Liam estava certa quando disse que os outros estariam comendo, porém, o salão estava diferente do normal: além das várias rachaduras que se alastravam pelas paredes, o que antes era barulhento com todos falando ao mesmo tempo, hoje poucos conversavam entre si, tornando o ambiente silencioso e sombrio. O mais absoluto silêncio tomou conta do local assim que os cinco pararam no arco da entrada, e todos os quatorze pares de olhos pertencentes às guardiãs e seus guerreiros, estavam fixos, principalmente, em Eira e Liam.

Sentindo o peso dos olhares, Eira agarrou mais forte a mão de sua guerreira procurando forças para o que tinha que fazer e encontrou o que precisava ao sentir seu aperto ser correspondido.

— Sei que todos vocês devem estar decepcionados conosco pelo que houve ontem e também por termos nos recolhidos ao nosso quarto sem ao menos explicar tudo o que aconteceu. Por isso, tanto eu quanto Liam, pedimos desculpas, pois, nenhum de vocês merecia esse comportamento da nossa parte.

Liam e Eira se curvaram para os outros, porém, nenhum deles lhes disse nada após as palavras de Eira, que olhou preocupada para sua guerreira. Esta apenas lhe sorriu e, juntas, começaram a falar, contando tudo o que houve no dia anterior, a conversa com Ele, e, como só as guardiãs e os guerreiros estavam presentes no refeitório, falaram também sobre a conversa de Eira com a mulher parecida com ela, sobre as suposições que ambas fizeram na conversa que tiveram entre si bem como da conversa que tiveram com Myrkur, Ghatha e Scáth finalizando com Ghatha repetindo o que disse antes sobre o medo das guardiãs com seus dons.

Quando eles terminaram tudo que tinham para dizer, os outros ainda permaneceram em silêncio apenas olhando para eles. Liam e Eira já estavam pensando em sair dali e voltarem ao quarto delas, pois tinham certeza de que seus amigos não iriam lhes perdoar quando o silêncio foi quebrado pelo arrastar de uma cadeira pelo chão. Niara levantou de seu lugar e andou até elas, nunca deixando de olhá-las e sendo acompanhada pelo olhar dos outros.

— Vocês duas entendem que tudo que nos contaram demonstra uma clara insubordinação aos anciões e uma falta de respeito para com a Deusa?

— Sim! — as duas responderam sem hesitarem.

— E mesmo assim vieram contar para nós?

— Niara — começou Eira — entendemos que talvez estejamos erradas, e que realmente seja como Falcão disse, que Ele pode estar tentando causar discórdia entre nós, mas eu não tive só ele falando sobre isso. Como contamos, meu dom ou quem quer que seja aquela mulher que apareceu para mim, também falou sobre a mesma coisa. Além de tudo isso eu sinto! Sinto que faltam coisas importantes para entendermos tudo que estar acontecendo. E tem o problema de nenhuma outra guardiã conseguir atingir mais do próprio poder.

— Bem — disse Niara depois de um tempo em silêncio — se vocês vão ser insubordinadas e desrespeitosas, nós também seremos!

Eira e Liam olharam espantadas para a guardiã do espírito e depois para todos os outros ali presentes.

— Como assim? — perguntou Liam.

— Ontem — Niara começou logo após olhar para seus companheiros — depois que foram para o quarto de vocês, nos dirigimos para o centro de treinamento para conversarmos em particular, longe dos anciões. Primeiro conversamos sobre você, Eira — ao ouvir seu nome, a pequena guardiã olhou assustada para a outra — e sobre o fato de ser capaz de fazer o que todas nós fazemos e até melhor do que nós conseguimos, e também ser capaz de aumentar nossos poderes com um simples toque. Para piorar, ontem foste capaz, sozinha, de abrir um portal, coisa que nenhum dos anciões estava conseguindo. Você precisa saber que, admitimos, isso nos assusta porque não sabemos o que mais você pode fazer nem até onde seu poder pode ir.

Dentro do seu coração a pequena já sabia disso, pois, não importava o bem que ela fizesse por onde passava, as pessoas só teriam medo dela. Antes que ela fizesse ou dissesse algo, Liam a puxou para seus braços em um abraço apertado lhe dizendo, sem palavras, que tudo ficaria bem, pois ela estava ali, e nunca teria medo dela. Além dos braços de Liam, Eira sentiu uma mão grande e pesada pousar em sua cabeça e outra mão mais fina e leve em seu ombro, bem como umas costas brancas apareceram em sua frente ficando entre elas e a guardiã do espírito.

