sendo correspondida por sua guerreira, esta teve sua coragem renovada se ajoelhando para realizar seu juramento.
— Assim como os antigos guerreiros juraram lealdade e proteção, eu também juro minha lealdade a vós, Bean Uí Eira. Juro lutar para protege-la com todas as minhas forças, até o último momento de minha vida.
A guerreira levantou-se no mesmo instante que as duas mulheres se aproximaram e ficaram olhando sem saber como proceder, pois, Liam era uma mulher, não podia ficar nua na frente de tantas pessoas sem comprometer sua honra. Entretanto, Liam lhes garantiu que elas podiam tirar sua túnica e camisa sem nenhum problema, o que deixou Carrick desesperado com essa atitude de sua filha, mas quando a camisa fora retirada, seu corpo estava coberto com uma faixa larga de tecido branco, que deixava apenas os braços e os ombros nus.
Enid se aproximou de Liam e tocou sua cabeça, ficando instantaneamente com seus olhos completamente brancos por algum tempo deixando a jovem guerreira assustada, pois todos sabiam que quando isso acontecia, significava que Enid estava tendo um vislumbre do futuro. Quando seus olhos voltaram ao normal, ela olhou com admiração para Liam, e depois olhou para Eira com a mesma expressão no rosto, mas não disse nada a nenhuma das duas. Voltando seu rosto para Liam, começou dizer a prece a Mórrígan, Eira se aproximou dela, falando quase em um sussurro.
— Enid, teria algum problema na cerimônia se a prece não for a Mórrígan e sim a Danu?
— A deusa da guerra lhe assusta, iníon? — Enid perguntou sorrindo.
— Não é por esse motivo, é apenas porque não tenho desejo de ir a nenhuma guerra.
— Entendo o que quer dizer iníon. Se é esse seu desejo, eu atenderei, mas... — a druidesa parou por um momento o que dizia olhando com tristeza para Eira — nem sempre o que desejamos é o que vai acontecer. Só o futuro mostrará a verdade sobre quem somos e sobre o que nascemos para fazer.
— Não compreendo o que quer dizer Enid.
— Vai entender quando chegar a hora, — ela então olhou para Liam — as duas irão entender. Quanto à prece, sim, posso fazer para Danu no lugar de Mórrígan.
Enquanto Enid falava baixo, Liam repetia as mesmas palavras em voz alta para todos escutarem, ao mesmo tempo, as mulheres desenhavam em seu corpo.
Senhora Mãe dos Deuses
Chama da noite
Criadora de tudo que é livre
Mãe de homens e mulheres
Senhora da minha vida
Guia-me com sabedoria
Enche-me de coragem
Para enfrentar as batalhas
Purifica-me
Faz-me ser aquela que ergue a espada em teu nome
Para proteger tudo que me é sagrado
E peço-te que mostre-me o caminho da tua verdade
Que assim seja e assim será
Enid se afastou dando seu lugar a Eira, que finalizou a cerimônia com as mesmas palavras que a druidesa dizia aos outros jovens.
— Com a benção de Danu, nossa mãe suprema, eu lhe saúdo e lhe recebo como minha guerreira. Sê valente, destemida e leal.
Liam fez uma reverência para a Bean Uí e Carrick se aproximou trazendo um manto apenas vermelho e prendendo no ombro da filha, depois afastou-se. Liam olhou por um momento sem entender o porquê não trazer também sua espada e escudo até que Eira notou sua apreensão.
— Liam, quando eu voltar para casa, após a festa, você pode me acompanhar?
— Claro que sim Eira.
E se afastou juntando-se aos outros que estavam próximos ao Eolaí, mas Carrick segurou seu braço e a puxou para um canto entregando sua camisa.
— Vista logo essa camisa, antes que eu arranque os olhos de todos os homens dessa aldeia incluindo o seu irmão e o próprio Eolaí! — Liam rapidamente retirou o manto, vestiu a camisa e recolocou o manto — Ótimo! Agora aguarde aqui, pois Devin vai proclamar todos os direitos e deveres dos novos guerreiros.
— Eu não deveria ir também?
— Pelo que eu saiba não é ao Eolaí que deves obediência.
— Mas... Sei que fiz meu juramento à Bean Uí Eira, mas o Eolaí é o senhor destas terras, não deveria ser a ele que devo obedecer?
— Você mesma respondeu à sua pergunta. Foi à Bean Uí Eira que fizeste juramento de obediência e é apenas a ela que deves obedecer.
