Capítulo 16
Após um momento de cavalgada por entre as árvores, Ghatha apareceu perto delas, rosnando e agindo de maneira ameaçadora enquanto Scáth voava em círculo sobre as duas e a emitir sons agudos.
— Por que eles estão desse jeito, Eira?
— Parece que avistaram alguma coisa.
— E o que foi?
— Ghatha e Scáth estão dizendo que há pessoas estranhas, que eles não conhecem, escondidas no meio das árvores, um pouco mais a frente.
— Mas que tipo de pessoas estranhas? Podem ser aquelas que vivem perto do rio e talvez estejam andando na floresta por algum motivo.
— Não creio. Eles não ficariam agitados se fosse apenas gente do povoado do rio. São pessoas que estão deixando-os assustados por algum motivo.
— Não entendo o que possa ter de estranho em uma pessoa para assustá-los, mas, olhe ali na frente Eira! — Liam disse próximo ao ouvido da pequena, apontando para o meio das árvores; lá adiante havia um homem montado em um cavalo. Mas não era um homem comum, e nem era um dos guerreiros: era um soldado que havia estado no forte que, no momento que percebeu que havia sido visto, galopou o mais rápido que podia no sentido contrário a elas.
— Eles estão seguindo a caravana?
— Não sei. Eles disseram que era mais de uma pessoa, não foi?
— Sim.
— Então aquele não é o único soldado por aqui. Creio que estão aqui provavelmente vigiando essa região, já que estamos próximos às terras de O'Donovan. Melhor irmos rápido e avisarmos aos outros que podemos ou não ser atacados.
Praticamente entendendo o que Liam havia dito, Myrkur galopou o mais rápido que podia por entre as árvores até alcançar a estrada, seguindo por ela até que sons de espadas se chocando e pessoas gritando ficou mais próximo.
— Mam!
— Tenha calma Eira. Podemos ajudar se chegarmos sem que nos perceba.
— Espere Liam, você não conseguirá lutar comigo aqui. Deixe-me e vá.
— Não vou deixa-la sozinha e sem proteção! — Ghatha rosnou perto delas
— Eu ficarei bem, mo bheatha. Além de que Ghatha e Scáth ficarão comigo, você sabe que posso me proteger e ajudar se for necessário.
— Eira... — tentou reclamar, mas foi impedida por um beijo dela. Era a primeira vez que Eira a beijava primeiro.
— Confie em mim, mo bheatha, sei o que posso fazer.
Liam olhou por um momento para Eira e, sorrindo, ajudou-a a descer de Myrkur, depois saiu galopando ao encontro dos outros já com a espada desembainhada. Eira e Ghatha começaram a se movimentar por entre as árvores até se aproximarem do local onde estava a carroça; graças ao seu lobo, de onde estava ela podia ver o ataque, mas não podia ser vista. E o que estava vendo não lhe agradava, principalmente porque a quantidade de soldados era maior do que os guerreiros que as acompanhava e estes, ela notou, já estavam bastante feridos. Mas o que lhe incomodava também é que estava vendo uma coisa que não deveria estar ali e, muito provável, não deveria existir.
Fisicamente alguns dos soldados pareciam estar horrivelmente deformados: seus rostos pareciam mais uma massa de pão cheia de bolhas com manchas vermelhas e lugares já enegrecidos como se estivessem em decomposição e, por conta disso tudo, quase não era mais possível ver seus olhos e não possuíam mais um nariz, pois havia uma fenda no local; nenhum deles era parecido uns com os outros, cada um tinha uma forma diferente, mas as únicas características que possuíam de igual eram pequeninas asas pretas e rasgadas nas costas e algo negro em volta de cada um deles que ela não sabia explicar o que eram. Também havia um cheiro ruim no local como se um animal houvesse morrido, por ali há vários dias e esse cheiro parecia ser emanado desses soldados horríveis. Nisso tudo o que mais assustava Eira era o fato de que, como nenhum de seus guerreiros demonstrava espanto pela visão grotesca, significava que apenas ela estava vendo a real forma dos soldados.
— Ghatha você consegue ver aqueles homens de maneira diferente do que são normalmente — o lobo rosnou — Não?! Então só eu sou capaz de vê-los dessa forma... — ele rosnou novamente — Não sei explicar como eles se parecem, é como se houvesse alguma doença deformando seus rostos e tem asas nas suas costas. Mais um rosnado. — Não estou brincando nem fazendo ser engraçado como foi com você e Myrkur! Realmente tem duas pequenas asas negras nas costas de todos eles.
Em meio a conversa dela com Ghatha, Eira pedia a proteção de Danu, para que os guerreiros conseguissem vencer os soldados, mas ela não sabia que, o que quer que os fazia ficar com aquela aparência, também os fazia mais forte que pessoas normais. Também, o tempo todo, ela tentava encontrar sua mãe, pois ela não se encontrava mais dentro da carroça e só depois de procurar tanto, foi que finalmente ela ouviu um grito feminino, e a avistou sendo puxada por dois daqueles soldados deformados para longe da batalha.