— Vocês não têm motivo para terem medo dela! — Exclamou Ghatha — Como estávamos conversando mais cedo, Eira consegue superar o poder de vocês, pois ela luta por amor aos outros. Se o que ela já é capaz de fazer não for suficiente para proteger aqueles que precisam, ela vai e supera. Se vocês também encontrarem o motivo pelo que querem lutar também vão conseguir superar seus poderes atuais. Só não podem ter medo de serem mais fortes.

— O que você disse faz sentido. — disse Yildiz depois de um tempo — Eu.... eu confesso que, naquele dia do ataque quando Eira propôs de fazer o fogo sagrado para matar a todos os servos que estavam lutando com nossos guerreiros, eu fiquei com muito medo de não ser capaz de controlar e acabar machucando alguém. E depois quando a vi com os olhos flamejantes em azul e sendo capaz de controlar o fogo sagrado melhor do que eu, fiquei apavorada! Não apenas pelo fato de Eira conseguir controlar meu dom, como também por saber que não tenho coragem suficiente para fazer o que ela faz!

— Mas aşkım é claro que você tem coragem... — disse Dilek segurando sua mão.

— Não aşk eu não tenho! — ela exclamou soltando sua mão — Sei bem que não tenho essa coragem toda, como sei que não sou a única a ter medo de sair e lutar!

A guerreira do fogo se encolheu em sua cadeira chorando seus medos, enquanto seu guerreiro a abraçava tentando consolá-la. Na mente e no coração de todas as outras guardiãs também pesava o mesmo medo sem que fosse necessário colocá-lo em palavras.

— Vocês acham que eu não tenho medo também? — perguntou Eira, ainda abraçada a Liam, sem olhar para ninguém, mesmo que Ghatha tenha saído da frente dela — Que eu nunca tive medo? As pessoas do meu clã olhavam para mim como se a qualquer momento eu fosse fazer algo ruim usando meus poderes. Logo após salvar sua vida, minha própria mãe me olhou assustada, com medo de mim e do que eu era capaz de fazer! Eu tinha medo desses olhares, medo do que falavam de mim quando eu não estava presente. Mas eu sabia que meu poder tinha algum significado e eu só precisava descobrir qual era. Quando finalmente soube para o que eu deveria usar meu dom, eu sabia que tinha encontrado meu lugar, um lugar que eu seria aceita por haver outras como eu. Então passei a fazer sempre mais, primeiro por Liam, para protegê-la, depois por vocês e por todos os seres que precisamos salvar d'Ele... — ela levantou a cabeça olhando para as outras guardiãs — Mas eu estava enganada, pois até entre aqueles que são iguais a mim, eu vejo o medo em seus olhos pelas coisas que sou capaz de fazer.... — Ela saiu do abraço de sua guerreira, virando-se para sair do salão — Liam, eu quero voltar para o nosso quarto.

— ESPERA EIRA! — gritou Yildiz levantando-se e correndo para próximo da guardiã do amor, segurando uma de suas mãos — Me perdoa! Me perdoa por ter tido medo de você... por ter tido medo de tudo!

— Yildiz você não precisa me pedir perdão....

— Preciso sim! E também preciso dizer que você tem razão quando fala que devemos lutar principalmente por nossos guerreiros, e por todos os seres que existem fora do Outro Mundo. Eu... eu...

A guardiã do fogo não conseguiu falar mais nada por conta das lágrimas que rolavam de seus olhos como se fossem duas cachoeiras. A guardiã do espirito se aproximou das duas e colocou uma mão no ombro de Yildiz e a outra no ombro de Eira.

— Creio que falo em nome de todos quando peço que nos perdoe Eira. Nós erramos em não entender, desde o início, qual era a nossa missão, e tivemos medo, até mesmo de uma de nós. Mas a partir de agora, assim como você — ela virou a cabeça para olhar para as outras guardiãs, que já se aproximavam delas três — nós vamos usar esse medo para superar o que já somos capazes de fazer e vamos lutar, todas juntas, para proteger aqueles que conhecemos e amamos e aqueles que não conhecemos, mas que precisam de nossa ajuda contra Ele e seus servos.