— E se o Eolaí me ordenar algo?
— Só ela, Liam. Depois dos deuses você obedece apenas a Bean Uí Eira e a mais ninguém.
— Se eu for para outro clã, eles não aceitarão que eu só obedeça a ela.
— Para isso o Eolaí criou uma carta contendo essa informação que, com seu brasão, será aceita em qualquer lugar e sempre que precisar ir a outro lugar irá leva-la. Além do que você não carrega o brasão do clã, pois não é a ele que você serve.
— Entendo. — falou olhando para Eira que, sentindo-se observada olhou de volta sorrindo para sua guerreira que foi retribuído por ela, pois é impossível não sorrir quando a sua pequena estar com o semblante tão feliz.
Quando a noite chegou à maioria dos guerreiros já se encontravam dormindo pelo chão de tão bêbados que estavam. Os mais velhos ainda aguentavam de pé, ou por serem mais resistentes, ou por não terem consumido muita bebida, mas dos jovens apenas Liam não havia bebido nenhuma taça de cerveja ale e se encontrava apoiada em uma das colunas do salão, o tempo todo observando sua Bean Uí bheag que dançava agora com seu irmão Ryan. Nove verões de dor, sofrimento e cansaço eram acalmados no coração da guerreira ao ver a felicidade de sua amiga naquele momento. Eira havia ficado tão feliz com seu retorno, como se Liam fosse a pessoa mais importante para ela. Bem, para a guerreira, a pequena era a pessoa mais importante que tinha; nem mesmo sua mãe lhe era tão importante.
Assim que a dança terminou Ryan abraçou sua irmã pela cintura, erguendo-a e girou-a pelo salão, fazendo com que o gostoso som da risada de Eira se espalhasse pelo ambiente, o que fez com que todos ali presentes, e acordados, também sorrissem. Desde criança Eira sempre foi a alegria daquele lugar e agora era a única que conseguia fazer seus irmãos sorrirem, principalmente Kesley, o herdeiro. Pelo que Liam percebera, seu treinamento, tanto fora da aldeia quanto dentro dela, foram difíceis; por ele ser o primogênito, teve mais coisas a aprender que os outros, fazendo com que perdesse muito cedo a inocência de criança, tendo apenas sua doce irmã para alegrar sua vida, retirando-lhe todo o peso da responsabilidade apenas com um sorriso.
Quando foi colocada no chão, Eira fugiu correndo para os braços de Flynn, que a abraçou como proteção de seu irmão. Ryan desistiu de perseguir a sua pequena irmã e foi sentar ao lado de seus irmãos gêmeos Aion e Jamie.
Percebendo que já estava tarde, ela beijou o rosto de Flynn, fazendo o mesmo com os outros irmãos, também com seu pai e, ao lado de sua mãe, saiu do salão indo para casa. Liam sabia que deveria ir junto, pois havia prometido, mas preferiu esperar um pouco para ela poder se arrumar para dormir, assim ela lentamente contou às pessoas que estavam no salão e após terminar, saiu indo para a casa de Eira onde foi recebida pela mesma que usava uma túnica branca comprida e seus cabelos estavam presos em uma única e grossa trança.
— Fico feliz que tenha vindo!
— Pediu para eu vir até aqui, e não estarei mentindo ao dizer que um pedido seu é uma ordem para mim!
— Não precisa exagerar! — disse sorrindo
Eira se afastou da porta que Liam pudesse entrar as duas subiram a escada indo para a parte da casa que Eira chamava de sua, onde uma cama simples, um baú e uma mesa para colocar seus pertences e uma vela que iluminavam o ambiente, era separados por placas de madeira presas uma na outra para que ficassem em pé. Quando Eira parou ao lado da cama, Liam ficou sem fala: nas costas da pequena se encontrava a vela acesa, fazendo com que ela fosse capaz de ver praticamente todos os contornos e curvas daquele corpo.
— Há algumas coisas que eu mesma almejava te dar, mas não queria que fosse lá no meio de todos. Já fiz mudar a prece tradicional, mas não me sinto confortável invocando Mórrígan quando não tenho nenhuma vontade de ir a uma guerra.
— Eu... — tentou respirar olhando para outra coisa que não fosse o corpo de sua pequena — Não tem problema, Eira, pois sei que Danu me abençoa para protegê-la de tudo.
— Me sinto melhor agora que dissestes isso.
