A Vida Termina
A falta de ação rege a queda dos ignorantes.
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Ice parecia, como meu pai costumava dizer, um "porco na lama" enquanto destruía com prazer os alicerces e colunas do prédio. O desabamento veio. Ellen e eu corremos pela extensão ainda de pé do piso, pulando para o terraço do prédio comercial mais próximo. Minhas pernas voaram sobre a pequena ruela, a metros de distância, e eu senti o vento quente da iluminação solar rebater no meu rosto. Por milésimos, temi meu corpo estatelado e esmagado no chão lá embaixo.
— Anderson! — Ellen havia enganchado sua jaqueta de couro verde em uma das antenas pontiagudas na borda do terraço. O ferro frágil dobrava em direção ao chão, puxando-a para uma queda de noventa metros.
Corri ao seu alcance, mas Ice foi bem mais rápido. Saltou e socou entre os dedos o aparato de metal, libertando Ellen e segurando-a nos seus braços enquanto partia flutuando para o nosso prédio sólido.
Ice estava visivelmente extasiado, uma onda de prazer e fúria formada em seus brilhantes olhos azuis. Finalmente, ele parecia um tanto feliz por seu ato, embora eu realmente não entendesse por qual motivo específico.
O prédio ruiu vagarosamente atrás de nós, e me afastei o tanto que possível da borda. Me obriguei a não pensar no que aconteceria se ainda houvessem outras pessoas vivas no edifício. E era um trabalho árduo. Ia contra meu instinto natural.
Apontei meu pulso com o relógio para os destroços e, virando o rosto, esperei pelo alerta das almas agonizadas que morreram ali. Demorei alguns segundos, e quando voltei o rosto curioso para os destroços, o relógio permaneceu em seu estado normal. Nada aconteceu.
— Obrigada, Erik — ouvi Ellen dizer baixinho. Se compreendia bem eles dois, sentia que seu murmúrio era mais voltado para uma obrigação moral do que propriamente um agradecimento.
— De nada, garota Espacial. — Ice sorria, dessa vez de maneira mais natural, esvaindo a expressão contagiante de ira. — E aí, o próximo passo?
Eles me olharam, e mesmo que a expectativa que punham nos olhos não fosse proposital, eu senti o peso dos mesmos caindo com força sobre meus ombros. Diferente do Ice, eu não tinha ansiedade alguma em ter de fazer aquilo.
— Como você sabia que estava vazio? — perguntei a Ice, antes de continuarmos. Mostrei meu relógio junto aos escombros do prédio, em resposta à expressão de dúvida que ele logo fez.
— Eu... — Ice coçou a parte de trás da cabeça, envergonhado. — Eu não sabia. Não tive tempo para cogitar isso.
— Você pretendia matar mais pessoas? Já não basta essa desordem de almas que me cercam?!
— Anderson — Ellen intercedeu. — A gente não tem tempo para discutir.
Respirei, acalmando meu interior ansioso por não fazer aquilo. Eu queria entender o que se passava na cabeça do Ice para agir como um agente do caos. No entanto, havia pouco tempo, e só cogitar em pensar a respeito era perda dos minutos essenciais. Soltei o ar dos pulmões. Tá, coragem, Anderson!
— Tudo bem — disse, deixando o nervosismo embargar na minha voz.
Ice se aproximou de mim devagar, devolvendo-me o tocador de MP3. Estava meio encoberto de poeira de concreto.
— Valeuzão, cara. Essas músicas são fenomenais!
Peguei o aparelho, tentando esboçar um sorriso não tão desesperado, e joguei-o de volta no bolso do meu casaco.
— Temos um ótimo ponto em comum, não é mesmo? — Relembrei os festivais de músicas que havíamos assistido juntos, uns poucos anos atrás. Ice confirmou com a cabeça, tocando meu ombro com a palma da mão.
— Faça isso por todos que merecem.
Senti-me mais atraído ao som daquelas palavras. Era um memorando sutil às várias pessoas que se foram e aquelas que ainda iriam enquanto batalhávamos contra o fim de tudo.
Valeu Ice, eu agradeci internamente; não precisava falar para que o meu melhor amigo entendesse.
Corremos, à procura de uma descida que pudesse acessar a parte interna do prédio. Achamos um vão que continha escadas de concreto. Descemos batendo os pés; Ice gritava, empolgado, pulando quase três degraus de uma vez, enquanto Ellen, meio pesarosa, vinha ao meu lado num ritmo moderado, revirando os olhos. Saímos em um beco, vazio e que ecoava sons longínquos de gritos.
Arrombei um carro qualquer, fiz ligação direta e chamei os outros. Ice se jogou nos bancos de trás, e Ellen se acomodou no do carona. Pisei no acelerador e avancei na avenida, no sentido contrário ao destino do resto da população viva, desviando de diversas rachaduras e buracos abertos no asfalto.
— Tá, tá... Como eu ligo isso? — pensei alto. Eu sabia como, mas a sensação nervosa me impedia de raciocinar direito.
— Vai com calma, Anderson — Ellen falou, a voz carregada de uma leveza impressionante, confortável até. — Primeiro concentre-se.
— Isso! Vai, senhor Castle! Eu confio em você! — Ice gritava atrás de mim, fazendo Ellen se virar para ele numa expressão repreensiva. — Quê que há? Um apoio moral não atrapalha, né?