Dizendo isso Niara colocou uma de suas mãos sobre a mão de Yildiz, que ainda segurava a mão de Eira. Depois uma a uma, as outras guardiãs foram colocando uma mão por sobre a da outra, ao mesmo tempo em que assumiam o compromisso de lutarem juntas e fazerem seus poderes crescerem ainda mais.

Quando todas as mãos estavam unidas, as guardiãs sentiram seus dons reagirem uns com os outros e, principalmente, todos eles reagiram ao dom de Eira, o que fez a pequena sorrir ao sentir o calor da união, gerado dentro de si por essa reação entre os dons.

— Sei que todas estão felizes por terem resolvido essa questão e agora estarem juntas novamente — disse Sirhan de pé encostado em uma das mesas — mas ainda temos outra questão para resolvermos, e isso envolve todos nós.

— É verdade — disse Niara, e todas soltaram as mãos, mas permaneceram no mesmo lugar — temos a questão das nossas memórias.

— E vocês concordam com o que dissemos sobre isso? — perguntou Liam, se aproximando de Eira e colocando as mãos em seus ombros.

— Sim, concordamos — respondeu Érica — essa foi a outra coisa que conversamos ontem. Não só Eira tem essa sensação de ter esquecido de algo, como cada uma de nós já notou isso.

— Eu tive essa sensação no dia seguinte ao que chegamos aqui, quando estávamos todos reunidos no corredor dos quartos. Era como se não fosse a primeira vez que conhecia vocês — Disse Bariri — E, pelo que conversamos ontem, eu não fui única a me sentir assim.

— Já a minha sensação de ter perdido algo da memória — disse Ninovan — foi quando encontramos aquela pedra que derreteu os dedos do Haley...

— Não precisava me lembrar disso! — Exclamou o guerreiro.

— ... era como se eu já tivesse visto aquilo antes....

— Sim! — exclamou Harumi — Eu sonhei essa noite que via várias daquelas pedras sendo encaixadas e formando uma espécie de torre...

— Eu também vi essa torre no sonho! — disse Xi-Wang.

— E da torre parecia sair uma fumaça negra que cobria o céu.... — disse Érica.

— E tinha dois olhos vermelhos nessa fumaça! — disse Niara — Parece que a maioria de nós teve o mesmo sonho. Eira?

— Eu não sonhei com nada disso — ela respondeu.

— Eu também não tive nenhum sonho assim. — disse Yildiz.

— Também não — completou Bariri.

— Mas só as guardiãs tiveram esse sonho? — Perguntou Uraraí.

Todos os guerreiros olharam entre si e disseram que nem haviam tido esse estranho sonho, como também não sentiam que faltava partes de suas memórias.

— Talvez sejam os nossos dons que nos fazem perceber essa falta. — disse Harumi.

— Provavelmente. — disse Niara — Então parece que nossos dons estão nos mostrando que já vivemos tudo isso antes...

— Em outra vida? — disse Xi-Wang receosa, e todos olharam para ela.

— Faz sentido. — disse Eira — A mulher que apareceu para mim, disse que faltavam partes da minha vida que eu não me lembro e Ele disse que eu não sabia quem era, pois, minhas memórias foram apagadas, o que não faria sentido já que eu tenho as memórias da minha vida. Então só podem ser memórias de uma outra vida que tive antes dessa.

— Então é bem provável que já tenhamos tido essa mesma luta no passado... — disse Niara.

— E não ganhamos?! — Honiahaka expressou em voz alta o que todos se perguntavam em silêncio.

— Se Ele sabe quem somos, sabe sobre os anciões e sobre o Outro Mundo — disse Uraraí — então significa que foi contra a mesma pessoa que lutamos no passado e.... parece que.... não ganhamos....

— Se realmente lutamos contra Ele e não ganhamos — disse Isamu — o melhor seria que tivéssemos nossas memórias do que aconteceu para saber em que erramos para não cometermos o mesmo erro.

— Devia ser assim — disse Chen — mas algo ou alguém tirou nossas memórias. Então teremos que lutar novamente às cegas.

— Se pelo menos a Deusa voltasse a aparecer quando a chamamos poderíamos perguntar — disse Liam — mas ela não aparece, os anciões parecem não saber de nada também.

— Por que a Deusa não aparece mais? — perguntou Érica.

Porém, ninguém tinha uma resposta para essa pergunta; muitas eram as suposições que todos eles tinham, mas qual delas seria a verdade para tudo que estava acontecendo seria algo que só saberiam depois de muito tempo.