— Mam! Ghatha precisamos salvá-la! — o lobo rosnou em concordância e os dois saíram se arrastando por entre as árvores até chegarem próximo de onde Aideen estava sendo levada.
— Tirem as mãos da minha mãe! — ela gritou surgindo por detrás de uma das árvores no mesmo instante em que Ghatha pulava sobre um dos soldados e Scáth descia velozmente sobre o outro.
Eira se virou rapidamente em direção à batalha adiante e colocou as mãos no chão. Nesse momento uma luz brilhou nas suas mãos e o chão começou a tremer, causando aberturas no lugar em que haviam apenas os soldados inimigos. Os soldados que não caíram nas fendas, correram gritando que deveria ser obra da serva dos demônios, aquela sobre a qual eles haviam sido alertados sobre a existência quando viram seus companheiros desaparecerem dentro delas. Quando todos já tinham desaparecido, Eira fez com que as fendas se fechassem e depois saiu correndo na direção da sua mãe, que parecia completamente assustada.
— A senhora está bem, mam?
— Fosses tu que fizeste isso, m'iníon? — ela perguntou com o que parecia ser medo em sua voz, também se afastando discretamente de sua filha.
— Sim, mam. — Eira respondeu tristemente, pois percebeu o medo no olhar e nos gestos de sua mãe — Desculpe se isso a assustou, mas não podia permitir que eles a machucassem e a nossos guerreiros.
— Tudo bem.... Eu estou bem.... Obrigada.
Aidenn respondeu andando de volta a carroça, demonstrando que não queria permanecer muito tempo perto da filha. Eira ficou parada no mesmo lugar por algum tempo até escutar um rosnado baixo perto de si e quando abaixou o olhar, viu que Ghatha estava se aproximando dela, coberto de sangue e parecendo estar muito machucado e um Scáth andando com pequenos passos com a asa ferida arrastando no chão.
— Ghatha! Scáth! — ela exclamou ajoelhando-se no chão — Venham, deixe-me ajuda-los! — mas ao ver a mão estendida de Eira para tocar em si, o lobo e o falcão se afastaram emitindo alguns sons — Eu não entendi Ghatha, você estar dizendo que o sangue daqueles soldados que vocês atacaram é que os machuca? — o lobo balançou a cabeça confirmando — Então precisamos limpar isso da sua pele e das penas de Scáth para que pare de lhes machucar — teve alguns rosnados e pios de resposta — Eu prometo que não vou tocar no sangue, agora venham até aqui e me deixe ajudar.
Ghatha e Scáth se aproximaram lentamente. O grande lobo deitou-se no chão enquanto Eira aproximava suas mãos, que já estavam brilhando, o mais perto possível do focinho sem tocá-lo. Essa luz que saia das mãos dela penetravam no focinho de Ghatha e emanavam para todo o seu corpo, fazendo com que ele também brilhasse. Quando o brilho desapareceu, todo o pelo do lobo estava branco novamente e os lugares em que antes estavam machucados, haviam sido curados. Em seguida fez o mesmo com falcão.
— Eu só queria limpar o sangue que estava em vocês para que parasse de machucá-los, — ela disse olhando as próprias mãos — mas parece que eu também tenho o poder de curar ferimentos.
Scáth bateu as asas levantando voo para descobrir se havia mais algum daqueles soldados escondidos e Ghatha levantando a cabeça lambeu o rosto de Eira, como se estivesse lhe agradecendo por tê-lo curado, fazendo ela sorrir e lhe acariciar seu pelo antes de levantar e andar na direção onde Liam e os guerreiros estavam reunidos. Ao chegar lá, sua guerreira lhe informou a situação em que os guerreiros se encontravam; a maioria estava com ferimentos leves, mas haviam aquele que estavam com cortes profundos e outros que reclamavam de lugares que queimavam como se estivesse com fogo sobre o local, que na realidade notou Eira, era sangue que tinha nesses locais. E aquele sangue devia provavelmente pertencer aos soldados com quem eles haviam lutado. Esses que haviam recebidos ferimentos mais graves, foram colocados dentro da carroça, no lugar onde Eira estaria sentada, pois só quiseram ser curados quando chegassem ao templo, mesmo a pequena tendo conhecimento de cura com plantas. Todos os guerreiros, disfarçadamente, se afastavam de onde Eira estava parada.
Havia um deles, chamado Keiran, que praticamente não estava com nenhum ferimento muito grave, então Eira achou melhor enviá-lo de volta ao forte para avisar seu pai do ocorrido e, como a sensação de que algo ruim iria acontecer ainda não havia passado, ela iria voltar para o forte assim que deixasse sua mãe protegida no templo. O guerreiro disse que iria o mais rápido que conseguisse e partiu logo em seguida. Os que ficaram, seguiram viagem para o templo, mais atentos que antes.