— Apoio moral, sim. Certo, uff... — Escapei com as palavras aleatórias, estonteado de temor pelo que estava prestes a vir. Não havia jeito de me preparar para aquilo, então tentei ajustar todo o meu nervosismo através dos movimentos no volante.
— Erik, você só está deixando ele mais nervoso. — Ellen passou as suas mãos pelo meu braço, transferindo um calor aprazível. Tocou meu relógio, girando a coroa e ajustando as horas para 16:45. — Ok, Anderson. Você consegue.
— E por falar nisso cara, desde quando você sabe dirigir?
Era uma ótima pergunta. Aquela indagação repentina do Ice me fez sorrir incontrolavelmente, e olhando meu rosto no espelho retrovisor, eu parecia uma variante louca de êxtase do próprio Ice.
Ellen suspirou profundamente. Quase consegui soltar um risinho junto, se não fosse por aquela batalha dentro de mim, com o terror sempre em vantagem ao humor.
Meu relógio era um clássico do período da Revolução Industrial. Um especial focado em marcar as horas com a maior precisão possível. Ele começaria a me alertar no tempo exato demarcado, precisamente como fora criado há uns bons séculos. Quase como um alarme, mas também não.
Era estranho, mas demarcar as horas não era exatamente a real especialidade dele. Foi um presente do meu tio historiador — e viajante nas horas vagas — que quando me entregou o objeto, disse-me: "O potencial de cada instante é medido, e deixa marcas profundas na alma."
Só soube bem que marcas eram aquelas anos depois. E estava começando a notar que elas não tinham nenhum tipo de cura. Imaginei se meu tio soubera de antemão do meu papel no apocalipse ao me presentear com aquele relógio. Seria muito poético e coincidente pensar que sim, mas eu ainda era um humano por essência e gostava de me ater a sonhos bobos como este.
De relance, vi Ellen jogar seu par de óculos janela à fora e limpar os olhos sujos de areia com um lencinho branco. Os olhos dela eram intensamente verdes. Tão naturais quanto as raras paisagens que podíamos nos permitir contemplar hoje em dia.
Virei o rosto para a avenida e ultrapassei o limite de quilometragem.
Fagulhas multicoloridas provindas de uma explosão surgiram e sumiram instantaneamente da janela do carro. As pessoas cediam rapidamente ao desespero, e isso fazia com que elas lutassem insanamente uma com as outras. Sangue misturava-se aos olhos de quem visse aquela batalha pela salvação. Tive vontade de baixar a visão, enojado com aquela perspectiva.
Era terrível. O pavor surgiu dentro de mim e rapidamente se instalou como um furacão, arrasando toda a minha estrutura. Eu tinha o papel de ser forte, meu sobrenome apontava para isso, mas eu não conseguia tão bem após presenciar tanto horror.
O relógio tremeu, avisando que estava na hora. Meu corpo virou energia pura, dando-me coragem para o próximo feito. Joguei o volante para a esquerda, derrapando o carro e buscando essências boas, ainda preservadas, dos seres que gritavam, em tons de arrependimento, dor ou desespero. Sentia a angústia daquilo tudo, e meus olhos se seguravam para não soltar as lágrimas. Mordi meus lábios, durante a captura errônea de algumas essências maléficas.
NÃO, NÃO! CAIAM FORA DAQUI!
Observamos atentamente a queda de um prédio residencial, que rachava suas paredes e logo após destituía-se em um pó denso. Gritos ecoavam dos escombros. Desejei inerentemente que aquele desespero terminasse de vez, por mais que nossos semelhantes não fossem tão merecedores de tal piedade.
MAS QUEM SOU EU PARA JULGAR ALGUÉM?
Gritei, enquanto descobria as pessoas mortas sob os escombros. Meu cérebro doía. Muitas essências boas se perderam, infelizmente, desprendendo-se dos corpos e sendo sugadas para algum outro lugar. Precisaria me concentrar...
Segurei o volante com força, girando o carro para dar meia-volta. Avancei, sem freios, em direção aos escombros daquele prédio.
— Irado! — Ice respondeu ao surto de velocidade adrenalística, jogando a sua cabeça entre os bancos.
Procurei, busquei. Meu ser era como um radar, as essências boas dando choques gratificantes pelo meu corpo, e as essências más sugando sentimentos felizes e despejando angústia no espaço vazio.
— Espera! Anderson, o que você está fazendo?!? — Ellen gritou. Meus nervos fluíam com um líquido pesado, mal a escutava.
Joguei o carro em alta velocidade por um muro caído de concreto, que fazia uma rampa apoiado a uma estrutura de ferro. Enquanto voava acima dos escombros, capturei vários tipos de essências, muitas das quais me fizeram finalmente chorar. Olhei para o espelho retrovisor. Meu semblante era maléfico, meus olhos castanhos em um ódio decapitante.
Soltei uma das mãos do volante e apertei meu relógio de pulso no momento oportuno, quase de maneira hesitante. Um brilho desfocado atravessou os vidros frontais e segurou aquelas essências fugazes, lançado uma luz cegante que capturava todo o prédio decaído.
Fechei os olhos. Senti a vida física terminar, daqueles seres que eu nunca havia conhecido para me importar.
Mas eu me importava. Essa era a grande graça da empatia.
O carro raspou de volta no asfalto e, sem controle algum, bateu com um ruído surdo contra um poste.
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