— Que bom! Mas, não me chamastes para dizer isso?
— Claro que não, é que eu me lembrei que a espada que costumava usar era diferente, então pedi ao mestre ferreiro que lhe fizesse uma espada e um escudo que fossem diferentes dos usados aqui — ela disse erguendo o lençol da cama — Espero que seja do seu agrado!
Liam se aproximou da cama, e seu coração quase parou de bater ao ver a espada e o escudo que Eira havia mandado fazer para si. Com a lâmina longa, a espada iniciava mais larga, afinando na ponta, tendo o punho trabalhado em vermelho e dourado. O escudo, também longo, possuía o formato diferente dos outros guerreiros; em vez de ser redondo, era oval, fazendo duas pontas em cima e embaixo, sendo que a ponta de baixo fazia duas um pouco acima do meio que se uniam, tornando a fazer uma única ponta na parte superior; no centro estava o desenho de uma árvore, simbolizando toda a vida e a própria deusa Danu. Ela pegou a espada e o escudo, testando-os, amando o som que a lâmina fazia ao cortar o vazio.
— Por todos os deuses, Eira, eu nem sei o que dizer!
— Que bom que gostou! Tive medo que não gostasse ou que não lhe servisse.
— Estão perfeitos para mim.
— Fico muito feliz em saber disso!
— Mas, o que é isso? — perguntou Liam notando uma marca na espada, quando ela virou ao contrário, percebeu que se tratava de algo escrito — Blade Dhiaga?
— Sim, eu a consagrei a Danu, para lhe ajudar quando fosse necessário utilizá-la e os druidas me ensinaram que nomear um objeto faz com que ele receba a força daquele nome, por isso escolhi esse nome.
— O escudo também tem um nome? — ela virou o escudo de todos os lados até achar uma marca na parte interna do mesmo — Sciath Dhiaga.
— Sei que não são realmente nomes, mas é uma forma de proteger você.
— Eu agradeço Eira, por tudo! Você sempre faz tudo pensando no melhor para a outra pessoa, por isso eu te agradeço, tanto por lembrar que eu gostaria de usar uma espada diferente e ter corrido atrás para que o ferreiro fizesse uma especial para mim, quanto pela proteção que pede sempre para mim.
— Você é especial e importante para mim, Liam! Sei que é sua responsabilidade me proteger e cuidar de mim, mas eu também posso fazer isso por você do meu jeito; tento usar minha fé na Deusa para criar proteções para você.
— Obrigada, mais uma vez, por tudo! Eu gostei muito da espada nova e esse modelo diferente de escudo vai fazer os outros guerreiros quererem um igual.
— Se for verdade, estarei dando trabalho ao mestre ferreiro, disse ela sorrindo — tenho certeza de que ele vai gostar disso.
— Mas uma vez, obrigada por tudo!
— Eu é que tenho que agradecer a você Liam, por passar por tudo que passou até agora, para poder se tornar minha guerreira.
— Passaria tudo novamente se fosse necessário, para poder cuidar de ti! — as duas ficaram se olhando um tempo, quando Liam percebeu que apesar do disfarce da conversa, o que havia sentido pouco tempo atrás ao ver o corpo de sua pequena devido à vela ainda não tinha passado — É melhor eu ir, você deve estar cansada por tudo que teve hoje. Melhor eu voltar para casa e deixa-la descansar.
— Antes tenho uma coisa a te pedir.
— Basta dizer.
— Amanhã gostaria que selasse Myrkur de forma leve, pois quero muito ir em um lugar, mas meu pai só permitia se um guerreiro fosse junto, mas agora tenho você para ir comigo.
— Eira, se você me pedir para voar e lhe levar nas costas para conhecer outros lugares, eu vou com certeza conseguir fazer!
— Sei que sim, mas jamais te pediria para voar. Vá e descanse minha guerreira!
— Vou me acostumar a ser chamada assim. — disse sorrindo — Boa noite Eira! Durma bem!
— Você também, Liam!
Glossário:
Mórrígan - Deidade do panteão Celta, associada as forças da natureza. Deusa da batalha, da morte e da fertilidade, corresponde ao poder sagrado da terra, onde o ciclo de nascer e morrer, faz parte da renovação.
Danu - Senhora da Terra, da água, da abundância, da plenitude da Natureza e da soberania, do lar e da família, ela é a mais poderosa das Deusas celtas.
Blade Dhiaga - Lamina divina
Sciath Dhiaga - Escudo Divino
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