— Estás quieta mo chroi, o que houve? — perguntou Liam algum tempo depois que retomaram o caminho para o templo. Como a carroça estava levando os guerreiros feridos, ela passaria o restante da viagem montada em Myrkur com Liam. Mas a verdade é que, mesmo que não houvesse nenhum guerreiro que precisasse ir na carroça, ela não voltaria para lá, pois não queria passar o restante da viagem vendo a sua própria mãe olhando-a temerosa.
— É que... Eu estou pensando nas coisas que vi e que não deveria ter visto mo bheatha.
— Estar falando dos soldados que pareciam deformados como se acometidos por alguma doença, pequenas asas negras nas costas deles e um cheiro pestilento que podia ser sentido em todo o local em que estávamos lutando, como se saíssem de dentro deles?
— Então... Então você também viu tudo isso? — exclamou espantada enquanto de virava para encarar sua guerreira.
— Sim, infelizmente eu vi. E, vou te dizer uma coisa, nunca pensei que esse dia chegaria, mas fiquei muito assustada quando vi isso tudo.
— Eu pensei ser a única que vira isso, pois perguntei a Ghatha e Scáth e disseram que os soldados pareciam normais para ele.
— Sendo assim, então apenas nós duas fomos capazes de ver. Se os guerreiros tivessem visto também, estariam comentando e não ouvi nada a respeito disso.
— Mas, por que apenas nós duas?
— Você eu posso até entender, pois pode ter sido o dom que possui, mas, porque eu também consegui ver a aparência grotesca deles, eu não sei.
— Será que é por que você tem alguma ligação comigo?
— Pode ser. Mas o que eram aquelas coisas?
— Não sei. Se formos olhar pelas roupas que usavam, seriam os soldados daquele craiceáilte, mas eles não estavam desse jeito no tempo que estavam lá no forte.
— Quando chegarmos no templo talvez os druidas saibam o que isso significa.
— Tem mais duas coisas que eu preciso lhe dizer.
— Se for sobre o tremor que teve e as fendas que abriram no chão, eu sei que foi você e agradeço a ajuda.
— Acredito que você é a única que vai me agradecer por isso.
— O que houve?
— Primeiro minha mãe se afastou de mim e seu olhar era de medo, depois vi que alguns dos guerreiros também me olhavam com medo de que eu pudesse fazer mais alguma coisa, só que dessa vez para machucar eles.
— Eu te disse que no início as pessoas ficariam com medo, pois é algo que elas nunca viram antes, mas que depois elas vão se acostumar.
— Eu sei, mas ver medo voltado para mim, da minha própria mãe. Ah mo chroi isso doeu.
— Vai passar mo chailín. — disse abraçando Eira.
— Espero que sim, mas não é sobre isso que eu quero falar. Lembra que tem alguns guerreiros dizendo que tem lugares no corpo onde eles sentem como se estivesse queimando?
— Sim.
— O que estar causando isso é o sangue daqueles soldados.
— Como assim?
— Ghatha e Scáth atacaram os dois soldados para salvar minha mãe por isso ficaram cobertos do sangue deles. Eles me disseram que aquele sangue os estava machucando.
— Mas — Liam abaixou a cabeça para olhar o lobo que andava ao lado de Myrkur — ele não parece estar machucado nem seu pelo estar sujo de sangue. — e, olhando para os céus, avistou Scáth voado.
— Essa é a segunda coisa que eu tenho para te dizer, e te peço que não conte a ninguém.
— Eu nunca contarei para ninguém, nada do que me dizes mo chailín. O que foi?
— Eu os curei.
— Você o quê? — ela perguntou com a voz saindo um pouco alta.
— Liam! — nervosa, Eira olhou para os lados para ver se algum dos guerreiros estava prestando atenção nelas — Eu disse que os curei. Limpei-os do sangue e, ao mesmo tempo, os curei. — Liam fez menção de perguntar algo, mas foi interrompida — Não pergunte como eu fiz isso, pois não sei, simplesmente aconteceu. No momento eu estava preocupada com eles se machucando mais e mais a cada instante, enquanto tivesse o sangue em seus corpos. Não sei se foi isso que fez com que eu acabasse curando-os ou não, mas aconteceu.
— Então além de controlar o vento, a terra, a água e o fogo, você também consegue curar...
— Você não estar com medo, está? — perguntou receosa da resposta. Ter sua mãe sentindo medo dela era doloroso demais para ainda ter que suportar a pessoa que mais amava também sentir medo dela.
— Medo de você mo ghrá? Nunca! — ela segurou o rosto de Eira pelo queixo para que a mesma olhasse para seu rosto — Eu só sinto admiração pelo que você é capaz de fazer! Você não imagina o quanto eu fico fascinada com tudo o que fazes e orgulhosa quando me diz que foi capaz de controlar algo ou, como agora, de fazer algo novo!
— Por que estamos cercadas de pessoas? — Eira disse sorrindo — Queria que estivéssemos sozinhas.
— Eu também mo bheatha. — Liam deu um discreto beijo na testa de Eira e a abraçou, colocando sua cabeça de modo confortável em seu peito. — Espero que o restante dessa viagem seja calma.
— Eu também.
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